quinta-feira, 22 de abril de 2010

No Antigo Egito

Carlos Emilio C. Lima
carlosemiliobarretocorrealima@yahoo.com.br
Escritor, Poeta, Editor, Ensaísta e Antidesigner

Os egípcios que eu conheci não tinham rugas e possuíam crânio duro onde o sol não penetrava. Suas faces eram tão lisas que da pele a barba não brotava. Eles são tão fortes e donos de si mesmos que desvendaram os segredos antigos e já nada mais precisam descobrir. Controlam os rios infindáveis do passado. Eles governam um país fértil e ilimitado que conhecem a cada palmo, detalhe e reentrância. Da mesma forma que conhecem até a vertigem as origens do longo rio que banha as margens onde vivem, se alimentam e sobrevivem, eles conhecem os sons da cachoeira da sabedoria. Não vivem das brisas da noite mas a habitam, suas riquezas poderosas e cavernas permanecem eternamente à sua disposição. Eles são sábios de todas as sendas. Já fizeram todas as viagens, exceto uma. O sacerdote do tempo de Amon, uma vez, contou que há havia invadido as regiões tenebrosas do mar Atlântico com um pequeno exército de mergulhadores, tendo apenas ele retornado com vida. Ainda hoje, ouve-se por mínimos orifícios perfurados nas paredes de granito polido do templo as vozes e os gritos suaves desses desaparecidos nos confins do Atlântico invernal. Porque os egípcios estão indissoluvelmente ligados a esse oceano nos limites finais do Ocidente e é por isso que sua ancestralidade é tão misteriosa. Eu mesmo assisti, num certo entardecer inesquecível nas margens do Nilo à chegada de um estranho homem que se apresentava inteiramente desnudo, exposto por completo ao ardente clima daquela nação. Ele fora trazido num barco de papiro de um dos deltas extremos do grande rio que atravessa todo o país por uma guarnição das fronteiras e acabava de descer na praia onde eu conversava com os sacerdotes. Ele era moreno e tinha cabelos fartamente crescidos, lisos e negros como noites sem lua cheia. Era imberbe como os egípcios e nenhum outro tipo de barba contornava a sagrada região da fecundidade. Foi colocado numa liteira. Transportado nos ombros dos sacerdotes, foi levado pelas ruas de Mênfis em aclamação. Perguntei-lhes se aquele homem viera de algum sítio ou país relegado ao esquecimento no Oriente. Eles não quiseram me responder nada que pudesse me informar a verdadeira origem do homem que viera do longínquo. Sei que, o cortejo chegado ao templo, ele foi sacrificado. Sua cabeça cortada e mumificada para servir de oráculo para as gerações futuras. O restante do corpo foi sepultado no labirinto do lago dos crocodilos situado muitos dias de viagem de Mênfis. Nunca esquecerei na memória esse episódio que tive a honra de presenciar: a vinda de um deus para habitar entre os homens. Construíram-lhe um templo de dimensões consideráveis. Nele colocaram a cabeça preciosa num nicho. E pela boca dessa cabeça saem palavras que orientam a vida de milhões de pessoas. Esse novo deus incorporado ao panteão dos egípcios, irá com o passar dos anos e dos séculos mais e mais influenciando a mentalidade sempre em desenvolvimento desse povo tão sábio e , para nós, estrangeiros, tão incompreensível.

Nada me relataram os sacerdotes sobre a origem e o passado desse deus que eu mesmo contemplei naquela tarde memorável. Para que nenhum estrangeiro se aproxime desse conhecimento, eles guardam o mais profundo silêncio quando acerca dele são indagados. O povo, todo o povo não pronuncia o nome desse deus cujo sentido para mim é inexpugnável. E por isso o deus continua sem nome.

