terça-feira, 10 de agosto de 2010

Gregório, Jorges e nossos Efes de cada dia

(Marcos Garuti)

Rogério Menezes
rogerio_menezes@uol.com.br
Jornalista e escritor,

Não existe literatura baiana, acriana, texana ou escocesa. Existe, e sempre existirá, apenas literatura (boa ou má)

Não devo, e não quero, enganá-lo, caro leitor, e lhe abro o coração já neste primeiro parágrafo: acredito tanto em expressões abstratas e intangíveis como "escritor baiano" e "literatura baiana" quanto em políticos impolutos e em padres, bispos, cardeais, papas - et caterva - santos, castos e puros. (Seria o mesmo que acreditar na existência de uma "literatura alagoana" a partir de Graciliano Ramos - uma das antenas da nossa raça; nascido na remota Quebrângulo, no interior de Alagoas, em 1892).

O patrono torto dessa entidade e dessa instituição (ambas caducas e equivocadas) terá sido, involuntariamente é bom que se diga, Jorge Amado (1912-2001). Ele seria o pai de todos os alcunhados "escritores baianos" e o edificador de toda uma mistificada "literatura baiana".

A partir do fenômeno literário Jorge Amado, o nosso paulo-coelho possível entre os anos 50 e 70, baiano/baiana deixava de ser apenas adjetivo gentílico e se tornava adjetivo qualificativo com certo juízo-de-valor-favorável-agregado. Inexorável bullshit, como diriam, com precisão cirúrgica, os gringos. Creiamos firmemente: 1) escritores (bons ou maus) nascem em qualquer quadrante da Terra. 2) Não é o lugar onde nascemos o que determina que sejamos grandes ou pequenos escritores, e sim a capacidade que temos, ou não temos, de captar as fissuras da condição humana.

Depois do vendaval literário Jorge Amado (colossal e retumbante êxito mundo afora em meados do século passado), poder-se-ia rotular alguém que passava lá fora da seguinte maneira: - Lá vai um "escritor baiano"! Ou ainda: - Aquele senhor balofo ali na esquina faz "literatura baiana".

Como se o jeito de Jorge Amado registrar literariamente o mundo ao redor fosse o único jeito de registrar literariamente o mundo ao redor, passou-se a entender por "literatura baiana": a) certa capacidade técnica de produzir romances pitorescos e picarescos, impregnados de lascivas doses de pimenta e de malemolência tropical; b) assumir visão de mundo estereotipada, ligada mais às aparências do que ao que de fato ocorre, e que nem sempre está ao alcance apenas do primeiro, e raso, olhar.

Nada contra a matriz dessa aberração literária que se espalhou por toda a Bahia desde então: sou profundo admirador da literatura de Jorge Amado (costumo dizer que foi o meu Monteiro Lobato; li, entre os meus 8 e 15 anos, quase todos os romances que escreveu) - e acho que ele foi, para toda uma geração, o primeiro, e o único.

O xis do problema: foi tão primeiro e tão único para toda uma geração que se passou a pensar (tanto por parte de quem escrevia na Bahia, como por parte de quem lia a literatura produzida na Bahia) que o jeito de Jorge Amado olhar a Bahia e o mundo era o único, e o mais eficaz, jeito de olhar a Bahia e o mundo. Pior: passou-se a crer que "literatura baiana"-escrita-por-"escritores baianos" fosse quase gênero literário à parte, o qual todos os escritores nascidos na Bahia deveriam seguir à risca, como se fosse decálogo sagrado criado por algum deus embalado por fortes doses de azeite-de-dendê, pimenta-de-cheiro & maconha-da-boa.

Tratava-se, evidentemente, de bobice abissal - à sombra da qual vários "escritores baianos" tentaram em vão vicejar nas últimas décadas. O mais bem-sucedido desses filhos não assumidamente bastardos de Jorge Amado talvez seja João Ubaldo Ribeiro, exatamente o mais assumidamente bastardo dos herdeiros de Jorge Amado - no sentido mesmo de se apropriar da sintaxe amadiana, de bater cabeça ao mestre que, de alguma forma, o pariu, mas de atualizá-lo, e inseri-lo em outros contextos e em outras sintaxes mais contemporâneas.

De volta ao começo: não existe, nem existirá, portanto, "literatura baiana", como não existe, nem existirá, literatura acriana, texana ou escocesa. Existe, e sempre existirá, apenas literatura - se boa ou má, essa é uma outra questão.

O que se pode acreditar (até prova em contrário) é que exista hoje alguma literatura produzida na Bahia. Mas, coitada, essa alguma-literatura-produzida-na-Bahia-hoje vive à margem da música produzida na Bahia hoje, a prima-rica à qual apelidaram de axé music, aquele gênero musical em que tudo parece começar e acabar na pélvis. (Ok, alguém poderá dizer que na literatura de Jorge Amado também tudo acabava e começava na pélvis, e esse alguém, com muito senso de humor, talvez esteja certo - a axé music ainda poderá ser vista, por esse mesmo alguém, com ainda maior senso de humor, como a versão musical da literatura de Jorge Amado.)

Aliás, é bom que se diga que tudo que não é axé music hoje na Bahia vive a duras penas, principalmente a vida inteligente - no frigir dos ovos, o pai e a mãe de todas as artes.

Há quem teime em continuar escrevendo literatura hoje na Bahia e, desesperadamente, tente encontrar em profissões paralelas mais lucrativas o vil metal que lhe permitirá pagar (e nem sempre permitirá) o leite das crianças. Haverá, poder-se-á presumir - como provavelmente em Istambul ou em Caracas ou em Macapá -, aqueles que escrevam muito bem, e outros que escrevam muito mal - e, pior, talvez existam alguns que escrevam magistralmente, à Dostoievski e à Graciliano Ramos, e que, na eterna sombra da prima-rica axé music, só será reconhecido na posteridade, ou, pior ainda, nunca.

A todos esses (bons ou maus) escritores que tentam vicejar na frenética e axética Salvador (piquei minha mula há 24 anos, mas nem por isso sou mais afortunado), mando-lhes afetuoso recado: o (nosso) futuro literário estará mais no barroco-maluco Gregório de Matos (1636-1695) do que no moderno Jorge Amado. Foi o então alcunhado Boca do Inferno quem escreveu, em priscas eras, a seguinte pérola, sobre a já frenética, mas ainda não axética, Salvador: - De dois efes se compõe essa cidade a meu ver. Um furtar, outro foder. (Algo mais up-to-date do que essa máxima gregoriana, esteja-se em Salvador, Rio de Janeiro, Bombaim, Brasília, ou na Roma-de-Berlusconi?).

Conterrâneos: sejamos menos Jorge Amado - embora o ame de paixão e lhe seja grato por conta das minhas primeiras ereções - e mais Gregório de Matos nas nossas tentativas literárias futuras - no sentido de não ficarmos na superfície das coisas e irmos fundo na intenção expressa, e premente, de flagrarmos a nossa cada vez mais precária e deletéria condição humana.

Nenhum comentário: