quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Baile de máscaras

Edward Pimenta
edwardpimenta1974@gmail.com
Jornalista e escritor

Livro inacabado de Truman Capote usa nomes falsos para satirizar socialites e celebridades. Com o recurso, o autor ressuscita o "roman à clef" do século 17

Truman Capote se tornou Truman Capote quando publicou A Sangue Frio, em 1966 - uma eletrizante reportagem literária sobre o assassinato brutal de uma família no Kansas. Depois disso, Truman Capote nunca mais foi Truman Capote. Abusou do álcool e das drogas, a qualidade de seus textos baixou vertiginosamente, e o autor passou a criar teorias absurdas para justificar seus sucessivos fracassos. Dentre as tentativas malogradas que Truman Capote empreendeu para voltar a ser Truman Capote destaca-se o romance inacabado Súplicas Atendidas, que acaba de ser lançado no Brasil. A foto que ilustra a capa da edição brasileira - que você pode ver aí ao lado - foi tirada no antológico baile de máscaras que o escritor americano promoveu para celebrar o sucesso de A Sangue Frio. Na época, vivendo seu auge, ele assinou um contrato com a editora Random House para escrever um retrato de tintas proustianas da alta sociedade americana. Esse livro - Súplicas Atendidas - só viria a público nove anos mais tarde, em pílulas. O romance começou a ser publicado em capítulos em 1975, na revista americana Esquire. Capote, no entanto, interrompeu a empreitada logo no começo. Apenas em 1987, três anos após a morte do escritor, os capítulos foram reunidos num livro - que só agora ganha edição brasileira.

Quando os primeiros textos saíram na Esquire, Súplicas Atendidas provocou furor. O romance estava longe de apresentar os altos padrões proustianos pretendidos pelo autor. Parecia-se mais com o baile de máscaras de 1966 - e este era exatamente o motivo da celeuma em torno da obra. No livro, Capote retratou várias figuras conhecidas da sociedade americana, mas com nomes falsos. Apesar do artifício, os retratados se reconheceram - e estrilaram. O caso mais terrível foi o da socialite americana Ann Woodward, que havia matado o marido e criador de cavalos William Woodward Jr. O episódio teria sido um acidente, e a arma, um rifle de caça. No livro, Capote conta essa história, muda o nome da personagem para Ann Hopkins e diz claramente que ela é uma assassina. Transtornada, a Ann Hopkins verdadeira suicidou-se com uma overdose de antidepressivos. O casal formado pela atriz Nedda Logan e o escritor e diretor de cinema Joshua Logan também é retratado desfavoravelmente. Num diálogo entre duas sociliates, uma delas pergunta: "Como foi a festa dos Logan?". A outra responde, ironicamente: "Ótima, para quem nunca tinha ido a uma festa antes". Possessa, Nedda disse: "Aquele serzinho desprezível e sujo [Capote] nunca mais vai colocar os pés nas minhas recepções".

A principal inspiração de Capote em Súplicas Atendidas foi exatamente esta: as festas que ele passou a frequentar depois que se tornou uma celebridade. "O que esperavam de mim? Eu sou um escritor e uso qualquer coisa que estiver ao meu alcance. Todas essas pessoas pensavam que eu estava lá apenas para entretê-las?", disse Capote na época. O romance tem como protagonista o fictício P. B. Jones, que, como tudo no livro, não é tão fictício assim. Alpinista social, ele é uma espécie de alter ego "lado B" do autor. Algumas celebridades da época aparecem retratadas com nomes verdadeiros, e Capote é igualmente impiedoso com elas. A escritora Dorothy Parker e o ator Montgomery Clift - que já haviam morrido quando os capítulos do romance saíram na Esquire - aparecem em algumas cenas. Em uma delas, Dorothy, na presença de duas atrizes, se derrete diante da beleza de Clift e, enquanto acaricia o rosto do ator, usa termos chulos para se referir ao fato de o astro hollywoodiano ser provavelmente homossexual.

A Chave

Além de provocar confusão na alta sociedade americana, Capote ressuscitou, com Súplicas Atendidas, o gênero do roman à clef. O termo designa livros em que personagens reais aparecem com nomes trocados, e o leitor necessita de uma chave (clef, em francês) para entender o que se passa. Trata-se de uma tradição que remonta à França do século 17, na qual os integrantes dos salões literários queriam apimentar suas histórias com a inclusão de representações ficcionais de pessoas conhecidas da corte de Luís 14. Como literatura, o grande problema do roman à clef é que muitas vezes o jogo de identificar quem é quem se torna mais atraente do que o livro em si. O que não impediu que muitos autores de talento e prestígio tenham usado o recurso de esconder personagens reais sob nomes falsos em suas obras.

Ao analisar a obra do alemão Thomas Mann, o crítico George Steiner observa que o músico Arnold Schoenberg é claramente o modelo do protagonista de Doutor Fausto, Adrian Leverkuhn - e Steiner diz ver ecos do filósofo Theodor Adorno no demônio que, no livro, rouba a alma do compositor. Os romances Um Gosto e Seis Vinténs (1919) e O Destino de um Homem (1930), do escritor britânico Somerset Maugham, retratam veladamente passagens das vidas do pintor Paul Gauguin e dos romancistas Thomas Hardy e Hugh Walpole. Um tipo mais comum de roman à clef pode ser encontrado em livros como Contraponto (1928), de Aldous Huxley, e Os Mandarins (1954), da francesa Simone de Beauvoir, nos quais os personagens disfarçados são imediatamente reconhecidos, mas apenas por um círculo de intelectuais próximo aos autores. No primeiro caso, são os escritores britânicos D. H. Lawrence e Middleton Murry, que detestou se ver retratado como o inescrupuloso editor Denis Burlap. No segundo, aparecem, entre outros autores, o francês Jean-Paul Sartre e o americano Nelson Algren - respectivamente marido e amante de Simone, que também retrata a si própria no livro.

No Brasil, um dos primeiros romans à clef é A Conquista (1899), de Coelho Neto, uma representação da vida boêmia e literária do Rio de Janeiro durante a campanha da abolição da escravatura. Personagens históricos aparecem sob nomes ligeiramente alterados: Octavio Bivar, por exemplo, é o poeta Olavo Bilac. Mais recentemente, o romance Valsa Negra (2003), de Patrícia Melo, expõe os tumultuados bastidores da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, que já foi dirigida por seu marido, o maestro John Neschling. Em nenhum desses casos, no entanto, se chegou ao nível de ironia e indiscrição de Truman Capote.

O autor de Súplicas Atendidas era colaborador da revista Interview, de Andy Warhol, e ambos conheciam bem o interesse da época pela vida pessoal das celebridades. Nesse contexto, um roman à clef era a salvaguarda de que ele precisava para expor à apreciação pública a vida pessoal de figuras ilustres. A jornalista Tina Brown, que editou em épocas diferentes as duas principais revistas do jornalismo literário americano - The New Yorker e Vanity Fair -, teceu críticas a Súplicas Atendidas, dizendo que o autor, ao recorrer ao roman à clef, havia perdido a chance de fazer uma boa reportagem de não ficção, na linha de A Sangue Frio.

Trata-se de uma crítica pertinente. Súplicas Atendidas, no entanto, tem, sim, virtudes literárias, assentadas no humor e na poderosa verve de Capote. A história e os personagens se sustentam mesmo que o leitor de hoje não tenha mais a chave para desvendá-los. Um bom exemplo é a descrição da primeira vez em que um velho homossexual do ramo dos cosméticos avista um garoto que deseja: "Ao ver Denny, ele deve ter se sentido como um colecionador de porcelana que entra num bricabraque vagabundo e descobre um conjunto 'cisne branco' de Meissen: o espanto! O calafrio da ganância!". O achado é típico de um escritor hábil como Capote, que abusa de charme e malícia como recursos de estilo.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Cervantes: uma vida de tinta e sangue

(Salvador Dali)

Denise Góes
degoes2@hotmail.com
Jornalista e socióloga

Lutas sangrentas, ideais inatingíveis, conquistas heróicas, derrotas avassaladoras. É assim, com altos e baixos que se sucedem em turbilhão, que pode ser contada a vida de Miguel de Cervantes Saavedra. Some-se à intensa agitação o mistério de algumas passagens e se terá um livro que pode ser lido como um romance: a biografia do autor do romance que inventou o gênero – D. Quixote.