Atualmente, seu nome só é ouvido nas fanfarras que o povo toca nas celebrações diante de seu templo, ao entardecer. Tive acesso à cabeça. Seus olhos são muito apertados como os dos mongóis. Seus lábios são grossos, estilizados num eterno sorriso de complacência. Mas tenho uma explicação que gostaria de dar aos meus leitores. Acho que esse deus partiu de um inacessível continente por detrás do Grande Oceano, onde habitam os deuses do Egito. O nome que os egípcios dão a esse continente é o de uma árvore que produz cera e palha, muito semelhante à palmeira encontrada nas margens do Nilo. Foi-me dito também que só há três mil anos um outro deus compareceu à presença dos homens e que esse deus era o nosso grande Apolo, que os egípcios chamam de som. Durante três mil anos ninguém pronunciou o nome desse deus. Terminado o ciclo, o nome do deus revelou-se, através de músicas no crepúsculo, que todo o povo compreendeu. Agora o mesmo fenômeno recomeça a acontecer. Dizem também os povos das margens do Nilo que foi assim que foram lentamente sendo conhecidos os deuses, que no princípio não havia nenhum e que os homens viviam como plantas, nas regiões das florestas. O primeiro deus trouxe a carne bovina. O segundo deus trouxe a flauta e uma ampla doutrina que se estendeu pelas planícies e campos e que passou a ser obedecida. E assim por diante. O deus do qual presenciei a vinda foi o décimo segundo deus, o último deus. Portanto, isso quer dizer que nenhum outro deus brotará do mar-oceano e que o panteão dos egípcios finalmente erige-se completo. Acho que, portanto, esse deus veio vindo do mar do ocidente e aqui aportou solenemente. Uma noite fui ao templo e pude ouvir a voz do deus impronunciável. Falava em língua para mim inteiramente nova e inédita. Pareceu-me um tipo de língua que só existirá no futuro. Nenhum dos radicais gregos são percebidos ali. A língua tem uma fluência perpétua que alucina os peregrinos ata a demência. As pessoas se atiram no chão e passam a se contorcer freneticamente ao som fantasmagórico daquela voz soberana que é o fluxo de uma nova, inconcebível linguagem. Acredito que os sonhos que têm durante a noite são mais longos e mais repletos de símbolos e que essa é a maneira de fazerem a tradução das palavras do deus. Também pode ser que entendam imediatamente as frases pronunciadas e que essa faculdade só exista presente nos verdadeiros egípcios. Minha afirmação, de que os sonhos são o rio tradutor da esteira fremente de verbos do deus, reside no fato de que eu próprio experimentei tão fascinante alucinação. Não me prostrei por terra, nem pratiquei atos primitivos, mas depois de um crepúsculo remoto que vislumbrei atrás das cordilheiras de pedra do oeste e que contornam o Egito nessa parte, fui para o leito da estalagem rústica em que me hospedara e sonhei que do outro lado do mar, além de nossa respiração, e de todos os nossos desejos, no outro lado do imenso oceano, que vai além de nossos distantes pensamentos, há um continente envolto em densas nuvens de chuva, coberto por florestas tão espessas como nenhuma aqui no Ocidente, e por desertos tão ardentes e extensos como não se tem notícia. Em meu sonho, sobrevoei esse continente como se estivesse possuído de asas invisíveis. Do alto e em grande velocidade, pude perceber uma quantidade inumerável de cidades tão gigantescas que nenhuma atenção poderia abarcar, todas elas ligadas por um infindável número de estradas. Nelas pude notar também pirâmides como as que no Egito foram erigidas já há muitos séculos, pirâmides que despontavam no meio da floresta irrigada por rios sufocantes. Acordei quando o som dos pássaros e animais da floresta distante tornou-se insuportável. E eram gritos, cantos bizarros e desconhecidos.

Desperto do sonho, fiquei desnorteado por todos os nortes. Minha alma seguia em ventos para o sul. Desci as escadarias tortuosas do bairro de casas circulares onde vivia no Egito e segui, a passos rápidos, para o labirinto dos crocodilos, muitos dias de viagem dentro do sol. Havia perdido minha alma para sempre. Uma tempestade volumosa, acumulada desde os confins do ocidente, passava furiosamente sobre Mênfis.

Naquela manhã vazia, pesada, cheia de calor, senti que algo de espantoso ocorrera e que era um fenômeno incontrolável. Todos os edifícios da cidade erigiam-se secos, sem vida, como se os homens que agitados ali viviam não pudessem mais existir por muito tempo. As casas, caladas, com a areia do deserto tiniam pela força da luz infinita. O suor já não porejava em nossa pele que contorna nossos corpos. Nos espelhos de metal, plantados em cada encruzilhada, não percebíamos o olhar de nossos olhos. Eles não luziam mais como antigamente. Nem músicas nem cantos, nem danças, nem mortificaçções trariam de volta o brilho que, antes, encerrava-se contínuo. Todos os habitantes da cidade de Mênfis precipitavam-se pelas ruas, sentindo que algo de essencial havia partido definitivamente de todos eles. Com o chegado décimo segundo deus a grande alma do Egito, que se erguia como uma cúpula de som e de silêncio, fez-se dispersa e rumou para o Oriente, no curso infalível dos rios de vácuo que giram em torno da Terra interminavelmente. O Egito estava seco, sem água, a fome tornara-se atmosfera poderosa.

Naquele dia, o último faraó morrera sem deixar descendentes e um pavor sem fim tomava conta dos homens, sem direção e destino. Somente corpos éramos e ébrios de dor e prazer gritávamos alucinados pelas ruas em busca de um centro. Multidões aflitas infladas por um demônio do deserto que não denominamos porque ali mesmo, no pó das ruas incendiadas pelo vazio, poderíamos morrer, seguiam em grandes ondas para o templo do deus recém-chegado. Todos queríamos destruir o templo. Eu mesmo, um estrangeiro, era dominado por aquela força de desespero. Não tinha como voltar do caminho. O templo ficava no meio da estrada serpenteante, construído entre vagas e afiadas pedras, no meio dessa estrada que nos leva ao labirinto da eternidade.

Não restou pedra sobre pedra. Entre gritos e guinchos, as picaretas e as mãos enrijecidas e fortalecidas pelo desespero da perda da grande alma total de todos os povos da extensa região do Egito, dizem que a mais velha do mundo, o templo foi reduzido a pó e a cabeça do deus levada em procissão para o labirinto dos crocodilos em muitos dias de viagem de fome e sede finais. É a maravilhosa e estranha história dessa viagem até o templo da natureza, o templo do universo, que agora vou lhes narrar, contando a história de seis viajantes...

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