sábado, 6 de março de 2010

Gabriel Garcia Márquez - O escritor e o ditador


André Lahóz
andre.lahoz@abril.com.br
Jornalista

Uma nova biografia de Gabriel García Márquez traz detalhes reveladores sobre sua amizade com Fidel Castro. E relança uma velha polêmica - como os escritores devem se relacionar com os poderosos?

Não há eleições em Macondo, a misteriosa cidade em torno da qual se desenrola a sucessão de tramas que compõem Cem Anos de Solidão, obra máxima do colombiano Gabriel García Márquez. Bem, pelo menos não há eleições para valer - a população até é chamada para votar, mas depois as urnas são esvaziadas e novamente preenchidas com votos ao candidato previamente definido pelo governo. Em compensação, não faltam guerras, fuzilamentos e revoluções. Um único oficial, o coronel Aureliano Buendía, promoveu 32 revoluções armadas após se decepcionar com a farsa eleitoral - foi derrotado em todas. As desventuras do coronel são apenas um capítulo da interminável sequência de rebeliões e lutas que estão sempre recomeçando sem levar a lugar algum - e que contribuem para o nítido sotaque latino-americano da obra. Ela nos recorda o quanto parte de nosso continente ainda se alimenta de heróis e de promessas de refundação da nação. E quanto nos parecem enfadonhos a democracia e o lento processo de evolução que ela enseja. Gostamos de aventura, ainda que, ao fim dela, o que sobre seja pouco mais que um "pavoroso rodamoinho de poeira e escombros", como na Macondo ao cabo de um século de história.

Por tudo isso, há um quê de ironia na polêmica gerada com a recém-lançada biografia autorizada de García Márquez, de autoria do inglês Gerald Martin, a ser publicada no Brasil agora em março. Nela, Martin dá detalhes da intensa relação de amizade que une o Nobel de Literatura e o líder cubano Fidel Castro. Sim, Gabo - como García Márquez é chamado pelos amigos - adora o ditador Fidel. A ponto de servir-lhe de guarda-costas em uma visita à Colômbia. Nele vê um homem "de costumes austeros, mas de ilusões insaciáveis". Fidel, segundo o escritor, "tem a convicção quase mística de que a maior conquista do ser humano é a boa formação da consciência, e que os estímulos morais, mais que os materiais, são capazes de mudar o mundo e impulsionar a história". Quando fala às massas, Fidel "é a inspiração, o estado de graça irresistível e deslumbrante, que só nega os que não tiveram a glória de tê-lo visto". E considera o cubano "um dos maiores idealistas do nosso tempo". E, sim, o ditador Fidel também adora Gabo. Deu-lhe de presente uma casa num dos bairros mais imponentes de Havana. E já afirmou que gostaria, numa próxima encarnação, de voltar como escritor - "um escritor como Gabriel García Márquez".

Em sua longa presidência, Fidel recebeu o apoio de inúmeras personalidades, inclusive brasileiras, de Chico Buarque a Oscar Niemeyer (o arquiteto, aliás, foi citado por Fidel como exemplo de coerência em sua carta de renúncia em favor do irmão, em dezembro de 2007). Pouco a pouco, porém, à medida que o número de mortos pelo regime crescia, o paraíso terreno prometido pelos revolucionários perdia o encanto. Demorou, mas até mesmo comunistas de longa data, como o também Nobel José Saramago, decidiram que era hora de pular do barco. Aos 82 anos, um a menos que Fidel, Gabo mantém inalterado seu apoio. Apesar do quase nada que resta ao fim de mais uma aventura latino-americana.

Poderia ser apenas excentricidade de um gigante da literatura - Cem Anos de Solidão, um caso raro de best-seller global que deleitou também o mundo das letras, é apontado por alguns críticos como uma das mais importantes obras da língua espanhola, ao lado de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, O Burlador de Sevilha, de Tirso de Molina, e um punhado de outras. Mas a proximidade de Gabo e Fidel ganha relevo por tratar-se de um fenômeno nada incomum. Não é privilégio do líder cubano ser paparicado por um grande escritor. Antes dele, ditadores de esquerda e de direita receberam a mesma graça. Tome-se o caso de Adolf Hitler, a besta-fera que lançou o mundo no maior conflito da história. Também ele contou com o apoio de inúmeros intelectuais. Martin Heidegger, talvez o principal filósofo do século 20, foi durante 12 anos membro do partido nazista. Günter Grass, também Nobel de Literatura, recentemente admitiu ter participado da Waffen SS, a tropa de elite do nazismo. Outro peso-pesado da literatura, o poeta Ezra Pound, chegou a ler textos homenageando o ditador alemão na rádio italiana durante a Segunda Guerra - nos quais atacava de forma indiscriminada os judeus, o presidente americano Franklin Roosevelt e a intervenção dos Estados Unidos na guerra.