No ano em que se comemoram os 400 anos da publicação do grande clássico da literatura espanhola e universal, saem no Brasil, não uma, mas duas biografias de Cervantes: As vidas de Miguel de Cervantes (José Olympio Editora), do espanhol Andrés Trapiello, e Cervantes (Editora 34), do francês Jean Canavaggio. Divergentes em vários aspectos, ambas procuram apontar um caminho para as muitas interrogações que cercam o mundo cervantino.

Desde a publicação da primeira biografia, feita por Gregório Mayans, em 1738, as várias tentativas de contar a vida de Cervantes estão repletas de dúvidas. São lacunas que provocam acaloradas discussões, que muitas vezes transbordam do ambiente acadêmico. É o caso da polêmica entre Trapiello e Canavaggio.

Ambos bebem na mesma fonte: a Vida ejemplar y heroica de Miguel de Cervantes Saavedra, a monumental biografia em sete volumes de Luis Astrana Marín (1889-1959). A Astrana é creditada a mais profunda pesquisa em documentos, livros e registros disponíveis. Seu trabalho, porém, não elucida pontos até hoje nebulosos e dá margem à discórdia entre os dois biógrafos.

Trapiello acusa Canavaggio de não reconhecer a contribuição de Astrana. “Após pedir empréstimos a Astrana, Canavaggio despeja violentas acusações sobre o saqueado”, afirma. Canavaggio, por sua vez, o acusara de ter produzido uma biografia romanceada de Cervantes. Professor universitário, Canavaggio afirma ter tido como um dos objetivos, ao escrever a biografia, separar o fabuloso do real.

Apesar dos métodos diferentes, uma coisa os biógrafos têm em comum: a tentativa de desvendar Cervantes. Como eles dizem, sabe-se mais da vida de D. Quixote do que da de seu autor. A começar pela data de nascimento.

A única informação documentada sobre o nascimento de Cervantes está em uma certidão de batismo: 9 de outubro de 1547. Acredita-se, contudo, que Cervantes teria nascido no dia 29 de setembro, dia de são Miguel, em Alcalá de Henares, cidade próxima a Madri.

Muitas são as teorias sobre as origens do escritor espanhol. Uma delas sustenta que Cervantes teria sido descendente dos reis de León, os Reis Católicos, Fernando e Isabel. Já em outra vertente, a discussão, que ainda é levantada por estudiosos, é se Cervantes era ou não cristão novo, ou seja, judeu convertido. Segundo Trapiello, o historiador espanhol Américo Castro (1885-1972) acreditava que a vida errática da família Cervantes seria uma prova disso. As biografias levantam a questão, mas nada concluem. Exemplo das muitas dúvidas que pairam sobre a vida do autor de D. Quixote.

O mais provável é que a família de Cervantes fosse de Córdoba. Juan de Cervantes, o avô paterno, teria sido advogado e ocupado vários cargos públicos em diversas cidades, uma delas Alcalá de Henares, onde teria abandonado a família.

Miguel foi o quarto filho de Rodrigo Cervantes e Leonor de Cortinas. Surdo de nascimento, Rodrigo era retraído e triste. Com poucos estudos, tornou-se cirurgião. Na época, cirurgião era um ofício depreciado, uma espécie de prático em medicina, “meio caminho entre o sangrador e o barbeiro”, segundo Trapiello.

Canavaggio contextualiza a Espanha desse início de vida de Cervantes. Em 1547, a casa dos Hasburgo reinava e a Espanha vivia o chamado Século de Ouro. O imperador Carlos V ganhou a batalha de Mühlberg contra os príncipes protestantes alemães e a Igreja Católica passou por grandes transformações com o Concílio de Trento (1545-1563). Enquanto isso, a Espanha adotava estatutos contra cristãos novos e muçulmanos. Após 40 anos de reinado, Carlos V retirou-se para um mosteiro. Em 1556, começou o reinado de Felipe II que acompanhou boa parte da vida de Cervantes, até 1598.

Pouco se sabe da infância de Cervantes, a não ser que sua família lutava contra dificuldades financeiras e transitava entre várias cidades: Alcalá, Valladolid, Córdoba. Em 1564, em Sevilha, Miguel teria estudado com jesuítas. Já em 1566, em Madri, há indicações que teria começado a escrever poesias. Em 1569, aos 22 anos, Cervantes teria ferido um pedreiro. Os biógrafos divergem quanto ao que teria acontecido. Segundo Trapiello, Cervantes teria ferido mortalmente o homem. Já Canavaggio afirma que Cervantes não o matou. De uma maneira ou de outra, foge para Roma. Lá, alista-se na Armada e, com o irmão mais novo, Rodrigo, luta contra os turcos em 1571 na batalha de Lepanto, na qual é ferido com dois tiros no peito e um na mão esquerda, que fica inutilizada.

Após a recuperação, Cervantes ainda participaria de novas batalhas antes de tentar voltar para a Espanha. Isso aconteceria em 1575 se ele e seu irmão não tivessem sido capturados por corsários e levados como escravos para Argel, no norte da África. Durante cinco anos, Cervantes viveu em cativeiro, à espera do pagamento de um elevado resgate. Seu irmão teria mais sorte e seria resgatado em 1577. Cervantes ainda amargaria quatro tentativas de fuga antes de poder voltar à Espanha, em 1580.

Aqui cabe um parêntese para a polêmica sobre a sexualidade de Cervantes. Em Um escravo chamado Cervantes, o dramaturgo e romancista espanhol Fernando Arrabal afirma, com base em documentos descobertos em 1820, que Cervantes teria sido homossexual. Trapiello aborda o assunto ao relatar as condições especiais de que Cervantes desfrutava no cativeiro, que poderiam ter resultado de uma ligação homossexual. Mas não dá crédito à versão.

O retorno de Cervantes à Espanha marcou sua integração aos meios literários. É quando escreve a novela A galatéia e peças teatrais. No plano amoroso, um caso com a mulher de um taverneiro, Ana Franca, daria a Cervantes, em 1584, uma filha, Isabel de Saavedra. No mesmo ano, casou-se com Catalina de Salazar. Segundo Trapiello, “o casamento de Cervantes é um dos mistérios mais indecifráveis de sua biografia”. Não duraria muito. Em 1587, Cervantes deixou a mulher.

Como não era possível viver apenas da literatura, Cervantes precisou encontrar uma ocupação para sobreviver. Trabalhou como comissário real da Armada espanhola e, mais tarde, como arrecadador de impostos. Mas nunca deixou de escrever.

O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, publicado em 1605, foi sucesso imediato. No mesmo ano, foi rodada uma segunda edição. “Os nomes de D.Quixote e Sancho estavam na boca do povo para apelidar a quem se parecesse com eles”, relata Trapiello. Tanto sucesso levou um escritor obscuro e oportunista, Alonso Fernández de Avellaneda, a publicar, em 1614, uma continuação da obra. Nessa altura, Cervantes já teria escrito mais da metade do segundo volume, mas teve tempo para incorporar uma bem-humorada reação à fraude literária. O volume saiu em 1615, dez anos após o primeiro.

