segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Virginia Woolf inteira no pouco lido “Momentos de Vida”



Chico Lopes
franlopes54@terra.com.br
Escritor e tradutor

Há, na literatura, um gênero que pode ser chamado de “fragmentos autobiográficos”. Como todos os gêneros, pode ser fecundo e interessante praticado por um autor de talento, mas pode também ser uma armadilha para estes e um álibi para gente medíocre e preguiçosa. Não é raro que desande em coletâneas auto-complacentes ou em meras tolices mal disfarçadas por uma cortina de lirismo confessional. Alguns desses livros derivam do pressuposto de que o público aceitará qualquer coisa que uma pessoa famosa possa escrever. Mesmo gente muito elogiada por trabalhos de maior unidade e elaboração, gente “do ramo”, enfim, escritores respeitados, costuma ter livros do gênero publicados, seja por comodismo, seja por acordo com alguma editora, seja porque já conquistou a devida fama com trabalhos mais cuidadosos e supõe que qualquer coisa de seu jornalismo íntimo pode valer para aumentar a quantidade de títulos seus no mercado, com interesse certo para o leitor.

A verdade é que o que sai de livro maçante, auto-indulgente ou miseravelmente desnecessário, chega a ser um crime. Vendo-se essas edições lustrosas, com caras conhecidas pela tevê ou por outros meios na capa, com preços que vão para acima de 35 reais, chega-se a ter um arrepio. Não é natural pensar nos livros sérios que poderiam ser publicados e seus autores padecem no anonimato injusto porque o que escrevem não oferece interesse a um mercado ávido de besteiras? – tampouco dispõem eles de alguns sete ou oito mil reais para pagar do bolso uma edição pequena, que ninguém distribuirá, enquanto muito vaidoso sem interesse algum, tendo dinheiro no bolso, pode dar-se ao luxo de publicar o que quiser e ainda acreditar-se escritor, porque, pagando, terá seus aduladores na mídia. A República das Letras é, tal como as outras, uma mansão de exclusões, injustiças e privilégios, onde, por vezes, o talento verdadeiro está proibido de entrar, enquanto a frivolidade estúpida e a mediocridade reluzente é acolhida com tapetes estendidos.

Uma bela exceção

“Momentos de vida”, de Virginia Woolf, felizmente, escapa à armadilha que mencionei logo no início. Na verdade, é um dos melhores livros da escritora, cujo talento ninguém seria louco de colocar em questão, amplamente reconhecido por obras-primas como “Orlando” e “Miss Dalloway”, só para citar dois de seus livros mais famosos. Ademais, como pessoa, Virginia oferece farto interesse. Todo mundo que conhece grande literatura não ignora a importância da escritora e sabe, mesmo que por alto, do grupo de Bloomsbury e de sua presença polêmica na Inglaterra vitoriana do início do século XX. No caso dela, um livro de fragmentos autobiográficos se justifica plenamente.

Não é um livro novo, foi lançado há muito tempo, mas tem uma particularidade que faz com que mereça destaque: é pouco conhecido, mesmo pelos fãs de Virginia, que parecem não ter percebido a sua importância. E serve de introdução a quem esteja começando a ler a escritora inglesa, como portal de uma obra bastante vasta e complexa e, tal como a de Proust, considerada intimidadora por muita gente.

Os textos que nele podem ser encontrados são “Reminiscências”, “Um esboço do passado”, “Contribuições ao clube das memórias”, “22, Hyde Park”, “O velho grupo de Bloomsbury”, “Eu sou esnobe?”. Virginia fala de sua vida, de sua irmã, Vanessa, de seu pai, “Sir” Leslie Stephen, em retratos de família que, amorosos, podem ser de uma crueldade pungente, porque o que viu, Virginia viu em carne viva, com sua sensibilidade exacerbada registrando cada detalhe e sofrendo, em extensão impensável para os que os desferiam, cada um daqueles golpes. É fantástica a pintura que faz de um meio-irmão, George Duckworth, que se crê incumbido de casar direito as irmãs das quais tinha que cuidar (Virginia e Vanessa). É um cretino, e Virginia não o poupa de modo algum, sentenciando-o a ser perpetuado na história da literatura com um perfil ridículo. De sua escrita sensível, mas dura, não escapa nem o pai, cuja grandeza – foi um homem famoso na era vitoriana -, Virginia questiona com a força da filha que conheceu a estátua pelo lado menos lisonjeiro: o doméstico.

Esse livro, se não tem a elaboração de outros de ficção, tem, por outro lado, um frescor e uma objetividade na narração das coisas do cotidiano que fazem a gente só lamentar que não seja mais longo.

A organização dos textos é de Jeanne Schulkind, que defendeu tese de doutorado sobre a escritora na Universidade de Sussex e, especializada, deu até cursos sobre ela na Universidade de Londres. Grande interessada no círculo de Bloomsbury, também estudou a vida de Vanessa Bell, a irmã de Virginia, que se dedicava a uma outra arte: a Pintura.

Aliás, uma coisa interessante e divertida, com relação às duas e ao círculo dos escritores de Bloomsbury, pode ser encontrada no livro. Na época em que, lindas, eram levadas pelo chato do irmão George a bailes e recepções enfadonhos onde eram apresentadas à sociedade para que atraíssem bons casamentos (na concepção estreita e convencional do sujeito), Virginia bem notou que, embora aquilo fosse terrível, eram ao menos admiradas e desejadas pelos homens e sentiam-se especiais. Porque, tempos depois, as duas tinham se mudado e George já não metia o nariz em suas vidas, de modo que recebiam quem quisessem, e entre seus convidados começaram a aparecer os nomes famosos que formariam o grupo, mas aí, o que houve? Conversavam com aqueles homens (o economista Keynes, o escritor Lytton Strachey, entre outros) sobre tudo, da literatura à filosofia e à economia, sentiam-se brilhantes, mas...não se sentiam desejadas. Virginia, intrigada por aquilo, só aos poucos descobriu que aquela tranqüilidade toda se devia a estar lidando com, ora, homossexuais. Tanto melhor para a virgindade delas...

O humor de uma mulher deprimida

Fala-se do humor ferino de Virginia, e ela também é muito lembrada por suas crises depressivas, recentemente comentadas pelo sucesso do filme “As horas” (filme, aliás, questionável, porque Nicole Kidman, ao interpretar Virginia, ganhou um nariz muito esquisito, e se submeteu àquela distorção típica dos produtores de Hollywood, que acreditam que uma mulher intelectualizada tem que ser sempre uma mulher feia).
Prova desse humor é o texto “Eu sou esnobe?”, que é o ponto alto desse “Momentos de vida”. Virginia se faz a pergunta do título ao contar de seu relacionamento com Sybil Colefax, uma milady que a convida seguidamente para jantares com escritores. O esnobismo da mulher é realmente doentio e mais irônico ainda é que ela não nota que Virginia não gosta muito da companhia de outros escritores. O seu esnobismo é de outra espécie: ela tem um fraco por títulos de nobreza. Como conta isso, é uma delícia. A coragem com que relata sua fraqueza miserável é muito divertida.
O ensaio é magnífico, uma peça tão consumada de graça e leveza e observação social que se torna, automaticamente, a razão pela qual valeu percorrer todos os outros textos do livro, de outra natureza. Desnuda a loucura e a frivolidade do esnobismo de certo círculo social muito elevado, e a gente pode até visualizar aqueles tipos em algum filme sobre ingleses vitorianos esnobes, de James Ivory, em que a tal Colefax fosse personagem principal. Ela é uma fútil completa, e divertida, como só as pessoas tomadas fanaticamente pelo amor às aparências e modas podem ser. O veneno de Virginia funciona com uma precisão terrível, nessa análise. Nenhum esnobe será o mesmo depois de lê-la.