Pound, aliás, apoiou não apenas um, mas dois ditadores - com Benito Mussolini teve certa proximidade, o tendo visitado em seu palácio em Roma e lhe dado livros de poesia. Outro Nobel de Literatura, Camilo José Cela, autor do cultuado A Colmeia, lutou nas trincheiras de Francisco Franco durante a Guerra Civil Espanhola e foi posteriormente acusado de servir como informante do regime franquista. E por aí a lista segue. A despeito da imagem que normalmente temos dos grandes escritores - amantes da liberdade, sem vínculos de nenhuma ordem que possam comprometer sua produção artística -, é incômodo constatar quantos deles se embriagaram com os menos esclarecidos dos déspotas.

A questão moral

Não é de hoje que a relação entre intelectuais e governantes é complexa. Há quase 2500 anos, os gregos já lidavam com essa questão. Por um lado, o anseio de influenciar a sociedade e interferir na construção do futuro é uma tentação recorrente no mundo das letras. Por outro, não é um caminho sem custo. Ao adentrar a política, o intelectual passa a transitar num mundo que não é o seu - e nem sempre acaba bem. Um marco na relação entre estudiosos e o poder ocorreu no famoso julgamento de Sócrates, filósofo grego acusado por Atenas de corromper a juventude. Os poderosos de então exigiam que Sócrates assumisse sua culpa ou aceitasse a morte por envenenamento. Mas ele não conseguia enxergar seu erro. Aceitar a pena seria pactuar com uma mentira. Sua opção pela cicuta entrou para a história ocidental como o primeiro evento em que um intelectual se recusa a aceitar as verdades estabelecidas. Entre a ética de sua cidade-Estado e sua consciência, ele escolheu a segunda - e fundou, assim, a moral. O seu exemplo serve como régua para momentos críticos da história. Em tempos de ditadura, quem se encolheu e quem seguiu os ditames da própria consciência?

Mas a questão é bem mais complicada do que uma luta entre verdade e mentira. Pois, afinal, há os que adotam ditadores não como rendição, mas como expressão de sua verdade pessoal. Gabo, Saramago e tantos outros seguidores de Fidel não passaram a adorar Cuba por medo da repressão ou com vista ao enriquecimento pessoal. Eles realmente acreditavam - e muitos ainda acreditam - que a revolução na ilha foi um exemplo para a humanidade. Se voltarmos aos gregos, veremos que também lá o apoio à democracia não era universal. Platão tinha sérias restrições à ética democrática, pois enxergava nela uma mistura de demagogia, mentira e belicismo. Mas também não gostava de ditadores. Formulou assim a famosa máxima: "A República funcionará bem se os filósofos tomarem o poder - ou se o governador se tornar um filósofo". A partir daí, a tentativa de fazer do ditador um filósofo passou a ser recorrente na história. Platão tentou a sorte com Dionísio de Siracusa. Acabou na prisão. Aristóteles foi o preceptor de Alexandre. Teve de fugir de Atenas. Mas o fracasso maior foi para a conta de Sêneca, outro grande filósofo da Antiguidade. Ele buscou domar Nero, talvez o mais tirânico dos imperadores romanos, com sua sabedoria, seu cosmopolitismo e sua crença na igualdade dos homens. Nero entrou para a história por sua loucura que teria feito arder Roma. E Sêneca, por ordens do tirano, foi obrigado a se matar.

Foi o capitalismo que fez subir às alturas o papel dos homens de cultura, escritores incluídos. Nos últimos 200 anos, diversos fenômenos - urbanização, industrialização, massificação da informação - conspiraram para o surgimento de uma classe de intelectuais. Não é que eles não existissem antes. Segundo o historiador francês Jacques Le Goff, a Idade Média já os conhecia. Mas pode-se dizer que foi no século 19 que eles se constituíram como "classe social" na Europa. É dessa época o mito do intelectual como alguém acima da sociedade e de alguma forma responsável por iluminar o futuro. Contribuiu para isso a enorme repercussão do caso Dreyfus, que envolveu o escritor francês Émile Zola. Em seu famoso artigo J'accuse, de 1898, o autor de Germinal fez uma violenta acusação de antissemitismo ao governo francês em relação ao oficial do Exército Alfred Dreyfus, injustamente tido como traidor. Zola conseguiu, usando apenas sua escrita em um jornal, provocar uma total reviravolta no caso e deixar em má situação a elite do poder na França. Virou um paradigma de pensador livre das amarras do poder.

O renovado poder dos intelectuais não passou despercebido dos poderosos. Não são apenas os escritores que querem um ditador para chamar de seu - também os ditadores adoram ter os escritores por perto. Eles podem ser determinantes na produção do poder ideológico. Segundo o filósofo italiano Norberto Bobbio, é um poder que se exerce "não sobre a posse de bens materiais, mas sobre as mentes pela produção e transmissão de ideias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamento prático, mediante o uso das palavras". Nenhum ditador, por mais poderoso, pode se manter indefinidamente só pela força bruta. É preciso cativar corações e mentes. Não estranha que escritores sejam particularmente interessantes aos governantes, dada sua capacidade de se comunicar com o grande público. Mas não os da mesma estirpe de Zola, claro. Os ditadores preferem aqueles que abracem a causa e sejam fiéis a ela.