Um ano depois, em 22 de abril de 1616, Cervantes morreu em Madri. Desde então, as hipóteses e suposições sobre passagens de sua vida alimentam disputas entre os chamados cervantinos. As dúvidas, porém, tendem a desaparecer quando a fonte é o próprio autor, até porque ele não era condescendente consigo próprio. Em Novelas exemplares, por exemplo, ele pinta um auto-retrato que é provavelmente a imagem mais próxima da aparência que teria tido:

“Este que aqui vedes de rosto aquilino, de cabelo castanho, testa lisa e descarregada, de alegres olhos e de nariz curvo,
embora bem proporcionado; as barbas de prata, que não há vinte anos eram de ouro, os bigodes grandes, a boca pequena, os dentes nem miúdos nem graúdos, pois não tem mais do que seis, e estes malpostos e pior dispostos, porque não têm correspondência uns com os outros; o corpo entre dois extremos, nem grande, nem pequeno; a cor viva, mais branca do que morena, as costas algum tanto encurvadas e os pés não muito ligeiros; este digo que é o rosto do autor de A galatéia e de D. Quixote, e de quem fez a Viagem ao Parnaso, à imitação da de Cesare Carali Perusino, e outras obras que por aí andam desgarradas, e talvez sem o nome de seu dono. Chama-se comumente Miguel de Cervantes Saavedra. Foi soldado muitos anos e cinco e meio cativo, onde aprendeu a ter paciência nas adversidades. Perdeu a mão esquerda de uma arcabuzada na batalha naval de Lepanto, ferida que, embora pareça feia, ele a tem por formosa, por tê-la recebido na mais memorável e alta ocasião que viram os passados séculos e esperam ver os vindouros, militando sob as vencedoras bandeiras do filho do corisco de guerra, Carlo Quinto, de feliz memória”.

Os primeiros exemplares de D. Quixote chegaram à América em 1605, no mesmo ano de sua publicação. É o que conta o escritor e historiador Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) no prefácio para a 3ª edição da José Olympio Editora, de 1958. Cascudo credita ao historiador cervantino Francisco Rodriguez Marin a informação de que, entre 1605 e 1606, já seriam cerca de 1.500 livros em terras americanas.

A obra chegou ao Brasil na versão original. A primeira tradução para o português só seria publicada quase dois séculos depois, em 1794. Segundo Sérgio Molina, um dos tradutores de D. Quixote, a obra de Cervantes foi convertida bem antes para o inglês (1612) e francês (1614). Molina explica a defasagem pelo hábito de os portugueses cultos lerem em castelhano.

D. Quixote é um marco na literatura mundial de todos os tempos. Nas palavras do escritor Mario Vargas Llosa, em Uma novela para el siglo XXI, para contar a saga quixotesca, Cervantes “revolucionou as formas narrativas do seu tempo e fincou as bases sobre as quais nasceria o romance moderno”.

Para Maria Augusta da Costa Vieira, professora de literatura espanhola da Universidade de São Paulo, há diferenças consideráveis entre as duas partes da obra, publicadas com dez anos de diferença. Na primeira, o fidalgo Alonso Quijano, leitor voraz de livros de cavalaria, resolve encarnar a figura de um cavaleiro andante e sair em busca de aventuras. Surge D. Quixote. Com seu fiel escudeiro, Sancho Pança, protagoniza momentos memoráveis. É armado cavaleiro em uma estalagem, desafia mercadores, luta contra moinhos de vento e combate gigantes.

A segunda parte é marcada pela reação de Cervantes à publicação de uma continuação apócrifa e pela introdução de um personagem, Sansão Carrasco, que vai pontuar as andanças de D.Quixote e Sancho Pança. É na segunda parte que o fidalgo se defronta com a sua Dulcinéia e que Sancho passa a ser governador de uma ilha. E, por fim, é quando D. Quixote volta para casa e morre.

Hoje, é possível encontrar, no Brasil, várias traduções de D. Quixote. A mais recente é a de Sérgio Molina para o primeiro livro, lançado pela Editora 34. Em edição bilíngüe, a tradução tem a seu favor o fato de manter o humor característico de Cervantes. O lançamento do segundo livro está previsto para o início do próximo ano.

Das traduções disponíveis, a mais popular e tradicional é a chamada “dos viscondes”, de Castilho e Azevedo, publicada pela primeira vez no Brasil nos anos 1970 e relançada pela Nova Cultural. De acordo com a professora Maria Augusta, que fez o prefácio para a tradução de Molina, o maior problema “dos viscondes” é ser marcada pela linguagem lusitana e por uma interpretação própria do século XIX. Isso dificulta a interação com o leitor. Outra tradução conhecida e respeitada é de Eugênio Amado, da editora Itatiaia, em dois volumes de 1997. Há também uma versão integral de bolso da LP&M, em dois volumes e uma edição luxuosa, de 2004, em capa dura, da Nova Aguillar.

No embalo das comemorações dos 400 anos de D. Quixote, o livro ganhou versão em cordel e adaptação crítica. D. Quixote em cordel, da editora LGE, foi escrito por J. Borges, com ilustrações de Jô Oliveira. É uma adaptação que transporta o fidalgo para o agreste. Em terras nordestinas, enfrenta cangaceiros e procura sua Dulcinéia em uma favela de Campina Grande. O livro fez o caminho inverso e já ganhou uma tradução para o espanhol. Em D. Quixote – quatro séculos de modernidade (Editora Novo Século), o tradutor Mário Amora Ramos analisa a obra, da qual faz uma adaptação condensada.

Quixote para crianças

Como costuma acontecer com os clássicos, D. Quixote ganhou, ao longo dos anos, diversas adaptações especialmente voltadas para o público infanto-juvenil. De reedições feitas por escritores brasileiros a versões em quadrinhos, há muita oferta nas livrarias com o objetivo de atrair o pequeno leitor para o universo quixotesco.

Entre os lançamentos deste ano, a Ediouro trouxe de volta o D. Quixote traduzido e adaptado pelo escritor Orígenes Lessa (1903-1986), que procurou dar ao texto espanhol um ritmo mais ágil e um humor mais contemporâneo.

Ana Maria Machado reescreveu o clássico de Cervantes em O cavaleiro do sonho – as aventuras e desventuras de Dom Quixote de La Mancha (Mercuryo Jovem). A história é ilustrada por 21 desenhos,inspirados no personagem
de Cervantes, feitos em 1956, por Cândido Portinari.

A obra também ganhou sua versão em quadrinhos nos traços de Caco Galhardo. Em Dom Quixote em quadrinhos (Editora Peirópolis), o cartunista mostra as passagens mais significativas da obra, com destaque para o humor e para a batalha contra os moinhos de vento. A mesma editora também lançou neste ano outra obra de Cervantes ilustrada por Caco Galhardo, Riconete e Cortadillo, com tradução de Sandra Nunes e Eduardo Fava Rubio.

A idéia de facilitar o contato dos jovens com a obra de Cervantes levou o escritor espanhol Agustín Sánchez Aguilar a fazer uma adaptação. Era uma vez Dom Quixote (Global Editora) foi traduzido pela escritora Marina Colasanti e traz ilustrações de Nivio López Virgil. Também com o objetivo de aproximar os leitores da obra-prima espanhola é que o escritor paulistano Leonardo Chianca e o ilustrador chileno Gonzalo Cárcamo lançaram Dom Quixote (DCL). O livro traz, em linguagem simples, além da adaptação, informações sobre a obra e seu autor.

Duas outras obras merecem destaque. Uma delas é a adaptação feita pelo poeta Ferreira Gullar, Dom Quixote de La Mancha (Revan), lançada em 2002, na qual o autor procurou manter o espírito da obra e ao mesmo tempo criar um canal de comunicação com o leitor. A outra é uma velha conhecida que, em 2006, completará 70 anos. É a adaptação feita por Monteiro Lobato (1882-1922), Dom Quixote para crianças (Brasiliense).

