segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Virginia Woolf inteira no pouco lido “Momentos de Vida”



Chico Lopes
franlopes54@terra.com.br
Escritor e tradutor

Há, na literatura, um gênero que pode ser chamado de “fragmentos autobiográficos”. Como todos os gêneros, pode ser fecundo e interessante praticado por um autor de talento, mas pode também ser uma armadilha para estes e um álibi para gente medíocre e preguiçosa. Não é raro que desande em coletâneas auto-complacentes ou em meras tolices mal disfarçadas por uma cortina de lirismo confessional. Alguns desses livros derivam do pressuposto de que o público aceitará qualquer coisa que uma pessoa famosa possa escrever. Mesmo gente muito elogiada por trabalhos de maior unidade e elaboração, gente “do ramo”, enfim, escritores respeitados, costuma ter livros do gênero publicados, seja por comodismo, seja por acordo com alguma editora, seja porque já conquistou a devida fama com trabalhos mais cuidadosos e supõe que qualquer coisa de seu jornalismo íntimo pode valer para aumentar a quantidade de títulos seus no mercado, com interesse certo para o leitor.

A verdade é que o que sai de livro maçante, auto-indulgente ou miseravelmente desnecessário, chega a ser um crime. Vendo-se essas edições lustrosas, com caras conhecidas pela tevê ou por outros meios na capa, com preços que vão para acima de 35 reais, chega-se a ter um arrepio. Não é natural pensar nos livros sérios que poderiam ser publicados e seus autores padecem no anonimato injusto porque o que escrevem não oferece interesse a um mercado ávido de besteiras? – tampouco dispõem eles de alguns sete ou oito mil reais para pagar do bolso uma edição pequena, que ninguém distribuirá, enquanto muito vaidoso sem interesse algum, tendo dinheiro no bolso, pode dar-se ao luxo de publicar o que quiser e ainda acreditar-se escritor, porque, pagando, terá seus aduladores na mídia. A República das Letras é, tal como as outras, uma mansão de exclusões, injustiças e privilégios, onde, por vezes, o talento verdadeiro está proibido de entrar, enquanto a frivolidade estúpida e a mediocridade reluzente é acolhida com tapetes estendidos.

Uma bela exceção

“Momentos de vida”, de Virginia Woolf, felizmente, escapa à armadilha que mencionei logo no início. Na verdade, é um dos melhores livros da escritora, cujo talento ninguém seria louco de colocar em questão, amplamente reconhecido por obras-primas como “Orlando” e “Miss Dalloway”, só para citar dois de seus livros mais famosos. Ademais, como pessoa, Virginia oferece farto interesse. Todo mundo que conhece grande literatura não ignora a importância da escritora e sabe, mesmo que por alto, do grupo de Bloomsbury e de sua presença polêmica na Inglaterra vitoriana do início do século XX. No caso dela, um livro de fragmentos autobiográficos se justifica plenamente.

Não é um livro novo, foi lançado há muito tempo, mas tem uma particularidade que faz com que mereça destaque: é pouco conhecido, mesmo pelos fãs de Virginia, que parecem não ter percebido a sua importância. E serve de introdução a quem esteja começando a ler a escritora inglesa, como portal de uma obra bastante vasta e complexa e, tal como a de Proust, considerada intimidadora por muita gente.

Os textos que nele podem ser encontrados são “Reminiscências”, “Um esboço do passado”, “Contribuições ao clube das memórias”, “22, Hyde Park”, “O velho grupo de Bloomsbury”, “Eu sou esnobe?”. Virginia fala de sua vida, de sua irmã, Vanessa, de seu pai, “Sir” Leslie Stephen, em retratos de família que, amorosos, podem ser de uma crueldade pungente, porque o que viu, Virginia viu em carne viva, com sua sensibilidade exacerbada registrando cada detalhe e sofrendo, em extensão impensável para os que os desferiam, cada um daqueles golpes. É fantástica a pintura que faz de um meio-irmão, George Duckworth, que se crê incumbido de casar direito as irmãs das quais tinha que cuidar (Virginia e Vanessa). É um cretino, e Virginia não o poupa de modo algum, sentenciando-o a ser perpetuado na história da literatura com um perfil ridículo. De sua escrita sensível, mas dura, não escapa nem o pai, cuja grandeza – foi um homem famoso na era vitoriana -, Virginia questiona com a força da filha que conheceu a estátua pelo lado menos lisonjeiro: o doméstico.