A questão partidária

Cabe aqui a importante distinção entre duas categorias de intelectuais feita pelo escritor Jean-Paul Sartre - o filósofo e o ideólogo. O primeiro seria, na tradição de Sócrates e Zola, o pensador sem limites. O segundo apenas repetiria as palavras de ordem dos poderosos. É contra essa categoria de intelectual que se insurge o pensador francês Julien Benda no livro A Traição dos Intelectuais (1927), que se tornou um clássico. Segundo Benda - também ele um defensor de Dreyfus -, os intelectuais se perderam ao abandonar os princípios universais de justiça e verdade em nome de causas específicas de uma determinada facção.

Infelizmente, muitos se desviaram desse papel. No caso brasileiro, um de nossos escritores de maior sucesso no século 20, Jorge Amado, foi durante anos um ardoroso defensor de Josef Stalin, que disputa com Hitler e Mao Tsé-Tung uma espécie de liga especial dos ditadores mais sangrentos da história. Seu livro O Mundo da Paz (1951) é uma verdadeira ode ao stalinismo, com frases como: "Mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu. Sim, eles caluniam, insultam e rangem os dentes. Mas até Stálin se eleva o amor de milhões, de dezenas e centenas de milhões de seres humanos". Um texto digno de alguém que havia se filiado ao Partido Comunista e considerava a União Soviética o paradigma de sociedade perfeita. Mais tarde, em meados dos anos 50, Jorge Amado iria abandonar - felizmente - a temática política e produzir alguns de seus melhores livros.

A figura do intelectual do partido, aliás, é determinante para entender o século passado - e, de certa forma, as heranças que ainda carregamos. O marxismo elevou ao máximo a importância dos intelectuais na definição dos rumos da humanidade. Líder da revolução russa de 1917, Vladimir Lenin foi categórico ao afirmar que, por razões puramente econômicas, o capitalismo tenderia a durar indefinidamente. Não haveria nenhum limite físico à sua expansão. Para Lenin, somente a prática revolucionária poderia criar esse limite. Daí a importância da classe intelectual, que despertaria a sociedade para os novos tempos. Conhecemos o fim dessa história. Mas, nas longas décadas que durou o sonho, os homens de cultura de esquerda foram alçados a um patamar inédito de importância. Não mais seriam responsáveis por ensinar um ou outro governante, como tentaram os filósofos do passado. Agora trariam a chave para a felicidade humana. Nas palavras do sociólogo francês Raymond Aron, Karl Marx virou o ópio dos intelectuais.

Quem mais se aprofundou no papel da nova classe - a dos pensadores - foi o cientista político italiano Antonio Gramsci. É dele outra distinção clássica, a que separa intelectuais orgânicos dos tradicionais. Os tradicionais seriam o que normalmente associamos à palavra: um grupo que tem como objeto as ideias e que atua de forma separada do restante da sociedade. Já os primeiros são aqueles formados organicamente em cada classe social. E têm a função de trabalhar para a construção do partido (o "novo príncipe") e da revolução. A visão gramsciana exacerba o papel de escritores e pensadores na busca da utopia marxista. Uma utopia perigosa, aliás - que consumiu algumas das melhores cabeças e que, em nome de um suposto bem comum, custou dezenas de milhões de vidas. Cabe lembrar que, etimologicamente, a palavra utopia significa "lugar que não existe". Da visão original de Thomas Morus, sobre a ilha onde viveria a sociedade perfeita, ao marxismo persiste a noção de um ideal muito acima da capacidade humana. É um mundo que existe apenas na cabeça... dos intelectuais!

Talvez uma maneira de entender o problema à frente dos homens de letras seja a polêmica envolvendo os gigantes do renascimento italiano, Michelangelo e Leonardo da Vinci. O primeiro reprimia Leonardo por sua indiferença com as desventuras de Florença; o segundo respondia que o estudo da beleza preenchia todo o seu coração. São duas visões de mundo. Gabo deveria limitar-se à sua obra literária? Ou, ao contrário, deveria usar a sua popularidade em favor daquilo que lhe parece melhor? É uma questão que continua em aberto. As duas posturas parecem legítimas, mas apoiar líderes que tentam ceifar a liberdade é algo que não é mais aceito sem reservas. Daí o desembarque de Saramago e outros da canoa cubana. A hora parece ser não dos seguidores de Marx e Lenin mas, espera-se, de John Stuart Mill, Alexis de Tocqueville e outros pilares do pensamento liberal e da democracia. Na América Latina, ainda temos líderes como Hugo Chávez, Evo Morales, Néstor Kirchner e outros empenhados na construção de Macondos continente afora. Eles hoje encontram, no entanto, dificuldades para laçar escritores que os bajulem e legitimem. García Márquez, felizmente, converteu-se de regra em exceção.

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