Sendo ou não esnobe, ou melhor, consciente ou não de seu esnobismo, o leitor que queira conhecer Virginia mais por dentro não pode deixar de lado esse “Momentos de vida”, que saiu pela Nova Fronteira, numa época em que toda a obra de Virginia começou a aparecer, livro após outro, no Brasil (que ela ande meio esquecida, prova que a época atual não está mesmo preocupada com refinamentos). Mas, quem se importa com modas não merece conhecer Virginia. Ela não escrevia para as Sybil Colefax deste mundo – escrevia, decididamente, para outra espécie de almas.

Virginia Woolf e a Poesia da Existência

Genilda Azeredo
genildaazeredo@yahoo.com.br
Professora do curso de graduação e pós-graduação em Letras da UFPB

I. Um recorte afetivo: a autora e a leitora

Minha relação com a escritora Virginia Woolf se deu inicialmente através de um de seus contos (talvez “Kew Gardens” ou “The Mark on the Wall"/"A Marca na Parede”), à época da graduação em Letras. Mas lembro-me de ter achado sua prosa de ficção muito difícil, e certamente esta dificuldade não me permitiu apreciá-la em suas nuanças. Nosso re-encontro aconteceu certo tempo depois, no mestrado, e de uma forma inusitada. Já havia esboçado um primeiro projeto de pesquisa sobre o também escritor inglês Graham Greene, mas não estava de todo satisfeita com a escolha, e, não me lembro bem por que, comecei a ler Um Teto Todo Seu, um ensaio teórico-crítico de Virginia Woolf. Este livro teve tal efeito sobre mim que, a partir dele, senti vontade de voltar à prosa de ficção da autora. Resultado: abandonei Graham Greene e (para apreensão de minha orientadora) decidi desenvolver um projeto de pesquisa sobre Woolf, focalizando na relação entre as inovações formais de sua prosa (especificamente os contos) – comumente denominada pelos críticos de prosa lírica – e seus questionamentos acerca das dificuldades que as escritoras vivenciavam, enquanto herdeiras (segundo Woolf) de uma tradição literária eminentemente masculina.

Este recorte afetivo já nos indica determinadas marcas desta escritora. Woolf não apenas (se isto já não se fizesse bastante) produziu ficção (romances e contos), mas escreveu vários textos teórico-críticos sobre a literatura moderna (a exemplo do texto intitulado “Modern Fiction”), sobre a relação da mulher com a literatura (a exemplo de Um Teto Todo Seu) e sobre textos específicos produzidos por outras escritoras (a exemplo de textos críticos que escreveu sobre Jane Austen, Emily Brontë, Charlotte Brontë, Mary Wollstonecraft, dentre outras). Ou seja, tais atividades fazem dela uma escritora com uma prática literária variada e um nível de conscientização bastante agudo sobre a literatura, em suas diversas modalidades: ficcional, teórica e crítica.

Como se isto já não bastasse, Virginia Woolf também tem uma história de vida que chama a atenção dos leitores por diversos aspectos: diz-se que foi molestada sexualmente na adolescência por seus meio-irmãos, fato que, segundo biógrafos, tornou-a avessa a experiências sexuais, justificando sua fama de frígida; tinha freqüentes crises de melancolia, depressão e loucura, quando se recusava a comer e dizia ouvir vozes; costumava – dada a carência que sentia da presença materna – se "apaixonar" por mulheres mais experientes que ela (a exemplo de Violet Dickinson e Madge Vaughan). Numa de suas cartas a Violet Dickinson, Woolf pede: "Escreva para mim, escreva e me diga que me ama muito. Não desejo mais nada. Meu alimento é o afeto". Mas talvez o fato mais marcante de sua biografia seja mesmo o de sua morte, através do suicídio que cometeu, em março de 1941, nas águas caudalosas do rio Ouse.

De fato, o fascínio que sua vida tem exercido, em toda uma geração de escritores, críticos e leitores, ao longo dos anos, pode ser sentido através das inúmeras referências a sua obra, pesquisas acadêmicas desenvolvidas e dos inúmeros livros publicados sobre sua produção literária. Há também o caso de escritores que criam textos ficcionais a partir de um diálogo explícito com seus textos. Recentemente, dois exemplos tornaram-se emblemáticos: o conto “Ginny” (apelido carinhoso para Virginia), cuja narrativa é construída a partir do suicídio de Woolf, constante do livro Vésperas (2002), de Adriana Lunardi; e o livro As Horas (inclusive transformado em filme), do americano Michael Cunningham, em que Virginia Woolf aparece como uma das personagens da narrativa, e seu livro, Mrs. Dalloway, constitui um framework para a compreensão de todo o livro de Cunningham.

Sabemos que um dos princípios básicos do estudo da literatura recomenda que a obra do escritor não seja confundida com sua história de vida. Fernando Pessoa, num de seus poemas mais conhecidos, refere-se ao poeta como aquele que “chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”. Ou seja, não é que devamos (nem podemos) negar a relação entre a literatura produzida e a experiência vivida (a dor existe deveras), mas a literatura será sempre uma transmutação, uma construção da experiência de vida do escritor. Entre a vida e o texto haverá sempre o distanciamento e o fingimento necessários para a criação, imaginação e construção. William Wordsworth, poeta inglês, fala deste processo como “emoção relembrada, ou recolhida, na tranqüilidade”. Virginia Woolf parecia ter uma consciência bastante clara a respeito disto. No período em que estava escrevendo Mrs. Dalloway (1925), por exemplo, ela fala do processo de criação de seus personagens como uma descoberta que semelha a escavação de “bonitas cavernas por trás dos personagens: creio que isto me oferece exatamente o que quero: humanidade, humor, profundidade. A idéia é que as cavernas possam se conectar e que cada uma venha à tona no momento presente” (Diário, p. 65).

II. Virginia Woolf e a Poesia da Existência

Um elemento básico que atravessa a produção ficcional de Virginia Woolf é a consciência da passagem do tempo, da efemeridade da vida (uma das partes de seu romance Passeio ao Farol é inclusive intitulada “O Tempo Passa”) e de sua natureza trágica. Numa passagem reveladora de seu diário, ela se questiona: “Por que a vida é tão trágica? Tão semelhante a uma pequenina faixa de calçada acima de um abismo? Eu olho para baixo; tenho a sensação de vertigem; pergunto-me como terei que caminhar até o fim. Mas por que sinto isto? Agora que eu o digo, não o sinto mais. A melancolia diminui à medida que escrevo” (Diário, p. 36).

Em dois de seus textos teóricos mais significativos, “Ficção Moderna” e “Sr. Bennett e Sra. Brown”, Woolf tenta justificar o material temático de que sua literatura é feita. Em vez de se concentrar em conflitos externos, de caráter mais tangível, na caracterização física de personagens, na objetividade do relato, seu interesse maior é apreender o caráter fugidio da vida, as percepções e emoções que definem a experiência humana, a relevância da memória e dos processos mentais e sensoriais para a compreensão de nossas vivências. Em “Ficção Moderna”, por exemplo, ela afirma que “a vida não é uma série de lanternas simetricamente ordenadas; a vida é um halo luminoso, um envelope semitransparente a nos envolver do início da consciência ao final” (1996; tradução minha). É claro que a apreensão deste tipo de realidade – espiritual, emocional, introspectiva, mental – exige todo um esforço inovador em termos de técnicas narrativas, fazendo com que a sua literatura seja construída a partir do uso de monólogo interior, fluxo de consciência e da adoção de um tipo de linguagem, dicção e ritmo que, em certos momentos, lembram mais a poesia que a prosa; uma conseqüência disto é a apresentação da realidade e experiência humana em sua fragmentação, incompletude, incoerência e ambigüidade. Ainda no texto “Ficção Moderna”, ao referir-se aos escritores russos e ao legado por eles deixado, Woolf diz:

É a consciência de que não há resposta, que, se honestamente examinada, a vida apresenta pergunta após pergunta; é isto que continua a reverberar após o término da estória, numa interrogação sem esperança – e isto nos preenche com um desespero profundo (p. 1996).

