quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Brecht e o Brasil

Fernando Marques
fmarquesfreitas@terra.com.br
Jornalista, poeta e compositor, doutor em Literatura Brasileira

A relação entre Brecht e o teatro brasileiro teve sua fase mais marcante entre 1958 e 1978

Se é verdade que escrever em português pode, ainda hoje, confinar um autor a circuitos relativamente restritos, produzir em alemão tampouco garante divulgação internacional imediata. Embora muito prestigiosa, a literatura de língua alemã precisou, freqüentemente, do passaporte das traduções francesas ou inglesas para alçar os seus escritores à notoriedade global.

O alcance do idioma será, quando menos, um dos fatores capazes de explicar o fato de que o dramaturgo, poeta e pensador alemão Bertolt Brecht, nascido em 1898 e morto há 50 anos, a 14 de agosto de 1956, só viria a ser mundialmente festejado depois que peças como Mãe Coragem chegaram às salas de Paris e Londres. Outro fator liga-se ao exílio: Brecht, a exemplo do que fizeram tantos intelectuais, fugiu da Alemanha encampada pelos nazistas em 1933, trocando de país "como quem troca de sapatos" (até o retorno em 1948), o que dificultou a difusão menos tardia de suas peças e idéias.

Costuma-se marcar a data de chegada de Bertolt Brecht ao Brasil pela primeira montagem profissional de um de seus maiores textos, A alma boa de Setsuan, encenado em São Paulo com Maria Della Costa, sob a direção do italiano Flaminio Bollini, em 1958. A fase de "deglutição" local do autor vai de 1958 a 1978, ano em que estréia a Ópera do malandro, de Chico Buarque, resposta à Ópera dos três vinténs, de Brecht e Kurt Weill.

No entanto, diga-se, o contato brasileiro com o teatro brechtiano não se fez esperar demais. Ao mesmo tempo em que se começava a falar amplamente de Brecht na Europa, devido a "uma versão bastante comovente de Mãe Coragem", em Paris, segundo informa o biógrafo Frederic Ewen, ocorria por aqui a montagem - com alunos da Escola de Arte Dramática, em São Paulo - de A exceção e a regra. Esta é uma das peças denominadas pelo autor de "didáticas": breves textos destinados à elaboração de questões éticas e políticas. O ano era o de 1951.

A exceção e a regra, escrita em 1930, e a bem-humorada (e pungente) Alma boa de Setsuan, de 1940, abordam o tema da bondade impossível, num mundo monitorado pelo egoísmo; ambas ficaram como marcos inaugurais da recepção de Brecht no Brasil certamente porque obtiveram registros na imprensa. Mas (sem querer exasperar o leitor com problemas de genealogia) anoto que, de acordo com Wolfgang Bader, organizador da coletânea Brecht no Brasil (1), o marco inicial cabe mesmo a Terror e miséria do Terceiro Reich, encenada em 1945, em São Paulo, "por alemães exilados, que nos anos de 1940 começam diversas atividades teatrais aqui".

O sentido inicial das montagens brechtianas no país, sentido que se vai desdobrar em caminhos correlatos nos anos seguintes, relacionou-se à luta contra o fascismo, verberado já no título da peça. Bader e Fernando Peixoto (que, na mesma coletânea, também alude a Terror e miséria do Terceiro Reich) limitam-se a mencionar a montagem de 1945, sem fornecer outros dados a seu respeito, sinalizando que a memória do espetáculo em boa parte se perdeu. Mas o texto seria revisitado, nos anos de 1960, pelos encenadores Antonio Abujamra, Paulo Afonso Grisolli e Amir Haddad.

Significativa, também, foi a inclusão de um dos episódios que compõem a peça, chamado "O delator", no espetáculo-colagem Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, sucesso no Rio de Janeiro de 1965, já, portanto, em tempos pós-Golpe. Paulo Autran e Tereza Rachel representavam os pais que temem ser denunciados como opositores do regime pelo próprio filho, não mais que um menino. Evidenciava-se um dos traços da presença brechtiana: o dramaturgo ajudou a politizar o teatro nacional ou, por outra, emprestou instrumentos de análise e crítica, ideológicos e estéticos, a dramaturgos, atores e diretores brasileiros, na fase em que os palcos se tornaram praça de resistência ao regime militar instalado em 1964.