Segundo Marisa Lajolo, professora de literatura da Universidade de Campinas (Unicamp), em texto escrito para o Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, a obra de Lobato segue as regras do gênero adaptação infantil, condensando e fazendo uma seleção de algumas aventuras do fidalgo manchego. Lobato não só adaptou, mas reescreveu o clássico. Por meio da leitura que Dona Benta faz da obra para os personagens do Sítio, Lobato aproxima a linguagem dos leitores e traz para o universo de Emília, Narizinho e Pedrinho o mundo fantástico de Cervantes.

Há, no entanto, quem olhe com reservas iniciativas como essas. “Pode gerar no leitor a idéia de que já leu a obra e fazer com que deixe de aprofundar a leitura”, afirma a professora Maria Augusta da Costa Vieira.

Soldado e Escritor

1547 Nasce Miguel de Cervantes Saavedra

1551 O pai, Rodrigo, é preso por causa de dívidas

1566 A família instala-se em Madri

1569 Após incidente no qual teria ferido um homem, deixa Madri e vai morar em Roma

1571 Participa da batalha de Lepanto, contra os turcos. Ferido em combate, tem a mão esquerda inutilizada

1575 Capturado por corsários, é levado para Argel, com seu irmão Rodrigo, onde fica cinco anos em cativeiro

1581 Vai para Lisboa, onde escreve peças de teatro

1584 De um romance com Ana Franca, nasce Isabel de Saavedra. Casa-se com Catalina de Palacios Salazar

1585 Publica La galatea. Morte do pai

1587 É nomeado comissário real encarregado de recolher azeite e trigo para a Armada Invencível

1593 Morte da mãe. Publicação do romance La casa de los celos

1597 É preso em Sevilha, após ser condenado a pagar dívida exorbitante

1598 Deixa a prisão. Morte de Ana Franca

1605 É publicada a primeira parte de Dom Quixote

1613 Ingressa na Ordem Terceira de São Francisco. Publicação de Novelas exemplares

1614 Surge uma continuação de Dom Quixote, escrita por Avellaneda

1615 Cervantes publica a segunda parte de Dom Quixote

1616 Morre em Madri, no dia 22 de abril

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Fogo nas entranhas




Edson Cruz
sonartes@cronopios.com.br
Poeta

O romance Fogo nas entranhas, pelo que nos consta, foi a estréia de Almodóvar no gênero, lá pelos idos de 81, longe ainda da produção cinematográfica pela qual viria a se tornar uma referência do cinema espanhol moderno. O livro esgotou-se rapidamente e, por estas bandas, já está na quinta reimpressão desta coleção que recupera, com bom gosto e estilo, livros raros da literatura underground e folhetinesca: a coleção Babel.

Desconcertante este Almodóvar. Ao terminar de ler o livro não sabemos por onde começar a falar sobre ele. Se começamos pelas entranhas, pelo que recobre as entranhas, ou mesmo, pelo que penetrou nas entranhas. Em todo caso, há um calor que emana pelo texto e vai crescendo até se tornar puro fogo. Um fogo que queima as bacurinhas das mulheres madrileñas retratadas, e que se espalha, acabando por consumir a todos como lenhas numa Madri em chamas.

O bacana do livro é a forma direta, sem firulas, e irônica como são narrados os acontecimentos. Acontecimentos às vezes inusitados, que poderiam ser inverossímeis, mas narrados como são, nos parecem histórias mais do que reais. Enredos de um filme de Almodóvar. Um estilo sem pretensão de profundidades, mensagens, ou outras moralidades, e que por isso mesmo encanta e nos dá prazer.

O romance, pelo que nos consta, foi a estréia de Almodóvar no gênero, lá pelos idos de 81, longe ainda da produção cinematográfica pela qual viria a se tornar uma referência do cinema espanhol moderno. O livro esgotou-se rapidamente e, por estas bandas, já está na quinta reimpressão desta coleção que recupera, com bom gosto e estilo, livros raros da literatura underground e folhetinesca: a coleção Babel.

As teorias e postulações críticas que visam compreender o gênero chamado de romance sempre deixaram a desejar, em todos os tempos. Há sempre aquela produção que surge para desbancar as formulações mais elaboradas e fechadas. Produções que exigem dos críticos reformulações de escopo e postulados. Não que Fogo nas Entranhas tenha sido gerado com esta intenção, nem que seja um exemplo acabado de romance esteticamente revolucionário, mas a simplicidade de suas formulações atinge por vezes uma poesia estranha, que muitas vezes obras de maior fôlego, e rebuscamento, ficam longe de atingir.

Parece-me que alguns romances são impermeáveis a um olhar mais tradicional da crítica literária. Toma-se o romance, quase sempre, a sério demais, como se ele se tratasse de um documento de época, uma confissão, ou uma história autêntica, pessoal. Quando a seriedade do olhar não encontra ressonância na obra, descartam-na como sendo irrelevante para a arte literária de uma época.

Acontece, por vezes, que a literatura nas mãos de um ‘artista’ tem sempre um objetivo estético e que - mesmo não compreensível nos parâmetros que estamos acostumados - possui uma coerência interna que se afina e se afirma com o diapasão de quem a produz.

É o que acontece com este pequeno romance de Almodóvar. Um recorte da vida que obedece a propósitos específicos. Revestido de uma linguagem paródica, intensifica nossa relação com a vida e nos faz aceitá-la com toda a carga de magia e absurdo que possa nos acarretar.

A graça deste romance está na forma como ele desenvolveu a estória de Chu Ming Ho. Um chinês que chegou à Espanha nos anos 50 e prosperou, pois era hábil, astuto e artesão. Ou será que prosperou por que era chinês?

Tudo é contado de maneira não linear, como uma história em quadrinhos entremeada de várias tramas paralelas, até chegar ao nó central que as unifica e dá sentido: o testamento do chinês.

Abandonado pelas cinco amantes, que nos são apresentadas com vagar, este próspero industrial de absorventes femininos prepara uma vingança flamejante às suas ex, e por extensão, a todas as mulheres e mesmo a toda a cidade.

O Testamento

“...trabalhei minha vida inteira com e para as mulheres, e nunca cheguei a conhecê-las. Só descobri uma coisa: louras, morenas, ruivas, altas ou baixas, todas são iguais. Umas vadias. Ainda assim, reconheço que devo meus melhores momentos a elas - e os piores também. Mas não me arrependo de nada. Dediquei todos os dias da minha existência a esse milagre que elas guardam no meio das pernas, uma coisa tão delicada que justifica todos os meus esforços. Por isso não quis ir embora sem render-lhes um pequeno tributo: meu último modelo de absorvente, diminuto, transparente, que estimula, tonifica, desinfeta, com vitaminas E e U, cloruto potássico, etc. Utilizável todos os dias do mês, e não apenas no período da menstruação. Como prova de agradecimentos, determinei que durante uma semana todas as clientes possam ter de graça um pacote de absorventes. Depois, o artigo começará a ser vendido normalmente.

Deixo minha indústria para aquelas que foram minhas principais amantes, ou seja: Diana, a orgulhosa; Mara, a cínica; Katy, a abelhuda; Lupe, a hippie; e Raimunda, a freira. Podem vender tudo, ou fazer o que quiserem. Só imponho uma condição: que durante meu enterro, e na presença de um tabelião, as quatro usem um dos meus absorventes último modelo. Acho que tenho direito a esta homenagem póstuma. E fico satisfeito em saber que sejam elas as primeiras a desfrutar de todas as suas vantagens. A que por algum motivo se negar, ficará automaticamente excluída da herança.

Não sinto rancor por nenhuma. Adeus”.