Esse livro, se não tem a elaboração de outros de ficção, tem, por outro lado, um frescor e uma objetividade na narração das coisas do cotidiano que fazem a gente só lamentar que não seja mais longo.

A organização dos textos é de Jeanne Schulkind, que defendeu tese de doutorado sobre a escritora na Universidade de Sussex e, especializada, deu até cursos sobre ela na Universidade de Londres. Grande interessada no círculo de Bloomsbury, também estudou a vida de Vanessa Bell, a irmã de Virginia, que se dedicava a uma outra arte: a Pintura.

Aliás, uma coisa interessante e divertida, com relação às duas e ao círculo dos escritores de Bloomsbury, pode ser encontrada no livro. Na época em que, lindas, eram levadas pelo chato do irmão George a bailes e recepções enfadonhos onde eram apresentadas à sociedade para que atraíssem bons casamentos (na concepção estreita e convencional do sujeito), Virginia bem notou que, embora aquilo fosse terrível, eram ao menos admiradas e desejadas pelos homens e sentiam-se especiais. Porque, tempos depois, as duas tinham se mudado e George já não metia o nariz em suas vidas, de modo que recebiam quem quisessem, e entre seus convidados começaram a aparecer os nomes famosos que formariam o grupo, mas aí, o que houve? Conversavam com aqueles homens (o economista Keynes, o escritor Lytton Strachey, entre outros) sobre tudo, da literatura à filosofia e à economia, sentiam-se brilhantes, mas...não se sentiam desejadas. Virginia, intrigada por aquilo, só aos poucos descobriu que aquela tranqüilidade toda se devia a estar lidando com, ora, homossexuais. Tanto melhor para a virgindade delas...

O humor de uma mulher deprimida

Fala-se do humor ferino de Virginia, e ela também é muito lembrada por suas crises depressivas, recentemente comentadas pelo sucesso do filme “As horas” (filme, aliás, questionável, porque Nicole Kidman, ao interpretar Virginia, ganhou um nariz muito esquisito, e se submeteu àquela distorção típica dos produtores de Hollywood, que acreditam que uma mulher intelectualizada tem que ser sempre uma mulher feia).
Prova desse humor é o texto “Eu sou esnobe?”, que é o ponto alto desse “Momentos de vida”. Virginia se faz a pergunta do título ao contar de seu relacionamento com Sybil Colefax, uma milady que a convida seguidamente para jantares com escritores. O esnobismo da mulher é realmente doentio e mais irônico ainda é que ela não nota que Virginia não gosta muito da companhia de outros escritores. O seu esnobismo é de outra espécie: ela tem um fraco por títulos de nobreza. Como conta isso, é uma delícia. A coragem com que relata sua fraqueza miserável é muito divertida.
O ensaio é magnífico, uma peça tão consumada de graça e leveza e observação social que se torna, automaticamente, a razão pela qual valeu percorrer todos os outros textos do livro, de outra natureza. Desnuda a loucura e a frivolidade do esnobismo de certo círculo social muito elevado, e a gente pode até visualizar aqueles tipos em algum filme sobre ingleses vitorianos esnobes, de James Ivory, em que a tal Colefax fosse personagem principal. Ela é uma fútil completa, e divertida, como só as pessoas tomadas fanaticamente pelo amor às aparências e modas podem ser. O veneno de Virginia funciona com uma precisão terrível, nessa análise. Nenhum esnobe será o mesmo depois de lê-la.

Sendo ou não esnobe, ou melhor, consciente ou não de seu esnobismo, o leitor que queira conhecer Virginia mais por dentro não pode deixar de lado esse “Momentos de vida”, que saiu pela Nova Fronteira, numa época em que toda a obra de Virginia começou a aparecer, livro após outro, no Brasil (que ela ande meio esquecida, prova que a época atual não está mesmo preocupada com refinamentos). Mas, quem se importa com modas não merece conhecer Virginia. Ela não escrevia para as Sybil Colefax deste mundo – escrevia, decididamente, para outra espécie de almas.

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