segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Um John Ford menor já é grande

João Batista de Brito
jbbb@openline.com.br
Crítico de cinema

Em cinema, um exercício instrutivo consiste em tomar, no currículo de um grande cineasta, um filme que a crítica considerou menor e nele investigar o quanto ainda existe de um estilo pessoal. O que há de Hitchcock no fraco Quando fala o coração? E de Orson Welles no péssimo Dom Quixote? Ou de Fellini no aborrecido Julieta dos espíritos?

Esta semana, pratiquei o exercício com O último hurra (The last hurrah), o filme de John Ford de 1958, que está agora disponível em DVD.

Tido pela crítica como fraco, o filme conta a estória desse idoso prefeito de uma cidade do nordeste americano que optou por uma derradeira re-candidatura, assumindo esse gesto como o seu “último hurra”. Apesar do apoio de uma equipe querida e de um eleitorado supostamente fiel, perde feio, tem um ataque cardíaco e vem a falecer.
É que, íntegro, humano e ético a seu modo, o velho Frank Skeffinton (Spencer Tracy em ótimo desempenho) conduziu sua campanha como sempre fez, à antiga, com desfiles e comícios de rua, ao passo que seus adversários, mais modernosos e menos ingênuos, fizeram recurso à mídia televisiva e a tudo que isso implica de engodo.

Um exemplo disso é a imagem que o adversário passa, na televisão, da família americana perfeita, a sua, mostrada na sala de estar da casa, onde não poderia faltar a figura típica do cachorro. Ocorre que, não havendo cão em casa, o que aparece no visor é emprestado e bastante incômodo, latindo durante a entrevista e, finda a encenação, a esposa do adversário o manda às favas.

Ora, de sua parte, Skeffinton não ousaria chegar à hipocrisia de publicizar a sua família, até porque sua esposa é falecida há tempos, e o único filho do casal é um boêmio infantilizado e irresponsável que, se fosse à TV, faria, com certeza, o mesmo papel incômodo do cachorro do adversário.

De alguma forma, o filme remonta a uma política americana, e porventura mundial, que não se faz mais, provinciana, local, humana, pessoal, com golpes baixos, sim, mas todos de pequena enverdagura (como o lance maldoso de dar ao filho idiota do banqueiro adversário o posto de Chefe dos Bombeiros...), e o tom geral é meio nostálgico, mesmo sentimental.

O que não impede que todas as seqüências contenham os cacoetes cômicos do Ford de sempre, e que os seus personagens componham toda uma fauna de tipos irascíveis, irrequietos, intempestivos, ruidosos e truculentos, tipos que estão em todos os seus filmes, aqui conduzidos com a mesma maestria de quem, como ninguém, sabe conduzir multidões diante da câmera.

Aliás, não só os personagens são familiares ao espectador, como os atores que os interpretam, todos da equipe privada de Ford: Jeffrey Hunter, Dianne Foster, Basil Ruthbone, Pat O’Brien, Donald Crisp, James Geason, Ted Brophy, John Carradine, Jane Darwell, Anna Lee, Frank Albertson, Ricardo Cortez, etc.

De qualquer maneira, com esse tema (derrota) e com esse desenlace (morte) é interessante o quanto O último hurra soa como um exercício autoral de impor ao espectador um esperado e explícito unhappy ending – este tendo sido, talvez, um dos fatores da impopularidade do filme na época da estréia.

Tenha sido isso, ou não, o que se observa é que esse espectador de carne e osso tem, dentro do filme, um representante, no caso, o personagem desempenhado por Jeffrey Hunter, o sobrinho do velho prefeito, um jornalista cuja função diegética é um pouco menos assessorar o idoso tio, e um pouco mais observar, analisar, e como nós, se comover com uma bela e grandiosa estória de vida. Nesse aspecto, as cenas iniciais e finais são sintomáticas: (1) Skeffinton trocando as flores no vaso diante do retrato da esposa, e (2) o sobrinho, após a morte de Skeffinton, fazendo a mesma coisa.

Eu tinha visto O último hurra ao tempo de sua estréia em João Pessoa, e foi com curiosidade que o revi agora. Um filme menor? Bem, posto no tempo, como está, entre as obras primas fordianas Rastros de ódio (1956) e O homem que matou o facínora (1962), só pode ser dado como menor, porém, com uma ressalva: qualquer John Ford menor já é grande o suficiente para nos encantar.

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