O que se segue a partir daí me lembrou o romance Ensaio sobre a Cegueira de Saramago. Só que Saramago é grave e Almodóvar hilário. Em Almodóvar as mulheres ficam cegas é de vontade de dar depois de usarem este bendito absorvente. As caras ficam crispadas e os olhos selvagens a cata de um macho que possa aplacar o furor uterino que lhes consome. Claro que os homens não dão conta do recado. Alguns até tentam. Outros alegram-se pela oportunidade de tirar a barriga da miséria, ou melhor, o peru. Mas o prazer é fatal, pede seu quinhão de vida em troca.

Instaura-se a peste pós-moderna. O êxtase, o céu e o inferno têm moradas em Madri. O esplendor do caos deita-se e copula com todos. Como apagar esta fogueira que se consome? Como é Almodóvar, a cura não existe, o efeito não se desvanece de uma hora pra outra e tudo volta ao ‘normal’. A chama continua com suas labaredas. Você pode fugir delas, se refugiar, se embebedar, até dormir em paz, mas elas continuam a arder.

Ardem tanto que há relatos e relatos de mulheres e homens que depois de lerem Fogo nas Entranhas saíram por aí com uma vontade danada de dar. Claro que levaram quilos de camisinha na bolsa, pois já não estamos mais em 81, né?

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

John Coltrane: a celebração jazzística do amor supremo ao Divino

Jorge Sanglard
jorgesanglard@yahoo.com.br
Jornalista, pesquisador e produtor cultural

Passados 45 anos da gravação histórica de A Love Supreme por John Coltrane, em 9 de dezembro de 1964, no Van Gelder Studio, em Englewood Cliffs, New Jersey, e 42 anos após a morte do saxofonista, ocorrida em 17 de julho de 1967, sua música permanece viva e desafiadora, pois foi elaborada como uma prece para vencer o tempo e para celebrar o supremo amor ao Divino. Depois de ter editado, no Brasil, o livro “Kind of Blue – A história da obra-prima de Miles Davis”, a Editora Barracuda lançou em 2008 a edição brasileira de outra preciosidade do jornalista norte-americano Ashley Kahn: “A Love Supreme – A criação do álbum clássico de John Coltrane”. E lançou um feixe de luz sobre esta obra-prima.

O livro anterior representou um mergulho fundo em uma das criações mais inventivas do universo jazzístico, o disco Kind of Blue, um autêntico divisor de águas na trajetória revolucionária de Miles Davis, trazendo prefácio de Jimmy Cobb, baterista e único músico vivo do sensacional sexteto do trompetista que atuou nas duas sessões de gravação em 1959. Já o lançamento em língua portuguesa de “A Love Supreme – A criação do álbum clássico de John Coltrane” revela os bastidores da gravação desta preciosidade jazzística. Assim como Kind of Blue, A Love Supreme também é considerado uma das mais significativas expressões musicais do século XX e Miles Davis (1926 – 1991) e John Coltrane (1926 – 1967) se projetaram como dois ícones do jazz moderno.

Ashley Kahn afirma que, no santuário do jazz, Kind of Blue é uma das relíquias sagradas e situa A Love Supreme como uma criação musical de Coltrane para presentear o Divino, um marco do jazz espiritual.

No prefácio de “A Love Supreme – A criação do álbum clássico de John Coltrane”, lançado originalmente nos Estados Unidos em 2002, o baterista Elvin Jones (1927 – 2004) deixaria claro: “Faltam-me palavras para dizer quanto tenho orgulho de ter feito parte do quarteto que gravou A Love Supreme, parte de um grupo que tocou e cresceu junto. Foi uma banda que me deu liberdade para explorar a música, que era um convite à inovação. Não tocávamos seguindo regras – elas não existiam ali”.

O saxofonista tenor John Coltrane (1926 – 1967), o baterista Elvin Jones, o contrabaixista Jimmy Garrison (1933 – 1976) e o pianista McCoy Tyner (único atualmente ainda vivo dos integrantes do quarteto) conseguiram, neste disco, criar aberturas para além de seu tempo. E desenvolveram naturalmente as idéias musicais do compositor, articulando um vôo sonoro livre, pleno e intenso, procurando extrair a essência da música numa oferenda a Deus. Ao expressar toda a força inventiva, musical e espiritual de Coltrane, a suíte A Love Supreme simboliza a base de uma nova concepção sonora ao romper todos os limites musicais da época e é um atestado de fé do autor ao convidar os ouvintes à reflexão. Obra ímpar na produção musical de Trane, o disco é um legado do jazzista, inspirado na fonte profunda do blues, às gerações que o sucederiam, e sua música, ora vigorosa e excitante ora lírica e envolvente, é um exemplo incontestável de que a arte verdadeira é eterna. “Quero ser uma verdadeira força do bem”, declararia o saxofonista em 1966.

Dividida em quatro partes, “Acknowledgement” – Admissão (7:43); “Resolution” – Resolução (7:20); “Pursuance” – Prosseguimento (10:42) e “Psalm” – Salmo (7:05), a suíte teria, segundo Elvin Jones, na carta e na prece impressas na contracapa do LP original, uma continuidade, uma quinta parte, ou uma parte final, onde Coltrane expôs sua alma. O próprio John Coltrane revelaria: “durante o ano de 1957 experimentei, pela graça de Deus, um despertar espiritual que me levaria a uma vida mais rica, completa e produtiva”. 1957 marcaria a trajetória do saxofonista como o ano do rompimento com as drogas e a busca de um novo caminho na vida e na música. A gravação de A Love Supreme, em 1964, seria o tributo de Trane exaltando a misericórdia de Deus.

Ashley Kahn garante que “Coltrane tinha fé – em si mesmo, em sua arte e em seu público – de que conseguiria o nível de comunicação e elevação espiritual que pretendia com sua música”. O autor revela ainda que o inverno de 1965-66 traria todos os frutos de A Love Supreme com o saxofonista ainda vivo e em plena atividade musical. De todas as condecorações públicas que coroaram as realizações musicais de Coltrane ao longo dos anos, nenhuma se compararia aos prêmios e à atenção que o disco atraiu nas poucas semanas após um ano de sua gravação e de seu lançamento. Segundo Kahn, uma votação popular feita pela revista norte-americana Down Beat, a principal publicação de jazz dos EUA na época, teve como resultado a inclusão de Coltrane no Hall da Fama da revista (“algo inédito para um músico ainda vivo”) e o recebimento de prêmios de saxofonista tenor do ano e de álbum do ano.

Kahn enfatiza que, enquanto a canção gravada por Trane mais requisitada ainda é “My Favorite Things” (R. Rodgers – O. Hammerstein), o primeiro lugar como fonte de renda – vinda do licenciamento e da difusão de músicas, além da venda de discos – permanecia com A Love Supreme, até a publicação do livro nos EUA, segundo dados fornecidos pela viúva do saxofonista, Alice Coltrane (1937–2007).

O saxofonista Frank Lowe, um dos discípulos de Trane, assegura no livro que o disco arrombou as portas e foi como uma revelação: “Eram os anos 60, e A Love Supreme parecia expressar muita negritude. Em uma época em que as pessoas falavam sobre o negro, parecia que Trane dizia mais com sua música que os caras com palavras. Com certeza, era música negra, mas ia além disso. Tinha uma universalidade que conseguia acolher outras coisas mantendo sua negritude”.

Para Coltrane,“a reação emocional é o que interessa”, declararia duas semanas antes de gravar seu disco que se tornaria uma obra-prima, “desde que exista alguma sensação de comunicação”. E Trane, ao falar do disco, enfatizaria: “Para mim, quando vou de um movimento calmo para outro de tensão extrema, os únicos fatores que me movem são emocionais, ficam excluídas todas as considerações musicais”. Afinal, o próprio compositor escreveu no texto/prece de A Love Supreme: “Um pensamento é capaz de produzir milhões de vibrações”. O filho do saxofonista, Ravi Coltrane, afirma no livro: “A Love Supreme é uma coisa muito profunda e especial, e sempre foi um ponto bem sensível para muita gente”.

