quinta-feira, 6 de maio de 2010

Sigmund Freud - Do Divã para os Livros

José Castello
josecastello@estadão.com.br
Escritoe e jornalista

Uma nova edição das obras de Sigmund Freud mostra como os casos clássicos da psicanálise têm pegada literária, e podem ser lidos como romances

Em 1930, aos 74 anos de idade, Sigmund Freud recebeu a notícia de que a cidade de Frankfurt lhe concedera o Prêmio Goethe. Foi a única honraria importante que o criador da psicanálise recebeu em vida - uma láurea dedicada não aos cientistas, mas aos escritores. Antes dele, foram premiados o poeta Stefan George, o biógrafo Albert Schweitzer e o filósofo Leopold Ziegler. Depois dele, a cidade homenageou escritores como Hermann Hesse, Thomas Mann e Amos Oz. A emoção de Freud foi mais forte porque o prêmio leva o nome de um de seus escritores favoritos, Johann Wolfgang von Goethe. Um dos mais importantes biógrafos do cientista, Peter Gay, relata que ele recebeu a notícia com grande espanto. Naquele ano, já tinha desistido de seu sonho, o Nobel de Medicina. Não podia esperar que a literatura o consagrasse.

O prêmio ficou como um sinal, definitivo, das profundas relações de Freud e da psicanálise com a literatura. Indícios importantes surgem bem antes disso. Já em 1907, no auditório de seu editor, Hugo Heller, Freud fez uma célebre palestra sobre a importância do devaneio na criação literária. Publicada no ano seguinte sob o título de Escritores Criativos e Devaneio, ela é, até hoje, uma das leituras favoritas dos autores. Ainda antes, em A interpretação dos Sonhos, de 1900, já se evidenciava seu interesse pelas narrativas. Sonhos nada mais são que relatos imaginários. Freud nunca escondeu que, entre suas leituras de fundo, se destacavam as obras de três grandes escritores: Goethe, Friedrich Schiller e William Shakespeare. Entre seus contemporâneos, tinha especial interesse pela obra do austríaco Arthur Schnitzler. Lia com prazer, ainda, as histórias de detetive da britânica Agatha Christie.

Assim, a psicanálise sofre, desde o início, forte influência da literatura. A teoria psicanalítica é, em grande parte, a narrativa de casos clínicos que podem ser lidos como fabulosos romances. Uma nova tradução das obras de Sigmund Freud, lançada pela editora Companhia das Letras e que chega às livrarias neste mês, é uma prova disso [leia exemplos ao longo desta reportagem]. Uma personagem como Anna O. (na verdade, a líder feminista e escritora Bertha Pappenheim) é hoje muito mais célebre que grande parte dos personagens literários de seu tempo. Ela se tornou famosa não por protagonizar um romance, mas como a figura central dos Estudos Sobre a Histeria, uma das peças fundamentais da teoria analítica, que Freud escreveu em colaboração com Josef Breuer. Tratando-a no início dos anos 1880, e depois de tentar sem sucesso a hipnose, o Dr. Breuer resolveu pedir que Anna simplesmente falasse. Seu tratamento deu origem ao que o próprio Breuer chamou de "método catártico". Mais inspirada, Anna preferiu batizá-lo de "cura pela fala". Quando começou a relatar sua vida, ela traçava, sem saber, o destino narrativo da psicanálise. O "Pequeno Hans", menino de cinco anos que se recusava a sair de casa com medo de ser mordido por um cavalo, ponto de partida das investigações freudianas a respeito das fobias, é outro personagem cuja vida se assemelha à ficção. A partir dele, Freud cunhou a expressão "romance familiar", isto é, a história imaginária que toda criança inventa a respeito de suas origens. Ele desenvolveu essa idéia em Romance Familiar do Neurótico, ensaio de 1909.