Creio que é exatamente esta reverberação que constitui a marca central da literatura de Woolf (“que se dissipou, não era poesia”, nos disse também Drummond); uma reverberação que nos incita a observar e a analisar a vida em seus detalhes aparentemente triviais; a senti-la em suas variadas nuances de cores, cheiros, texturas, silêncios e sons; a sorvê-la em seus sabores e abismos. Exemplos disso podem ser facilmente encontrados em sua ficção.

No conto “Kew Gardens” (nome de um jardim em Londres), por exemplo, a narradora adota, em diversos momentos da narrativa, a perspectiva de um caracol, que se arrasta junto a um canteiro de flores, para dar conta da riqueza de detalhes, minúsculos, que o canteiro oferece. O recorte de vida no jardim é visto primeiro através daquilo que habita o canteiro: a descrição toma como ponto de partida o chão e o que está atrelado a ele: o canteiro de flores, os talos, as pétalas, as folhas, os seixos, as gotas de chuva e a forma como a luz do sol vai se modificando em diferentes cores à medida que entra em contato com tais elementos. Diz a voz narrativa: “A brisa circulou reanimada e a cor cintilou no ar acima, nos olhos dos homens e das mulheres que caminhavam por Kew Gardens no mês de julho” (pp. 39-40).

A partir deste momento, a narradora também passa a observar as pessoas que vão passando pelo canteiro; há, portanto, uma mudança de foco – do espaço para a consideração do material humano. Porém, logo de imediato, percebemos uma diferença na forma como as informações sobre estes dois universos – aquele do canteiro e do caracol, e o das pessoas que passeiam perto do canteiro – são apreendidas. Se, como vimos, a descrição do canteiro é caracterizada sobretudo por uma riqueza de detalhes, que valorizam seus elementos constituintes mais minúsculos, e que só podem ser vistos se olhados bem de perto (daí a adoção do ponto de vista do caracol), a apreensão dos personagens só pode ser feita à distância, e através dos fragmentos de diálogos que eles vão deixando pelo caminho, à medida que passeiam pelo jardim. No entanto, mesmo diante desta apreensão precária, ficamos sabendo de informações relevantes a respeito dos personagens: o primeiro casal que passa, por exemplo, conversa sobre determinado momento do passado, quando ainda não estavam juntos, e a mulher, Eleanor, reflete: “Não haverá sempre, num jardim em que homens e mulheres descansam debaixo das árvores, quem pense no passado? Não são eles o nosso passado, o que resta do passado, aqueles homens e mulheres, aqueles fantasmas deitados sob as árvores ... a nossa felicidade, a nossa realidade?” (p. 41)

As considerações acerca dos personagens, bem como a dramatização do que falam e do que pensam são alternados com o arrastar-se do caracol pelo canteiro, de modo que a narrativa se organiza através da articulação destes dois universos: um aparentemente estático (o do canteiro de flores, com seu caracol que se arrasta, lentamente) e um dinâmico – ainda que apreendido na irregularidade dos passos dos personagens e na aparente incoerência de suas conversas. “Kew Gardens” constitui exemplo do que disse Virginia Woolf, certa vez, acerca do material utilizado em sua ficção: “Fico pensando em diferentes formas de conduzir minhas cenas; concebo possibilidades infinitas; vejo a vida, quando caminho pelas ruas, como um imenso bloco de material, opaco, a ser expresso por mim em seu equivalente de linguagem” (Diário, p. 51). De fato, tal opacidade constitui marca recorrente da ficção de Woolf; suas vozes e fontes narrativas sempre oferecem ao leitor a possibilidade de encarar a vida como um segredo a ser decifrado, como fragmentos de um quebra-cabeça, como mensagens a serem lidas e interpretadas. Desta forma, é possível sentir, através de suas narrativas, um paralelo entre viver e criar – como se a vida, tal como a vivemos, no nosso cotidiano, constituísse sempre, e também, algo a ser construído, a ser tecido, entrelaçado.

Este caráter criativo – que permeia não só sua literatura, em sentido geral, mas a experiência subjetivada de que sua literatura é feita – é justaposto, no romance Mrs. Dalloway, à questão da loucura. Phyllis Rose, ao analisar o romance, diz: “A criatividade e a loucura são os temas centrais deste livro: o impulso em direção à vida e o impulso em direção à morte; a sanidade e a loucura representam dois impulsos dentro de Virginia Woolf” (Rose, p. 126). De fato, o romance Mrs. Dalloway é construído de modo a alternar a narrativa de Clarissa e a preparação de sua festa – que representa celebração, vida, reencontro – com a narrativa de Septimus, o visionário louco, ex-combatente da guerra, que acaba por se suicidar. Na verdade, a preparação para a festa (incluindo a compra das flores) é logo influenciada por pressentimentos, por reminiscências, por sensações que fazem Clarissa refletir sobre sua própria solidão e estranhamento diante da vida. Cria-se, logo no início da narrativa de Woolf, um paralelismo entre celebração e desencanto, festa e morte. Tal paralelismo é já condensado no parágrafo inicial do romance, quando Mrs. Dalloway diz, "What a lark, what a plunge!" (Que diversão / graça / divertimento, que mergulho / abismo / salto!) (Woolf, 1987, p. 5). É interessante enfatizar que estas narrativas não se entrelaçam, mas caminham paralelas; apenas ao final do romance, quando o médico de Septimus comparece à festa de Clarissa e conta a respeito do suicídio de seu paciente, há o real encontro entre vida e morte, fazendo com que Clarissa desenvolva várias reflexões acerca da solidão, da vida e da morte. Clarissa reflete, por exemplo, acerca do fato de que a vida nos é legada por nossos pais, e que, quando nos damos conta, já estamos no meio da vida, vivendo – uma vida que deve ser vivida até o fim. “E havia, no fundo de seu coração, um medo terrível” (Woolf, 1987, p. 164). Há, nas suas reflexões, uma implicação clara de que não temos escolha quanto à vida. É quase impossível, ao lermos tal trecho, não lembrarmos da trajetória de vida e de morte da própria Woolf, cujo suicídio, nas águas caudalosas do rio Ouse, é assim justificado, através de um bilhete direcionado ao marido: "Tenho a sensação de que vou enlouquecer. Ouço vozes e não consigo me concentrar no trabalho. Lutei contra isto, mas não posso mais continuar lutando. Devo a você toda a felicidade na vida. Você foi perfeitamente bom. Não posso continuar estragando sua vida". O suicídio já havia rondado Woolf em pelo menos três ocasiões anteriores. E é irônico quando sabemos que no processo de idealização de Mrs. Dalloway havia uma idéia inicial de que seria Clarissa a personagem que cometeria suicídio. Porém, durante o processo de escritura do romance, Woolf muda de idéia, e transfere o suicídio para Septimus. Tal decisão, a meu ver, serve para preservar as duas grandes forças que sustentam a narrativa deste romance: de um lado, como diz Phyllis Rose, “a celebração do êxtase de viver; de outro, uma elegia pela breve passagem deste êxtase. Mrs. Dalloway alterna visões de beleza e de desespero, contentamento e melancolia; expressa o perigo de se viver e a posição precária da mente sensível sobressaltada pelo mundo material” (Rose, p. 125).

A meu ver, é exatamente desta aparente contradição que nasce a poesia da existência, tal como Woolf a apreendia e a revelava a seu leitor.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O incômodo poético de Lynch: um gênio autoral sobrevive no cinema americano

Chico Lopes
franlopes54@terra.com.br
Escritor e crítico de cinema

Vejo filmes sem cessar por necessidade profissional e por paixão. Por uma fixação acentuada (e sempre crescente, à medida em que vejo e revejo os filmes) pelo cinema americano dos anos 30, 40 e 50 (meus ídolos máximos são Wilder e Hitchcock), costumo deixar de narizes franzidos gente de nova geração, pós-Spielberg, que acha meio excessivo meu culto ao passado. Mas, há muito tempo sou devoto e espectador deslumbrado, sistemático, de um diretor norte-americano surgido nos anos 80: David Lynch.

David Lynch entrou em minha vida, como na de muita gente, em 1987, com “Veludo azul”. O filme foi muito comentado, muito visto e revisto, mas, se me perguntarem por que me parece tão grande e essencial, não sei bem que responderei. Tentarei traduzir, em palavras, aquele passeio entre Jeffrey (Kyle MacLachlan) e Sandy (Laura Dern) pela noite da cidadezinha de Lumberton, quando, andando pelas ruas, estão na verdade andando em ondas de som da trilha sonora de Angelo Badalamenti (que, para mim, tornou-se tão importante quanto Bernard Herrmann, com suas trilhas para Hitchcock, no cinema clássico).

Lynch nos dá o céu, as árvores, a noite. E está tudo lá, por alguma misteriosa razão – a vibração enigmática, terrível, cruel, essencial, de todo o filme, de toda a vida. Uma árvore batida pelo vento, agitando-se silenciosamente. Fomos precedidos pela abertura em que uma cortina de veludo amassado, azul-cobalto, se contrai, palpita e pulsa, e, à altura do passeio, ficamos com o azul-negro profundo da Noite.

Como Lynch consegue esses momentos? Mistério de Mestre. Os arrepios que sabe provocar em nós parecem os mais decisivos, os mais fundos. Cutuca-nos em alguma zona de vulnerabilidade extrema, como se nos fizesse roçar as paredes uterinas contra as quais nos debatemos para encontrar uma fresta, uma pequena janela para os mistérios tremendos que há lá fora. Estamos encapsulados em alguma jaula cósmica, esperando o dia em que romperemos as grades. Mas, tememos o Horror da desmesura, que poderemos conhecer nesse mesmo dia. Para onde irão nossas precárias identidades?

Com seu gosto pela Pintura, pela Música e por um Cinema que não se curva ao comércio senão de uma maneira muito própria, visceralmente original, esse cineasta, nascido em Missoula, Montana, em 1946, é ícone indiscutível para alguns e desafeto para muitos. Há gente que o considera maneirista, charlatão e criador de enigmas baratos. Lynch, acredito eu, dá de ombros. Isso é apenas a sua persona publicitária. A de Hitchcock, a uma certa altura, era tão comercialmente desfrutável e discutível que ninguém achava que o Mestre do Suspense era o que era, autor de grande cinema.

Doce veludo mortuário

“Veludo azul” é ainda seu filme-referência, por parecer condensar todos os seus temas, toda a sua estética. Mas o Lynch anterior, de “Eraserhead” e do mais acessível “O homem-elefante”, vinha incubando aqueles temas, aquelas imagens perturbadoras, para jornadas de cinema comercial que, na verdade, incomodam porque são é autorais, num híbrido desafiador para a indústria, para Hollywood, para todos. “Veludo azul” é um entroncamento de paradoxos, de forças tenebrosas e dúbias doçuras, alguma coisa como o encontro de Edgar Allan Poe com Sandra Dee, testemunho de que Lynch soube encarnar o melhor de Hitchcock, de Buñuel, do cinema “noir” e dos melodramas de Douglas Sirk nos anos 50, fazendo, iconograficamente, a fusão do realismo sombrio do pintor Edward Hopper com os quadros otimistas e rosados da América de Norman Rockwell. Ele fez Bosch entrar em cena, no interior da América careta. O fragmento de veludo mordido por Frank (Dennis Hopper) é um fragmento de céu da Virgem, algo de maternal que o perturbado seqüestrador de Dorothy (Isabella Rossellini) precisa, para dar à sua estrutura psíquica inteiramente cambaleante algum peso de equilíbrio. Ele precisa, literalmente, mamar na mãe que espanca e avilta. Naquele pedacinho de pano moram o Sexo e a Morte. E de símbolos assim o filme está cheio. E quem esquecerá do que Lynch fez com o rock-balada “In dreams”, de Roy Orbison, tornando aquele sentimentalismo todo uma coisa decididamente sinistra?

O sucesso da telenovela “Twin Peaks” perturbou a condução lógica da carreira de Lynch, e o fez parecer desafiador demais para os padrões de cinema americano. Os prêmios de Cannes para “Coração selvagem” (1990) não o livraram da maldição – ao contrário: pareceram acentuá-la, e o filme “A estrada perdida” (1997), radical, pareceu um salto kamikaze, incerto, mesmo para o seu público, habituado aos seus desafios. Para muita gente, nesse intervalo meio límbico do diretor, Lynch era só a lembrança de um “Veludo azul” que afetara a todos no final dos anos 80.

A depuração e o aprofundamento

Mas, quando ele volta, volta em grande forma. Pouca gente viu muita coisa em “História real”, de 1999, e pareceu, aos admiradores de um Lynch mais agressivo, que ele sucumbia ao esquema do tradicional filme de família com a intragável “lição de vida” perpetrada por “ordinary people” que é endêmico na América. Mas, que grande pequeno filme “História real” é!

Richard Farnsworth, que se dispõe a ir visitar o irmão doente em um estado muito distante, cruzando estradas com um carrinho de cortar grama, é um personagem muito forte. A simples chegada de uma chuva e a necessidade de Farnsworth guiar seu carrinho para um abrigo lateral, filmada com lentidão, rende uma cena de uma singeleza de levar às lágrimas.

E em 2001, com “Cidade dos sonhos”, Lynch se depura, Lynch se aprofunda. Esse é talvez o filme mais genial, desafiador e artístico feito no cinema americano nesse início de milênio tão comercial e desidratado. Dá-nos a sensação de uma coisa poderosa, desesperadora, comovente como uma grande elegia contemporânea de um modo que os outros filmes, mesmo os muito empenhados, jamais conseguem ser.

É a história de Hollywood pelo lado de dentro: as dobras reais de um tecido necrosado que sempre se apresenta coberto de lantejoulas. Duas mulheres, a dupla do “Persona” de Bergman dentro de um aparente filme “noir”, e muito belas, Naomi Watts e Laura Harring. Recapitula-se “Crepúsculo dos deuses”, de Wilder, na estrada de Mulholand

Drive, que Lynch considera esquisita, sinistra, bem a seu modo. Recupera-se a “Gilda” de Rita Hayworth, numa operação de empréstimo de identidade que é absurdamente bem feita: colhe-se do espelho uma fantasia, e não há nada, nada neste mundo, que possa garantir a sua estabilidade.

O filme é espantoso, um poema de identidades que se pulverizam e desembocam na morte. Um sonho de fama e estrelato é sua chave aparente, mas, quantas coisas podem ser vistas! Só não o são por quem fica esperando uma solução que o filme não entrega.

Só não o são pelos cegos que esquecem que o cinema é para ser mais sentido que entendido, e que entender, santo Deus, não é assim tão importante – pode ser uma faculdade acessória apenas, e o é, quando nos deparamos com labirintos que exigem de nós, mais do que inteligência, uma certa disposição emotiva e ética de espécie mais rara.

O fato é que uma organicidade superior percorre essa história, mas não é visível para todos. Vai das imagens das duas heroínas olhando para o céu de Los Angeles com as palmeiras em silhuetas até a última cena, quando a mulher de azul pede silêncio no alto do camarote do clube idem.

E alguém já filmou uma mulher morta, como Lynch, naquela cena do encontro do cadáver? O mau cheiro é, ao mesmo tempo, poesia, estamos diante da carniça de Baudelaire: encontrou-se a realidade, desmontou-se um sonho enorme. Mas um romantismo desenfreado segue pulsando, como se o Sagrado não houvesse sido perdido. E temos o homem mais monstruoso do mundo, situado atrás de uma lanchonete à qual se chega pelos muros vulgares, em meio ao lixo, dono da chave do mundo glamouroso que a heroína quer. Um pacto fáustico que poucos parecem ter notado. Ele é o senhor da caixinha azul que se abre com uma chave azul (voltamos ao veludo) que, como a de Pandora, guarda todas as desgraças do mundo. Ele, que só por ser visto pode matar, é o eixo de Hollywood...
Lynch foi capaz de grandes coisas, e continuará sendo. Fazendo o cinema americano de melhor qualidade das últimas décadas, sendo autor e incomodando a indústria. Filma agora um misterioso “Inland Empire”, e podemos esperar o que nos apronta em silêncio. No silêncio de seu clube memorável, onde um simulacro de cantora tomba cantando um rock-balada despedaçado e é recolhida como um boneco de mola que deu o que tinha que dar.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Jornalismo cultural no Brasil: começo e meio

Rodrigo C. Vargas

“Se não terminar em cova ou jazigo.
A gente precisa ficar alerta
Pensar, porque se não o cerco aperta.
Precisa inventar uma estratagema
Achar uma saída para o problema
Ter muita calma, muita paciência
Que logo virá feliz providência.”
(Oswald Barroso)

A história do jornalismo cultural brasileiro segue um pouco o rumo dos acontecimentos que, antes, marcaram o jornalismo nos principais países europeus. De acordo com Gadini: “Não há, entretanto, um ponto central que poderia denominar como o surgimento do jornalismo cultural.”

O que favoreceu o fortalecimento do campo cultural foi à ida do homem do campo para a cidade, onde a cultura e seus produtos passaram a ter uma importância pública, agregando valor. Ou seja, ao sair do campo restrito, a crítica, já não mais voltada aos salões, ganha as ruas e também espaço em periódicos o no mercado literário e das artes em geral. Esse fenômeno que na Europa aconteceu entre os séculos XVII e XVIII, só veio acontecer no Brasil no século XIX com a chegada da família real portuguesa em 1808, e o surgimento da imprensa, e da possibilidade de publicar peças literárias. “Até 1807 devem ter acontecido no Brasil umas oito invenções importantes, uns quatro conflitos políticos, 18 lançamentos de livros, 22 fundações de cidades, 32 nascimentos de artistas importantíssimos e alguns eventos esportivos. Só que ninguém ficou sabendo” (GADINI, 2003:19).

Descaso com a formação intelectual

A imprensa nesse período trazia apenas notas, anunciavam aniversários de algumas figuras políticas e do restrito meio imperial, recados festivos de madames, dentre outras notícias do gênero. Nessa época os jornais eram quase que a única opção de manifestação e acesso cultural. Os escritores tinham dificuldade para publicar seus trabalhos pela falta de editoras disponíveis, e os jornais passaram a publicá-los em formato de folhetim. “No Brasil, o jornalismo cultural só ganharia força no final do século XIX; e dele nasceria o maior escritor nacional, o nosso Henry James, Machado de Assis (1839-1908), que começou a carreira como crítico de teatro e polemista literário, escrevendo ensaios seminais como Instinto de Nacionalidade e resenhando controversamente os Romances de Eça de Queiroz.” (PIZA, 2008:16) Ainda que esses espaços forjassem um fórum literário, havia certo amadorismo. “...os homens de letras buscavam encontrar no jornal o que não encontravam no livro: notoriedade, em primeiro lugar; um pouco de dinheiro, se possível” (SODRÉ, 1999:292).

Com a proclamação da república, a aceleração do mercado interno e à migração em massa, a partir do século XX muitos jornais passam a integrar ou se tornam empresas de formação mais estáveis. As principais cidades também registram modificações mos espaços urbanos e a latência de idéias e hábitos culturais. O grande marco foi o Correio da Manhã (que circulou de 1901 até 1974). Desde o seu surgimento, trouxe seções voltadas ao campo cultural, como a Letras de artes, Teatro e outros eventuais setores destacados. O Estado de São Paulo que tinha surgido em 1875 quando a capital paulista tinha somente 20 mil habitantes também atuava como fórum cultural a partir da virada do século XIX para o XX quando de 4 mil exemplares em 1888 passa a uma tiragem diária de 35 mil exemplares por volta de 1913. “O início do século XX também pode ser compreendido a partir dos textos de João do Rio. Pseudônimo de Paulo Barreto (que foi jornalista, teatrólogo e cronista), João do Rio fala do Rio de Janeiro a partir e de situações do cotidiano da população que não tinha acesso aos serviços e bens culturais. João do Rio torna-se, assim, uma referência na medida que tira o jornalismo do ambiente das redações e vai às ruas ouvir, ver e tentar entender como vivem os habitantes da então Capital Federal do país” (GADINI, 2003:26)

A dificuldade de manter um espaço cultural resistente no campo jornalístico e social daquela época, também permeia o agora. Segundo Gadini essa dificuldade está intrinsecamente ligada ao analfabetismo, a censura, a lenta urbanização do país e o precário desenvolvimento dos serviços de comércio e indústria. Os números do baixo índice de escolarização também demonstram à formação do publico leitor em vários períodos. Em torno de 84% da população em 1890, 75% em 1920 e 57% da população em 1940. No Rio de Janeiro do início dos anos 20, quando era capital federal, tinha apenas 13 cinemas, vários teatros, além de festas populares e das diversas praias que só viraram espaço de lazer tempos depois. Isso para uma população, segundo fonte do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, de pouco mais de 1 milhão de habitantes. Ou seja, fica exposto o descaso com a formação intelectual do brasileiro desde a invasão portuguesa e que só pôde ser amenizada trezentos e oito anos com a chegada da família real e a implantação de práticas educacionais, e/ou intelectuais que favorecessem a corte.

O rádio como instrumento de propaganda

A sustentação de uma ideologia costurada pelo não saber para não se entender corrobora para um caminhar dificultoso, e que só nos anos 20, ganha intenção organizada aos moldes liberais. "...boa parte dos redatores também ocupava alguma função pública, como funcionário, escrivão ou algo do gênero." (GADINI 2003:32) Apesar de uma imprensa comprometida em certa parte com o Estado, outros espaços surgiam como a revista Klaxon, título que significa buzina, promovida por Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Victor Brecheret e outros. É bom lembrar que por conta da dificuldade de viver de literatura no Brasil, desde Machado de Assis, passando por Lima Barreto, os escritores se viram obrigados a começar pelo jornalismo e pela crítica, como fez Mario de Andrade, poeta de Paulicéia Desvairada e romanscista de Macunaíma, que desenvolveu carreira como crítico e ensaísta, a qual por si só garantiria seu nome nas letras brasileiras. A partir desse período os espaços criticos mais elaborados começavam a ganhar peso. “Em 1928 surgiu uma publicação moderna (da qual Mario de Andrade foi colaborador) que nenhuma história história do jornalismo cultural pode deixar de citar: a revista O Cruzeiro. Embora haja muita polêmica sobre os números – sua tiragem teria chegado a setecentos mil exemplares, mas apenas no número especial sobre o suicídio de Getúlio Vargas em 1954 – e sobre os métodos suspeitos de reportagem (como as de David Nasser, em parceria com o documentarista Jean Manzon), o fato é que a revista marcou época, lançou o conceito de reportagem investigativa e deu enormes contribuições à cultura brasileira ao publicar contos de José Lins do Rêgo e Marques Rebelo, artigos de Vinícius de Morais e Manoel Bandeira, ilustrações de Anita Malfatti e Di Cavalcanti, colunas de José Cândido de Carvalho e Rachel de Queiroz, além do humor de Péricles (O Amigo da Onça) e Vão Gordo (vulgo Millôr Fernandes). Nos anos 30 e 40, O Cruzeiro seria a revista mais importante do Brasil por sua capacidade de falar a todos os tipos de público.” (PIZA, 2008:33)

Com o surgimento do rádio, a valorização do regionalismo e a política nacionalista de Getúlio Vargas o país começa a forjar um fortalecimento dos setores mais esclarecidos que buscam informação, lazer e cultura a partir dos anos 30, quando a urbanização se fortalece e passa a criar demandas por novos espaços públicos. Durante o Estado Novo, o rádio passa desempenhar um papel importante no país - como instrumento de propaganda oficial do governo - tanto por suas dimensões geográficas como pela grande quantidade de analfabetos. Foi a partir dos anos 30 também que o jornalismo passou gradualmente, a explorar setores específicos do público.