O engenheiro de som Rudy Van Gelder assegurou a Ashley Kahn que Trane, Jones, Garrison e Tyner tocaram a suíte inteira em uma única sessão e também disse que nunca soube que a idéia era que fossem quatro partes até ler o texto de Coltrane para o álbum. Assim, argumenta Kahn, todos os detalhes que precisavam ser conhecidos sobre as partes da suíte – escolha de tom, como cada parte se ligaria à seguinte, quando ele entraria cantando durante a abertura – foram discutidos na noite de 9 de dezembro de 1964 no estúdio de Van Gelder. No livro, Kahn garante que, desde os primeiros momentos de seu primeiro solo em A Love Supreme, Coltrane explora amplamente a emoção: “Como um orador em aquecimento, seu saxofone começa suave, torna-se insistente, partindo de um simples riff lírico para altos níveis de alegria e graça, solenidade e pesar. Coltrane acrescenta um toque de urgência a seu som raspado característico. Quando ele ergue sua ‘voz’ no final de uma passagem, Jones e Tyner aumentam a intensidade para reforçar sua ênfase”.

O jornalista Ashley Kahn avalia que as melodias do disco abriram portas pelas quais o quarteto passava em uma montanha-russa de dinâmica com noção de tempo precisa: “A interação de seus estilos distintos era poderosa: os acordes que geram tensão de Tyner, a bateria em êxtase de Jones, as linhas de baixo fluidas de Garrison. Os solos incansáveis de Coltrane espiralavam desde sussurros meditativos a ferozes gritos engasgados com o ritmo experiente de um pastor dominical”. Segundo Kahn, o disco reuniu tudo isso em uma mistura que expôs as raízes e as influências do quarteto: o efeito propulsor e excitante dos polirritmos africanos, os tempos lúgubres do jazz modal, o lamento melancólico da música popular do Extremo Oriente, a urgência do free jazz, a agitação do bebop, a sensação familiar do blues e a liberação orgástica do gospel.

Saxofonista também discípulo de Trane, Wayne Shorter, que é budista, declara no livro: “Sei que o avô dele era pastor, e ele viveu essa experiência. Quando Coltrane começou a cantar as palavras ‘a love supreme’, não apelou para a habilidade vocal de algum cantor de sucesso. Acredito que ele afirmou ali que você deve depender de si para se comunicar. Acho que ele voltou para o ponto de partida, no qual a voz é a primeira proclamação da sua humanidade – sua humanidade é seu instrumento”.

John Coltrane escreveu no texto/prece na contracapa do disco: “Palavras, sons, fala, homens, memória, pensamentos, medos e emoções – tempo –, tudo se relaciona... tudo vem de um lugar”. E a música de A Love Supreme, na sua essência, é a expressão deste relacionamento pleno, deste supremo amor.

sábado, 11 de setembro de 2010

Sob o signo do mau humor

Jerônimo Teixeira
jeronimoteixeira@abril.com.br
Jornalista

Em obra dos anos 50 só agora lançada no Brasil, o filósofo alemão Theodor Adorno traça paralelos entre astronomia e fascismo. É um exemplo típico de seu pensamento muitas vezes brilhante – mas propenso a uma enorme rabugice

Que a astrologia é uma rematada bobagem é fato bem estabelecido. Não há fundamento para a crença pseudocientífica de que a mecânica celeste influencia a vida amorosa ou profissional do leitor de horóscopos. Para o filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969), contudo, o problema é mais sério: a astrologia seria uma forma de dominação social, aparentada ao totalitarismo de Hitler e Stalin. Adorno descobre um chamado ao conformismo nas colunas astrológicas – e, com recurso à psicanálise, tenta demonstrar que a atribuição do destino às estrelas guarda "disposições paranóicas" similares àquelas mobilizadas pelo nazismo. Esse desconcertante paralelo está desenvolvido em As Estrelas Descem à Terra , livro dos anos 50, parte de uma coleção da editora da Unesp que vai lançar obras do filósofo ainda não conhecidas no Brasil (na mesma série, já saiu uma Introdução à Sociologia). Não é o título mais representativo de Adorno, mas, pelo texto um pouco mais pedestre (nem por isso é leitura leve), pode ser uma porta de entrada para quem queira ter uma idéia do que seja a obra de um dos mais influentes (e mais rabugentos) filósofos do século XX. Sua análise da coluna astrológica do jornal Los Angeles Times é muitas vezes brilhante – mas há algo de abusivo no modo como ele recorre aos conceitos de Freud para indicar similaridades entre o mapa astral e a suástica.

Adorno foi o expoente da chamada Escola de Frankfurt, que também congregou pensadores como Herbert Marcuse e Max Horkheimer. Foram os proponentes da chamada "teoria crítica", que tentou entender o capitalismo e os totalitarismos como manifestações da mesma lógica histórica. Nas mãos de Adorno, a teoria crítica voltava-se contra a "razão burguesa", que em sua origem, no iluminismo, teria o potencial de libertar o homem de seus medos primitivos, mas acabou degenerando em técnicas de dominação social, que vão desde a organização burocrática até o cinema, a televisão – e o horóscopo. Adorno também cultivava sua macumba profana: o marxismo. Mas não foi dos mais ortodoxos. Em sua obra – hoje ainda influente entre filósofos e críticos literários de esquerda –, são escassas as referências ao proletariado. Esteta que admirava o modernismo de Beckett, Kafka e Proust, ele dificilmente teria o que conversar com um operário.

Além de excelente crítico literário, Adorno entendia muito de música – foi aluno do compositor Alban Berg e serviu como consultor musical para Thomas Mann quando este escreveu Doutor Fausto. Em Marx (e Hegel), Adorno buscou sobretudo um certo modo de argumentar – a famigerada dialética. Com um estilo tortuoso mas elegante, os ensaios de Adorno não se importam de deixar contradições em aberto, para desespero do leitor cartesiano. Um bom exemplo é a afirmação pela qual ele é mais lembrado: a poesia não é possível depois de Auschwitz. A frase original, na verdade, é mais complicada: "Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas". Não se depreende daí que Adorno estivesse propondo que os poetas se calassem. Eis a tal contradição dialética: a impossibilidade da poesia é o que a tornaria cada vez mais necessária.

Auschwitz é o emblema perfeito para o pensamento de Adorno, que lidou com o trauma profundo da experiência totalitária. De ascendência judaica, ele passou os anos do nazismo no exílio, primeiro na Inglaterra e depois nos Estados Unidos. Catastrofista, identificava na democracia americana sintomas do totalitarismo que o expulsara da Europa. Nos Estados Unidos, escreveu, em parceria com Horkheimer, uma de suas obras mais influentes,Dialética do Esclarecimento – crítica de longo curso aos rumos da civilização capitalista. É nesse livro que aparece pela primeira vez o conceito de "indústria cultural", tão levianamente citado hoje. Adorno não gostava de cinema. E ficou conhecido por sua oposição ranzinza ao jazz. Por causa dela, foi acusado de racista – e respondeu com ironia típica: "Não tenho nenhum preconceito contra os negros, a não ser que nada, exceto a cor, os distingue dos brancos".

No fim da vida, Adorno viu-se sob o fogo pesado do movimento estudantil. Acossado por barulhentos protestos, teve de interromper um curso que dava em Frankfurt. Sempre reticente com os movimentos de massa, Adorno reclamava, em uma entrevista de 1969, do patrulhamento que sofrera então. "Jamais ofereci em meus escritos um modelo para quaisquer ações. Sou um homem teórico", disse. Uma lição que os acadêmicos de passeata do Brasil de hoje, prontos a largar os livros para invadir reitorias, poderiam aprender.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Robert Wise (1914-2005)




João Batista de Brito
jbbb@openline.com.br
Critico de cinema

Nascido na pequena Winchester, no estado de Indiana, meio-oeste americano, Robert Wise começou sua carreira no cinema como montador da RKO. Dessa fase inicial há dois trabalhos seus dignos de nota, um positivamente, o outro, de forma negativa.