Ratos invasores

Ernst Lanzer, o célebre "Homem dos Ratos", que sofria de uma neurose obsessiva — temia que ratos invadissem o ânus da mulher que amava — se tornou personagem a que os psicanalistas do mundo inteiro sempre retornam. Assim como o famoso presidente Schreber — Daniel Paul Schreber, Presidente do Tribunal de Recursos de Dresden, que, a partir de suas Memórias, publicadas em 1903, possibilitou a Freud escrever um célebre estudo sobre a paranoia. A neurose de Schreber foi desencadeada por uma derrota eleitoral. A de Lanzer, pela visão de uma técnica de tortura. O mesmo acontece com o famoso "Homem dos Lobos" — Sergei Pankejeff —, protagonista de um caso clínico que inspirou a Freud uma reflexão sobre a neurose infantil. Tais relatos têm tanta pegada literária que são capazes de inspirar obras de ficção. A pedido de BRAVO!, o escritor Moacyr Scliar criou um conto a partir da história do Homem dos Lobos [leia texto na página 80].

O inverso também é verdadeiro. Grande parte da teoria psicanalítica se inspira em obras da literatura, pela simples e boa razão de que Sigmund Freud era um grande leitor. Já em A Interpretação dos Sonhos, o cientista se refere aos sentimentos de culpa experimentados pelo príncipe Hamlet, diante de seu amor pela mãe e seu ódio ao pai. A hesitação de Hamlet em vingar a morte do rei, pensava Freud, era provocada por essa culpa avassaladora. Matar o tio paterno, Claudio, assassino de seu pai, era, de alguma forma, matar a si mesmo — já que, quando criança, ele tivera o mesmo desejo de parricídio. As dúvidas de Hamlet resumem, assim, o grande impasse que ocupa o centro da teoria psicanalítica, batizado "complexo de Édipo". O qual, por sua vez, é uma apropriação teórica do Édipo Rei, a célebre tragédia do grego Sófocles.

O sumiço das cinzas

Da mesma forma que a literatura influenciaria a psicanálise, a teoria criada por Freud contaminaria grande parte da ficção do século 20, inclusive no Brasil. Toda a reação intimista à geração conhecida como "Romance de 30", de cunho regionalista, se baseia, em parte, no legado psicanalítico. Um romance exemplar como A Crônica da Casa Assassinada, que Lúcio Cardoso publicou em 1959 e que sintetiza essa reação ao realismo e ao regionalismo, é um exemplo forte dessa influência. Cardoso era católico, mas, por ser também um homossexual assumido, encarnava em si próprio os conflitos que a psicanálise investiga. Mesmo outros escritores católicos, como Octavio de Faria e Cornélio Pena, não escondem a sombra da psicanálise.

Também a obra de Clarice Lispector está, toda ela, marcada pela inflexão psicanalítica. Como se sabe, Clarice se submeteu a duas análises longas, com os doutores Inês Besouchet e Jacob Azulay. Escritores como Hilda Hilst, Lygia Fagundes Telles e Ana Cristina Cesar, com narrativas que se tornam grandes viagens interiores, são outros exemplos dessa influência. Pela importância que atribui aos mitos, um escritor como João Guimarães Rosa envereda pelo mesmo caminho. Não podemos esquecer que, na tragédia de Édipo, a figura da Esfinge ocupa um lugar central. Em toda a obra de Freud, os mitos têm participação decisiva. Na própria relação entre o psicanalista e seu paciente, devido ao que Freud chamou de "transferência", o analista ocupa esse lugar de Esfinge.

Quando, em 1938, um ano antes de morrer, Freud chegou a Londres, em fuga do nazismo, se comoveu, em particular, com a atenção que recebeu de grandes escritores. Virginia Woolf, Stefan Zweig, Arthur Koestler e H. G. Wells estão entre aqueles que foram pessoalmente lhe dar as boas vindas. Em 1939, quando morreu, suas cinzas foram depositadas em uma urna grega, do século 4 a. C.. A urna foi roubada e as cinzas desapareceram — sinal, talvez, da persistência do enigma de que nem a psicanálise, nem a literatura podem resolver. Território secreto, mais de perguntas do que respostas, no qual ambas se desenvolvem.

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