Os importantes espaços da década de 40

Com o fim da Segunda Grande Guerra o mundo passou por uma reformulação, geográfica, política e por conseqüência cultural. “...a massa urbana atirou-se às compras que lhe conferiram a desejada modernidade pelo uso de óculos ray-ban, de calças blue jeans, pelo consumo de whisky, pela busca de diversão em locais sombrios e fechados (boites) e, naturalmente, pela adesão à música das orquestras internacionais que divulgavam os ritmos da moda feitos para dançar, como o fox-blue, o bolero, o be-bop, calipso e afinal, a partir da década de 50, do ainda mais movimentado rock´n´roll” (TINHORÃO, 1999: 307). Essa invasão estrangeira anunciava a chegada da indústria do consumo, e a constituição de uma classe média bem definida “...é somente na década de 40 que se pode considerar seriamente a presença de uma série de atividades vinculadas a uma cultura popular de massa no Brasil” (SODRÉ, 1999:38)

Ainda assim até 1946, não havia nenhum periódico com tiragem superior a 200 mil exemplares. Foi nesse período que surgiu o Diário de São Paulo (Dirigido por Assis Chateaubriand) sob a coordenação de Geraldo Ferraz. No seu primeiro número trazia artigos de Tarsila do Amaral e Agripino Grieco e um conto de Fraz Kafka ilustrado por Lívio Abramo. Pela primeira vez textos de autores estrangeiros eram publicados traduzidos para o português. O analfabetismo produzia poucos leitores aptos a consumir literatura, ou cultura em forma de produto, o país passou a consumir esses produtos através das rádios novelas, surgidas em 1941 e posteriormente, no mesmo ano o cinema, com a criação da Atlântida. “Oportuno lembrar que a década dos anos 40 registra o surgimento de importantes espaços na vida cultural brasileira: é o caso da fundação do Museu de Arte de São Paulo (1947), Museu de Arte Moderna/SP (1948), Teatro Brasileiro de Comédia (TBC, 1948), Vera Cruz (1949), da Bienal de Arte (1951), TV Tupi (1950), introdução da fotonovela (1951), criação da primeira escola de propaganda (Cásper Líbero/SP, 1952) dentre outras iniciativas, espaços e organizações que passam a fortalecer o capo cultural. É nesse mesmo período que surge o SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), a Federação das Mulheres do Brasil, que assume a edição do Momento Feminino; É lançada a revista Fundamentos, sob a direção de Monteiro Lobato e a colaboração de Caio Prado Júnior, Astrogildo Pereira, Graciliano Ramos, Cândido Portinari e o Barão de Itararé...” (GADINI 2003:37)

Perseguições e censura prévia

A partir dos anos 50 a mídia brasileira passou por importantes transformações. A reforma gráfica do Diário Carioca (1951, que inclui a introdução do lide) e no Jornal do Brasil (que começa em 1956), antecedida da criação de outros dois inovadores diários (a Tribuna da Imprensa em 1949 e a Ultima Hora em 1951), a criação do Caderno B no Jornal do Brasil voltado à cobertura de teatro, artes, cinema, além das variedades do jornalismo diário (em 1959), passando de simples jornais para estruturas empresariais mais profissionalizadas. Tudo aliado à política de crescimento do governo JK. “Ali começaram investimentos de peso em propaganda e surgiram as primeiras grandes agências de publicidade. Era preciso, agora, anunciar produtos como automóveis e eletrodomésticos, além de produtos alimentícios e agrícolas” (GADINI 2003:58) Outro marco histórico foi o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. “...dirigido por Décio de Almeida Prado. Reunindo intelectuais que já haviam feito a revista Clima nos anos 40 – Antonio Candido (literatura), Paulo Emilio Salles (cinema), Lourival Gomes Machado (artes visuais) – e acrescentando jovens valores, como Sábato Magaldi, o Suplemento lançou um modelo que seria mais tarde seguido por todos os cadernos de livros...” (PIZA, 2008:37)

Os anos 60 e 70 passam a caracterizar a consolidação de um mercado de consumo. “Com a criação do Instituto Nacional do Cinema, em 1966, e posteriormente da Embrafilme, a produção cinematográfica conhece sem dúvida um momento de expansão. No período de 1957 a 1966, a produção de longa-metragem atingia uma média de 32 filmes por ano; nos anos 1967-69, quando o INC começa a atuar, ele passa para 50 filmes. Com o surgimento da Embrafilme, a política do Estado se torna mais agressiva, aumentando as medidas de proteção do mercado, dando maior incentivo à produção. Em 1975 são produzidos 89 filmes, e em 1980, 103 películas. Não devemos, porém, nos entusiasmar muito com a qualidade desta industria brasileira; a maior parte dos filmes são pornográficos ou pornochanchadas. Em 1979 eles totalizavam 8% da produção, mas em 1984, com o crescimento do mercado, chegam a compor 71% do que é produzidos.” (ORTIZ, 1995:124) No Brasil a televisão ganha cada vez mais força. O número de domicílios com aparelhos televisivos na década de 70 é de 4,2 milhões ou seja 56% da população. “...a partir dos anos 50, com a democratização da TV, a produção de obras culturais em escala atingiu uma força, uma presença social, um impacto sobre os hábitos e valores de todas as classes que pode ser subestimado, como sabe qualquer brasileiro que se detiver sobre a história da Rede Globo desde a sua fundação em 1965.” (PIZA, 2008:43) Por outro lado se em 1950 existiam no Rio de Janeiro 22 jornais diários comerciais, entre matutinos e vespertinos, com as mais diversas tendências políticas, em 1960 esse número foi reduzido para 16 jornais diários, e no final dos anos 70, para sete. A explicação para o desaparecimento de um número elevado de jornais e revistas nos anos 70 está relacionada também à elevação do custo do papel...Nesse período o país importava 60% do seu consumo em papel jornal. Em 1969 surge uma das principais revistas brasileiras até hoje, O Pasquim. “...começa como um tablóide semanário de humor, política e cultura e, com a força do deboche e do talento de sua equipe e entrevistas famosas com Leila Diniz ou Graham Greene, chega a duzentos mil exemplares em alguns meses.” (PIZA, 2008:38)

A imprensa alternativa surgiu da articulação de duas forças igualmente compulsivas: o desejo das esquerdas de protagonizar as transformações que propunham e a busca, por jornalistas e intelectuais, de espaços alternativos à grande imprensa e à universidade. Os jornais alternativos buscavam contrapor justamente o espírito complacente da grande imprensa diante da ditadura. Para Sussekind essa imprensa era impelida a um diálogo constante com o Estado, que se fazia ora opressor, ora mecenas (1980, p 91). Os jornais alternativos trilharam outro caminho, o de oposição a essa prática, cobrando firmemente a restauração da democracia e do respeito aos direitos humanos, e criticando o modelo econômico estabelecido, chamado na época de “milagre econômico”. Por conta disso, eram perseguidos e submetidos a um regime especial, de censura prévia.

Retomada do jornalismo crítico

Essas duas forças – o desejo de ser protagonista da esquerda, e a luta de intelectuais por espaço - fizeram com que os impressos alternativos, primeiro fossem instrumentos de resistência ou de uma revolução supostamente em marcha, depois numa segunda fase, derrotado esse apelo, caminho de trânsito da política clandestina para a política de espaço público durante o período de abertura. Esse foi um aspecto que diferenciava a imprensa alternativa no Brasil da publicada no exterior. Outro fator de distinção entre o Brasil e os países chamados de primeiro mundo era a dificuldade de publicar e de distribuir de forma mais ampla. Isso começa a mudar nos anos de 1970, quando jornais e revistas alternativos ganharam uma novidade: a impressão a frio do offset. O que nos Estados Unidos aconteceu nos anos de 1950, demorou a chegar por aqui, mas fez diferença. A possibilidade de tiragens pequenas a baixo custo, aliada à implantação, pela Editora Abril, de um sistema nacional de distribuição, estimulou o surgimento de jornais alternativos com força para alcançar todo o território nacional, a partir de tiragens de 25 mil exemplares. O maior problema enfrentado pelas revistas e jornais alternativos era bancar as garantias e condições impostas pela editora. Os jornais e revistas alternativas se diferenciavam a cada fase, por conta das motivações e do caráter da articulação entre seus protagonistas e deles com a sociedade civil. A cada nova proposta estética e operacional, mudava o relacionamento com o leitor.