A tradução para o inglês de A alma boa de Setsuan e de O círculo de giz caucausiano, pelo norte-americano Eric Bentley, peças publicadas em 1948 (Bentley divulgou a obra de Brecht nos Estados Unidos, onde o dramaturgo passou a fase final do exílio), permitiu ao crítico Décio de Almeida Prado ler o autor, para depois comentá-lo a propósito de A exceção e a regra, poucos anos mais tarde. Já Sábato Magaldi viu pela primeira vez uma peça de Brecht em Paris, em 1953. Era Mãe Coragem, a história da tragicômica mulher que se sustenta como vendedora ambulante em plena guerra, metáfora dos que pretendem se valer das situações de conflito e caos, delas aferindo vantagens (a obtusa Coragem perde seus três filhos, um a um, ao longo da história).

Sábato não gostou, contudo, da encenação de Jean Vilar: "Não vou esconder que fiquei muito decepcionado: achei o espetáculo por demais cansativo, e o público se enfadava todo o tempo" (2). Efeito, quem sabe, de tratamento excessivamente literal do teatro épico proposto pelo escritor, teatro em que a ação dramática está constantemente emoldurada por expedientes narrativos (cartazes e canções, entre outros), destinados a evitar a simples identificação emocional entre público e espetáculo, privilegiando-se a atitude racional. Para Brecht, o mundo (resumido em cena) deve aparecer como passível de ser modificado pela vontade consciente, jamais como inacessível a mudanças objetivas.

Houve acertos e desacertos na recepção dada à obra na França ou aqui. O crítico Yan Michalski inicia depoimento de 1986 dizendo precisamente isto: "Brecht forneceu a matéria-prima literária e teórica para alguns dos mais equivocados momentos da cena brasileira dos últimos 30 anos, e para alguns dos seus momentos mais iluminados e enriquecedores". Compreensão limitada do famoso "efeito de distanciamento"(3), preconizado pelo também diretor Brecht (o ator deve afastar-se de seus personagens, buscando pensar e fazer pensar sobre eles), possivelmente responde por alguns daqueles equívocos.

Já os acertos se devem a uma utilização criadora, pouco subserviente, das idéias do autor. O que se verificou também nos espetáculos que não se basearam em textos de Brecht, mas foram de algum modo inspirados por suas concepções, caso da comédia Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar, integrantes do Grupo Opinião. O espetáculo estreou no Rio, em 1966, sob a direção de Gianni Ratto.

No prefácio ao Bicho, os autores aludem a procedimentos não-realistas que ajudariam a representar melhor a própria realidade. Depois de situar as fontes da comédia na literatura popular (no caso, o cordel e a farsa nordestina), dizem: "A literatura popular e a grande literatura sempre tiveram um ponto fundamental em comum: a intuição da arte dramática como uma manifestação de encantamento, de invenção"(4). Encantamento, segundo eles, é justamente "o que Brecht repõe na literatura dramática".

Vianna e Gullar esclarecem, referindo-se implicitamente ao humor e ao caráter lúdico também presentes nas peças do escritor alemão: "Mas quando falamos em encantamento, não estamos querendo dizer envolvimento passional. Com encantamento queremos dizer uma ação mais funda da sensibilidade do espectador que tem diante de si uma criação, uma invenção que entra em choque com os dados sensíveis que ele tem da realidade, mas que, ao mesmo tempo, lhe exprime intensamente essa realidade". O efeito, no Bicho, seria o de uma incisiva caricatura das relações políticas no Nordeste dos coronéis e, por analogia, em todo o país. Já nos anos de 1970, o Grupo Opinião recorre, em O último carro (1976), de João das Neves, peça ambientada num trem de subúrbio, à técnica de composição por cenas isoladas, eminentemente épica.

O Teatro de Arena de São Paulo esteve fortemente relacionado à estética de Brecht, reelaborando-a criativamente. Dois espetáculos devem ser destacados nesse sentido: Arena conta Zumbi, de 1965, e Arena conta Tiradentes, de 1967, ambos escritos por Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri.

As lições relativas às técnicas épicas reaparecem no Arena sob a forma da narração coletiva e da dissociação de atores e personagens (um mesmo papel pode ser interpretado por diversos atores, o que dilui a empatia e reforça o exame crítico das situações), como se deu em Zumbi. Ou, ainda, sob a figura do Coringa, espécie de mestre de cerimônias que conta a história e encarna o ponto de vista autoral, como em Tiradentes. Boal articula, na ocasião, o Sistema do Coringa e, depois, as técnicas do Teatro do Oprimido, em certa medida derivadas de matrizes brechtianas.

De volta aos textos do próprio Brecht, lembre-se Galileu Galilei, encenado pelo Grupo Oficina em 1968, com estréia no mesmo dia em que se editou o AI-5, pelo qual os militares cassavam as liberdades públicas. Tendências racionalistas, de índole marxista, e irracionalistas, estas ligadas à contracultura que então se afirmava, batiam-se dentro do grupo, o que resultou em espetáculo híbrido (e bem-sucedido): o texto de Brecht narra a história do astrônomo renascentista para ressaltar os poderes críticos e a responsabilidade política da ciência, enquanto a montagem dirigida por José Celso Martinez Corrêa sublinhava uma das cenas, a do carnaval, até a embriaguez, como se correntes contrárias se chocassem no interior do mesmo espetáculo.

A Ópera do malandro vem atualizar a Ópera do mendigo (1728), do inglês John Gay, e sua descendente alemã, 200 anos mais velha, a Ópera dos três vinténs, de Brecht e Weill. Esta já havia sido encenada (por exemplo) sob a direção de José Renato, em 1964; a adaptação de Chico Buarque, apoiada em convivência já extensa dos brasileiros com a obra de Brecht, traz a ação para o Rio de meados dos anos de 1940, quando a ditadura de Vargas chegava ao fim e o país entrava numa fase de ambígua modernização capitalista.

Em lugar de replicar o niilismo existente na Ópera dos três vinténs, Chico e o diretor Luís Antônio Martinez Corrêa acentuaram seus aspectos de crítica política, satirizando o clima de engodo que se armava no segundo pós-guerra, quando os Estados Unidos se confirmavam no papel de líderes do mundo "cristão e ocidental". Propunha-se analogia do passado, os anos de 1940, com a atualidade, a década de 1970, momento em que se continuava a promover, por aqui, o banquete das elites.

O que permanece válido em Brecht, agora? Conforme notou Roberto Schwarz no artigo "Altos e baixos da atualidade de Brecht", de 1999 (5), a obra do dramaturgo carece hoje de revisão e de crítica, dado que premissas importantes de seu trabalho perderam força. O primeiro pressuposto vencido é o de que o mundo caminharia para uma ordem solidária ou socialista: não foi o que ocorreu. Já a segunda premissa refere-se ao arsenal das técnicas épicas, que parecem gastas. Os recursos de quebra da ilusão cênica e, por extensão, política, tomados tal e qual Brecht os compreendeu, apropriados inclusive pela publicidade, deixaram de ser eficazes.

Schwarz diz também, no entanto, que o reexame das peças pode nos reconduzir a bons achados. Um exemplo: o ácido retrato de um capitalismo amoral, como que absoluto, isento de culpas ou recalques, exposto em Santa Joana dos Matadouros. Ao parodiar a literatura clássica alemã, fazendo-a falar o jargão das negociatas, a peça ilustra o quanto há de vivo na ampla obra do dramaturgo.

A receita vale para outros grandes textos do autor, que se mantêm atuais, até porque a realização das esperanças de mundo melhor teve mesmo de ser adiada por tempo indeterminado. Nosso mundo, meio século mais velho que o de Brecht, guarda pontos de contato fundamentais com o dele. O que, aliás, não é de se comemorar.

NOTAS

1. BADER, Wolfgang. Brecht no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
2. in Brecht no Brasil, pág.223
3. in Brecht no Brasil, pág 226
4. VIANNA FILHO, Oduvaldo e GULLAR, Ferreira. Se corre o bicho pega, se ficar o bicho come. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966
5. SCHWARZ, Roberto. "Altos e baixos da atualidade de Brecht", in Seqüências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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