Foi ele quem fez a montagem brilhante do filme mais prestigiado do mundo, o Cidadão Kane (1941) de Orson Welles, mas, em compensação, também foi ele quem assinou os drásticos cortes que prejudicaram indelevelmente o filme seguinte de Welles, Soberba (1942), embora, claro, saiba-se que foi obrigado pelos estúdios a cometer tal crime, conforme ele mesmo conta em carta ao próprio Welles.

Como cineasta, começou dirigindo pequenos filmes de terror, mas, no dia em que lhe foi dada a chance de ousar, fez o que ainda hoje é considerado pela crítica internacional o melhor filme sobre Boxe já realizado, Punhos de campeão (The set up, 1949), adaptação de (pasmem!) um poema de Joseph Moncure March, com Robert Ryan (ator preferido de Wise) como esse pugilista maduro que literalmente perde os punhos numa luta decisiva.

Talvez sem o mesmo impacto, mais tarde Wise faria outro filme de boxe importante, Marcado pela sarjeta (Somebody up there likes me, 1956), sobre a vida e a carreira do verídico ídolo americano Rocky Graziano, um papel que, reservado para James Dean, terminou, em vista do acidente fatal com o ator naquele ano, ficando para Paul Newman.

Wise foi bom em vários gêneros, do western (Honra a um homem mau, com Jamas Cagney e Irene Papas) à estória de amor (Dois na gangorra, com Shirley MacLaine e Robert Mitchum), da ficção científica (o ainda hoje delicioso O dia em que a terra parou, com Michael Rennie e Patrícia Neal), ao relato biográfico, como o contundente Quero viver (I want to live, 1958), livremente baseado no caso da ré Bárbara Graham que, apesar de todos os indícios de inocência, seria condenada à cadeira elétrica, papel que deu um Oscar a até então nem tanto acreditada Susan Hayword.

No filme histórico é que não se saiu muito bem: é pelo menos o que atesta esse Helena de Tróia, de 1955, um épico cheio de clichês, com roteiro, cenário e atores pasteurizados, entre estes – engraçado – uma Brigitte Bardot ainda mignon, no papel secundário de uma escrava espartana.

Do grande público, Wise é mais lembrado por dois premiados super-musicais dos anos sessenta, Amor sublime amor (West Side Story, 1961, com Natalie Wood e Richard Beymer, e co-dirigido por Jerome Robbins), que refazia o mito de Romeu e Julieta nos arrabaldes de Nova York, e A noviça rebelde (The sound of music, 1965, com Julie Andrews e Christopher Plummer), a lenda romântica dessa freirinha austríaca que gostava mais de cantar que de rezar, e que vai ser preceptora numa família aristocrática e, bem, o resto da estória vocês com certeza sabem...

A partir da década de setenta Wise comercializou-se e decaiu vertiginosa e irrecuperavelmente, porém, quem julga a compleição de sua filmografia deveria levar em conta que ela faz parte de um contexto mais amplo e, de alguma forma, é só o reflexo do que, em termos gerais, aconteceu a Hollywood. De qualquer modo, para o bem ou para o mal, não sei qual dos dois, do final dessa década é de sua autoria a filmagem – primeiro episódio -- da série televisiva Jornada nas Estrelas (Star Trek, the motion picture, 1979).

De minha parte, o Wise que guardo no setor afetivo de minha memória, posso dizer o meu “xodó wiseano”, é um filmezinho quase B do final dos anos cinqüenta de que quase ninguém mais se recorda, chamado Odds against tomorrow (em português: Homens em fúria, 1959), um policial noir, denso, tenso, forte e meio pessimista, em que três cidadãos (o branco Robert Ryan, o idoso Ed Begley e o negro Harry Bellafonte) planejam o assalto a um banco e são atrapalhados pelo racismo. Sabe como é, cinema sem pretensão, mas do melhor: aquele tipo de filme pequeno cuja excelência depende justa e misteriosamente de sua pequenez. Se puderem, confiram.

Em tempo: lamentavelmente, poucos títulos de Robert Wise podem ser encontrados em nossas locadoras, segundo pesquisa que fiz, rápida e sujeita a correções, somente quatro: Amor sublime amor, A noviça rebelde, O dia em que a terra parou e Helena de Tróia.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Tolstói: a literatura que não é literatura




Rubens Figueiredo
rubensfigueiredo@gmail.com
Escritor e tradutor

Em conflito permanente com a sua arte, Tolstói nos mostra como o nexo inevitável entre literatura e vida social pode se transformar numa vantagem artística

Nos 60 anos que vão do início da década de 1850 até 1910, data de sua morte, Liev Tolstói sempre escreveu contos e romances. Ao contrário do que se repete tantas vezes, Tolstói jamais parou de escrever ficção e, ao morrer, deixou inéditas ou em andamento obras-primas como Hadji-Murat ou Padre Sérgio. O mal-entendido resulta, em grande parte, das objeções que o próprio Tolstói, desde jovem, levantou contra a atividade e contra o papel de um escritor no quadro da sociedade russa e do mundo moderno em geral.

Se Tolstói nunca fez segredo do seu desconforto no convívio com escritores nem do seu mal-estar por ser autor de romances e contos, suas críticas só se tornaram mais veementes e mais elaboradas a partir do romance Anna Kariênina. Ao redigí-lo (na década de 1870), Tolstói chegou a declarar numa carta: "Nosso ofício é horrível. Escrever corrompe a alma". E daí para frente, construiu uma verdadeira rede de questionamentos dirigidos não só contra a literatura, mas contra a arte ocidental, em particular, mais tarde reunidos no livro O que é arte?

Drasticamente censurado pelo governo czarista e tratado, ainda hoje, com desdém ou perplexidade, esse livro, no entanto, contém hipóteses que merecem mais atenção. Sobretudo quando Tolstói põe em dúvida a reivindicação, tão cara ao século 20, de uma autonomia para a arte e quando expõe suas desconfianças sobre o significado de tal pretensão. E também quando mostra, como que pelos bastidores das obras, que ao tentar se esquivar de seus efeitos formadores e em última instância educadores, a arte abre espaço para a manipulação e o autoritarismo, com um caráter de classe. A rigor, Tolstói acusa a arte de servir como legitimadora das desigualdades sociais, reforçar as distinções de classe e realimentar o mecanismo que reproduz as estruturas da sociedade.

Com isso em mente, podemos entender melhor, por exemplo, a marcante tendência antiartística presente na prosa de Tolstói desde os seus primeiros textos. Os Contos de Sebastópol, por exemplo, escritos na década de 1850, recapitulam episódios da árdua campanha militar russa na Criméia e no Cáucaso, da qual Tolstói participou como oficial. Sem respeitar fronteiras ou hierarquias, esses três contos já misturam ficção, memória, reportagem, etnografia, polêmica e relato de viagem, numa prosa que tende a ser despojada de requintes poéticos e até bruta, na sua objetividade. "Nunca vi lábios cor de coral, mas vejo lábios da cor de tijolo", diz numa anotação, feita à margem de seus rascunhos de Infância, livro de memórias escrito pouco antes.