A primeira fase do ciclo alternativo acontece com o lançamento do Pif-Paf (jornal satírico que explorava a fundo o desprezo pelos primeiros tempos do golpe) em junho de 1964 até o fim da Folha da Semana (jornal apoiado pelo Partido Comunista que tinha como propósito resistir democraticamente) em 1966, quando o desmoronamento do universo político do populismo, sem que a maior parte da esquerda suspeitasse da dimensão da mudança.

A segunda geração de jornais surge a partir de 1967, fruto de todo um novo imaginário oriundo da revolução cubana, da proposta de uma guerrilha continental. Entre esses jornais, destacam-se O Sol, Poder Jovem e Amanhã.

A terceira fase é marcada por um intervalo de mais de um ano praticamente sem novos jornais alternativos. É o tempo das grandes passeatas estudantis, do maio de 68 na França, dos protestos contra a Guerra do Vietnã. Isso por que segundo Kucinski as lutas no espaço público forçaram a retomada do jornalismo critico pela grande imprensa, desaparecendo o impulso jornalístico vital para a criação de jornais alternativos. (2003, p 34)

Da revolução social para a rebeldia

A partir de 1969, depois do refluxo dessas manifestações, que se juntaram em grande número os protagonistas da imprensa alternativa, dando origem a uma das fases mais ricas, incluindo os primeiros semanários de circulação nacional sob o signo da resistência político-cultural, entre os quais O Pasquim e Opinião.

Entre 1971 e 1972, surge uma quinta fase de jornais, como Grilo e Balão, que tinham como características o humor pesado, às vezes escatológico, e pelo experimentalismo em linguagem.

“Ambos, influenciados pelo cartunista americano Robert Crumb e pelo europeu Wolinski. Grilo reproduz diretamente cartoons estrangeiros, inclusive os mais tradicionais, de Charles Schultz. Mas Balão expressa, ao contrário uma reação dos jovens contra a dominação estrangeira no mercado de cartoons e dá origem a uma explosão criativa de humor nacional por uma nova geração de cartunistas iniciantes, entre os quais Luis Gê, Laerte, Angeli e os irmãos Chico e Paulo Caruso.Cerca de setenta novos desenhistas passaram pelas dez edições de O Balão. Por influência de O Balão e Grilo surgiram novos “gibis”, de critica pesada aos costumes, auto-denominadas “udigrudi”, (do inglês underground), entre os quais Patota, Vaca Amarela e Klik.” (KUCINKI, 2003, p 34)

A sexta fase se desenrola a partir de 1974, quando os primeiros presos políticos com penas já cumpridas reintegram-se à vida civil através da imprensa alternativa, os jornais incham e se multiplicam. Tudo aquilo acontecia em pleno colapso do milagre econômico, e cheio de projetos ambiciosos, como Versus e Movimento, predominantemente políticos. Uma espécie de jornalismo tropicalista, aos moldes da contracultura européia.

“...na opção tropicalista o foco da preocupação política foi deslocada da área da Revolução Social para o eixo da rebeldia, da intervenção localizada, da política concebida enquanto problemática cotidiana, ligada à vida, ao corpo, ao desejo, à cultura em sentido amplo.” (HOLLANDA & GONÇALVES, 1986, p 66)

A influência das novas escolas de Comunicação

A sétima fase surge da reunião de jornalistas de prestígio regional, que não compactuavam com o discurso complacente da grande imprensa em relação a ditadura. Além disso, a morte de Wladmir Herzog, em outubro de 1975 acelerou esse processo de integração. Dessa crise surgiram entre outros, De Fato e Coojornal.

Uma oitava fase surge com a formação de movimentos atuantes na campanha pela anistia, a partir de 1977, abraçados pelos jornais e revistas alternativas já em circulação. Entre os jornais de anistia estão Repórter, Resistência e Maria Quitéria.

As duas últimas fases vieram embaladas pela atuação de estudantes de jornalismo influenciados pelas novas escolas de comunicação: Jornais basistas, ligados aos movimentos populares. Entre eles Batente. E uma nova geração de jornais experimentais, como Avesso, que expressavam a fadiga do apelo político junto a jovens estudantes de comunicação que posteriormente se tornariam famosos no jornalismo neoliberal. Os dois tipos de jornal eram fortemente influenciados pela critica das escolas de comunicação aos meios de comunicação de massa e ao jornalismo convencional.

Essas foram as bases para o surgimento do jornalismo que conhecemos hoje. Apesar de estarmos vivenciando novas plataformas de veiculação de informação como a internet, quem está por trás é o jornalista moldado por toda essa massa histórica aqui publicada.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Uma Palavra sobre Mandelstam

Gilfrancisco Santos
gilfrancisco.santos@ig.com.br
Jornalista e professor universitário.

“A Revolução de Outubro não podia deixar de influenciar o meu trabalho uma vez que me privou da biografia, da sensação de importância pessoal. Eu lhe sou grato por ela ter acabado de uma vez por todas com o bem-estar intelectual e a sobrevivência baseada em renda proveniente da cultura... À semelhança de muitos outros, eu me sinto devedor da revolução, mas lhe ofereço algo de que ela por enquanto não está necessitando”. (Óssip Mandelstam)

Mandelstam é um poeta russo comparativamente pouco conhecido dentro e fora do seu país, mas é talvez o melhor daquela galáxia dos bons poetas, ofuscados pelo stalinismo, capaz o bastante para nos fazer acreditar na sua inquestionável palavra, de impiedosa independência, sua recusa a reverenciar os temas ideológicos do momento.

Nascido em Varsóvia (Polônia), na época pertencente à Rússia Ocidental, Óssip Emilievitch Mandelstam, em 15 de janeiro de 1891, filho de uma família abastarda de comerciantes judeus, que cultivava o hábito da boa leitura. Desde cedo o jovem Óssip sentiu verdadeiro fascínio pela leitura, vivendo rodeado de Schiller, Goethe, Shakespeare, Kerner. Puchkin, Liermontov, Turguiêniev, Dostoievski, Tolstói e, posteriormente, pela cultura francesa – particularmente com a poesia de François Villon, revelando uma grande tendência para a literatura, predominantemente para a poesia. Mas desde sua juventude viveu em Pálovski e São Petersburgo até 1907, onde cursou o colégio Tenechev, uma das melhores escolas do seu tempo. Óssip, estudou numa escola técnica e depois Filologia e História na Universidade de Petersburgo.

Uma estada em Paris, em 1907, contribuiu para suscitar nele profundo interesse pelo simbolismo francês. Começou sua atividade literária em 1910, quando publicou alguns poemas na revista Apolo (1909-1917), famosa na época por aceitar colaborações de tendências, principalmente simbolistas e acmeístas.

Um dos pais do acmeísmo, corrente fundada em 1912, da qual faziam parte Anna Akhmatova, (1886-1966); Nikolai Gumilov; (1886-1921) e Mikhail Zúzmin, (1875-1936), que representava a tendência individualista extrema em arte, pregavam a teoria da “arte pela arte”, a “beleza pela beleza”, permaneceu no movimento por pouco tempo, é o autor do manifesto, O Amanhecer do Acmeísmo.