Em Contos de Sebastópol, a exemplo de obras posteriores, Tolstói mergulha o leitor num ambiente onde estão concentradas e em conflito convenções retóricas diversas. Pois os contos querem ser lidos ora como ficção, ora como etnografia, ora como narrativa de viagem, ora como polêmica política. Em suma, desde o início de sua carreira, Tolstói recusa, tanto para o autor como para o leitor, o privilégio e os prazeres da posição de um observador desinteressado, prazeres supostamente reservados à arte. Em troca, lança sobre o autor e o leitor todo o peso da responsabilidade daquilo que está sendo representado. A fim de minar a autonomia e o distanciamento artístico, sua tática é a de uma arte que é e não é arte, uma literatura que é e não é literatura.

Portanto, dizer que Tolstói abandonou a literatura parece uma forma de esquivar-se da consistente crítica que ele formulou ao papel histórico da arte, em geral. Da mesma forma, à luz das circunstâncias históricas, retratá-lo como um doutrinador religioso parece um expediente destinado a neutralizar a potência da sua crítica ao mundo moderno. Na verdade, não se pode fazer justiça a Tolstói, nem aos escritores russos em geral, sem uma ideia da posição da Rússia no mundo, naquela época.

O trauma da modernização

A introdução de modos de vida capitalistas e europeus na Rússia foi especialmente traumática. Trata-se de uma sociedade que tinha presentes formas de vida próprias, de feição e conteúdo orientais e medievais, e que precisava modernizar-se aos saltos, e não gradualmente, como haviam feito os países ocidentais dominantes, seus modelos. O choque foi ainda maior porque a Rússia era um país orgulhoso de suas tradições, provido de uma religião própria e de formas muito peculiares de organização social. Se a isso acrescentarmos as ambições imperiais dos czares que, a partir do século 17, levaram a Rússia a expandir as fronteiras e russificar populações vizinhas, podemos ter uma ideia da intensidade do conflito vivido por aquela sociedade, ao sentir-se em posição de inferioridade em face dos países ocidentais dominantes.

Em contrapartida, a consciência de que era preciso transformar a fundo a sociedade russa gerou um debate intelectual de uma riqueza e de um vigor talvez sem paralelo. Trata-se do confronto entre os projetos da modernidade liberal e de modernidades alternativas (como o historiador Daniel Aarão Reis bem definiu a situação). Em virtude da censura, mas também de fatores culturais mais profundos, os canais de expressão desse debate não eram os mesmos dos países ocidentais e incluíam, com grande peso, a literatura e a teologia.

Longe de se limitar às palavras, tal debate, em regra, desaguava numa militância ferrenha, da qual os escritores participavam, sem dissociá-la de cada uma de suas escolhas estéticas. Por outro lado, nesse debate, as linguagens artística e a religiosa contêm muito mais do que aquilo que as sociedades ocidentais estavam habituadas a atribuir a elas. Tais linguagens, na Rússia, não eram um mero disfarce, tampouco uma metáfora, mas sim um veículo poderoso em si mesmo. Pois permitiam pôr em questão os pressupostos não só do discurso da ciência dos países dominantes − sentida como ponta de lança da sua dominação −, como também dessas mesmas linguagens, em seu modelo ocidental.

Tolstói, portanto, foi um dos expoentes desse debate nacional e sua literatura, assim como suas polêmicas, não podem ser bem entendidas na ausência desse componente. Da mesma forma que pôs em questão a arte estabelecida, Tolstói foi um crítico ferino da religião institucional. O rito ortodoxo é duramente desmistificado no romance Ressurreição (de 1899), por via da técnica do estranhamento (da qual Tolstói foi o mestre, segundo o teórico russo Chklóvski). Mas já em Guerra e paz e Anna Kariênina, romances anteriores, Tolstói se mostrou implacável com a piedade e a caridade religiosas das classes privilegiadas e com seus modismos religiosos.

Por outro lado, as últimas páginas de Ressurreição dão prova de uma desenvoltura nada cerimoniosa com os dogmas, ao emendar livremente as palavras de Cristo, no Evangelho. De resto, será muito difícil encontrar algum teor sobrenatural, milagroso ou criador na forma como Tolstói emprega a palavra "Deus" (a qual, aliás, está longe de ser frequente). Por último, vale a pena sublinhar que Górki, em geral um observador muito agudo, deixou registrada, em suas lúcidas memórias sobre Tolstói, a impressão de que estava diante de um ateu.

A ficção como experiência de pensamento

De todo modo, o que importa é que literatura e religião, no caso de Tolstói − como em muitos escritores russos −, são linguagens apontadas para uma intervenção concreta nas formas de vida presentes. E os três grandes romances de Tolstói denotam a agudeza crescente da sua visão crítica. Guerra e paz tende a mostrar uma imagem menos questionadora da nobreza russa: em face do inimigo externo − as tropas de Napoleão −, as diferenças internas ficam um pouco na sombra.

Por outro lado, os expedientes mentais usados pelos países dominantes para justificar sua agressão e sua superioridade, em relação aos russos, são postos em relevo. Anna Kariênina já examina uma sociedade em crise − conjugal, familiar, cultural e social. As classes populares aparecem como uma brecha, uma janela: ou uma fonte de ar puro e renovador para o herói nobre, ou um índice do conflito social subjacente. Já em Ressurreição, o conflito é aberto, declarado e frontal. O romance trata do mundo prisional e judiciário, no qual as classes populares são segregadas e eliminadas, sob a bênção do discurso racional e humanista da justiça, da lei e do progresso.

Todavia, seria enganoso supor um fio de progressão contínua que uniria os três grandes romances. Em Guerra e paz, há mais do que simples prenúncios de tudo aquilo que virá em Ressurreição. Observando em retrospecto, percebe-se que as mesmas questões se apresentavam a Tolstói desde o início e, no máximo, pode-se dizer que as suas hesitações diminuíram com o correr dos anos.

Mesmo no aspecto da linguagem, as inquietações do escritor levaram-no, por exemplo, a escrever, quase ao mesmo tempo, obras tão díspares como o conto O prisioneiro do Cáucaso e o romance Anna Kariênina. No conto, Tolstói experimenta uma prosa de fortíssima concisão e simplicidade, com marcante predominância do período simples e sem nenhuma digressão. Um estilo elaborado a custo e com rigor, à luz das narrativas orais populares e dos textos destinados à alfabetização de crianças camponesas − textos que o próprio Tolstói criava, junto com seus pequenos alunos. Em contraste, no romance Anna Kariênina, o autor lança mão de uma frase de arquitetura complexa, longa, desdobrada em ramificações sintáticas de grande fôlego. Qual dos dois escritores é Tolstói?

Tudo indica que Tolstói − a quem tantos acusam de doutrinário − não tinha resposta pronta e fixa para as questões que ele mesmo formulava. Em troca, não se cansava de se impor problemas, nem de arriscar respostas fortes. Em boa parte, seus romances e contos constituem experiências de pensamento, testes e hipóteses, experimentos para os quais convoca os seus leitores. As constantes hesitações e dúvidas de seus personagens dão um bom testemunho desse processo.

Isso faz mais sentido ainda se pensarmos que, num célebre comentário a Guerra e paz, Tolstói afirmou que todos os livros russos relevantes se desviavam dos modelos literários europeus.

Ou seja, os problemas estavam postos, à frente de todos, mas a forma de pensar sobre eles tendia a vir pronta dos países dominantes, não só nos modelos da arte, mas também nos modelos do próprio pensamento social. A resistência de Tolstói à arte literária caminha em paralelo à hipótese de que narrar compreende a possibilidade de criar formas específicas de pensar e de conhecer. É bem possível que por isso ele nunca tenha sido capaz de abandonar a literatura, a despeito das suas repetidas e sinceras objeções e queixas contra a arte.

Hoje, quando a literatura carece tanto de encontrar o seu caminho e de renovar o seu papel crítico no mundo contemporâneo, pode ser de grande ajuda reexaminar com olhos menos arrogantes todo o pensamento e o rico percurso de Tolstói.