“Os acmeístas compartilham com os tempos fisiologicamente brilhantes da Idade Média o seu amor pelo organismo e pela organização... Ao determinar à sua própria maneira a dignidade específica de um homem, a Idade Média sentiu e reconheceu isso em todas as coisas, com inteira independência dos seus méritos... Sim, a Europa marchou através de um labirinto formado por uma delicada cultura, quando em abstrato a existência pessoal, desprovida de adornos, foi valorizada como uma maravilha... Daí a íntima aristocracia que vincula todo o povo e que é tão alheia ao espírito de igualdade e fraternidades da Grande Revolução... A Idade Média não é desejada porque possuía em grau bastante elevado o sentido de limite e de divisão... A nobre mistura de racionalidade e de misticismo e a sensação do mundo como um equilíbrio vivente, identifica-nos com essa época e leva-nos a extrair um certo sentido de força de obras que surgiram no caminho do romance por volta de 1200...”.

O mundo poético de Óssip Mandelstam, como todo acmeísta fascinado pelo colorido intenso e sublime as formas do objeto, ele nos apresenta os objetos vinculados as leis que somente ele identifica-os. Profundo admirador de Andréi Biely (1880-1934), após sua morte escreveu versos o homenageando, foi também um grande conhecedor da poesia francesa, italiana e alemã.

Sua estréia em livro data de 1913 com a publicação de, A Pedra, dedicado às pesquisas rítmicas e reflexões sobre a linguagem. Segundo Krystyna Pomorska, estudiosa do formalismo russo, o livro “trouxe para essa poesia um certo afastamento parnasiano, uma tonalidade clássica e uma imagética baseada na mitologia clássica. Os motivos de predominância catastrófica interligada à quietude clássica tornam Mandelstam mais próximo do Simbolismo (particularmente o simbolismo francês) do que qualquer outro representante do Acmeísmo. O seu estilo, ou a sua escrita, é típica da poesia cultivada”.[1] Vimos que em sua primeira etapa, o poeta Óssip Mandelstam sofreu a influência simbolista, somente mais tarde sua poesia denota o reflexo vivo da realidade.

Considerado o maior dos acmeístas, poeta de inspiração clássica, se uniu com suas líricas nítidas e buriladas, a maneira elíptica e imaginativa do cubo-futuristas. Isso se observa, por exemplo, no breve texto Solóminka, de 1916, em que alucinadas e inconexas metáforas, vão acumulando numa lenta progressão. Tudo isso põe a arte poética de Mandelstam numa área muito próxima ao futurismo. Não é de se estranhar que ele tenha escrito textos de admiração pela obra de Vielimir Khliebnikov (1885-1922).

Mandelstam também nutria forte admiração por outro amigo: Ler os versos de Pasternak é como purificar a garganta, reforçar o alento, renovar os pulmões; esses versos devem ser bons para curar a tuberculose. Não há atualmente em nosso país poesia mais saudável...” Em Pasternak, a palavra se faz ainda mais que em outros poetas futuristas, corpórea e palpável como um objeto e adquire relevo tão proeminente que, as vezes, parece descobrir o ângulo que forma suas superfícies, apresentando uma poesia de concepção quase volumétrica, o mesmo acontecendo com Mandelstam. Ambos os poetas nos oferece, pois, um exemplo de cubismo poética, inclinado a dar realce aos volumes das palavras e justapor num novo equilíbrio, distintos planos verbais.

A produção poética de Mandelstam pré-revolucionária, está latente a idéia da responsabilidade do criador ante seu tempo. O verso tradicional, por seu compasso e ritmo, se distingue por complexidade semântica. Por isso foi considerado por alguns críticos como antiquado, arcaico e outras acusações mais graveis.

São anos em que se estabeleceu na Criméria, onde seu misticismo sofre novas reflexões vitimadas pelas atrocidades da Guerra Civil. Neste período Óssip é preso pelos soldados brancos, suspeito de ser um agente secreto bolchevique, mesmo simulando loucura, desequilíbrio mental. Mais tarde Mandelstam sentiu-se atraído pelas pinturas dos venezianos I. R. Tintoretto (1518-1594) e Tizian Vecelio (1488-1576).

Por força das circunstâncias e do seu temperamento, Stalin (1879-1953) sempre se identificou com um universo de violência: na conquista do poder, na preservação e consolidação do poder, no exercício diário do poder. O stalinismo tornou-se sinônimo de intolerância, de prepotência, de arbitrariedade doutrinária, de esmagamento impiedoso dos adversários, tudo isso com requintes do que alguns chamam de “crueldade oriental”. A perplexidade que, na época de Stálin, se transformou em repulsa, fê-lo escrever e ler a um grupo de amigos um fastidioso poema que o levou à prisão em 1934.

Nikolai I. Bakharin (1888-1938), político soviético que opôs a Stalin, condenado no processo dos 21 (1938) e executado; a pedido da esposa do poeta é procurado para interceder na prisão de Óssip. Graças a sua ajuda, foi comutada a condenação aos trabalhos forçados, por um exílio de três anos em Chedrin. Vejamos o poema causador do seu confinamento.

Vivemos, sem conhecer a terra em que pisamos,
A dez passos nossas falas não se ouvem,
Mas onde surge uma meia conversa
O montanhês do Kremlin não a perde. [2]

Seus dedos são gordos, inchados como vermes,
E as palavras, pesadas, são definitivas.
Riem seus bigodes de barata
E suas botas brilham.

Uma corja de chefões atarracados
Serve-lhe à volta de brinquedo – semi-homens.
Como ferraduras forja ukazes
Para atingir na testa, no sobrolho, na virilha.

Cada execução é uma festa
E é largo o peito do osseta.


Na versão do poema que caiu nas mãos da polícia secreta russa, os dois últimos versos da primeira estrofe eram:

Tudo o que se ouve é o montanhês do Kremlin,
O assassino matador do camponês.


Óssip menciona no último verso do poema, o termo osseta, que é a língua do grupo irânico oriental, falada no Cáucaso central, por aproximadamente 400 mil locutores. Havia rumores persistentes de que Stalin tinha sangue osseta. A Ossetia é uma região do Cáucaso, dividida entre a Rússia e a Geórgia (onde Stalin nasceu) e seus habitantes, do grupo iraniano, são bastante diferentes dos georgianos.

De retorno a Moscou em 1937, é preso novamente e enviado a um campo de trabalhos forçados na Sibéria, permanecendo na cidade de Vorôniej até a morte, segundo dados oficiais, a 27 de dezembro de 1938, em trânsito para Vladivostiok, doente, faminto e enlouquecido.

Óssip Mandelstam deixou obra poética pouco numerosa, além de reminiscências e escritos teóricos. Nos últimos anos, apareceram na Rússia diversos inéditos seus, bem como recordações de contemporâneos e estudos críticos, como o de Marina Tzvetaieva (1892-1941), A Prosa do Poeta (1926), em que se tem frisado o valor de sua contribuição à poesia russa.

Somente em 1991 a Rússia pôde voltar a ler um de seus maiores poetas, Óssip Mandelstam. Seus poemas foram proibidos e todos os originais que se conseguiu localizar foram confiscados e destruídos. Para preservá-los do esquecimento, a viúva do poeta, Nadiejda Mandelstam, decorou-os um por um, transformando-se literalmente numa obra completa viva do marido. Pôde assim contrabandeá-los aos poucos, cada vez que era possível ditá-los a alguém que ia sair da União Soviética, para que fossem publicados no Ocidente, entre 1964 e 1969. Deve-se o mérito de ter contribuído para a edição das Obras Reunidas , em dois volumes (Inter-Language Literary Associates, Washington, 1964). Vejamos o poema Como tantos outros, de 1920.

Como tantos outros, quero
por-me a teu serviço,
Embriagar-te com estes meus lábios
Que a aridez dos impulsos das gretas.

A palavra não sacia
a secura ardente de minha boca,
sentir uma vez mais,
o desabitar sonolento da brisa.

Os impulsos já são sombras,
porém tua luz me chama
e vou rumo a te – eu mesmo
réu rumo ao tormento.
Nem amor, nem felicidade
posso dar-te por palavra:
Ah trocaram meu sangue
por outro mais violento.

Só um instante mais
e direi ao vazio
que não és senão dor
­quanto de te me chega.
O mesmo que uma culpa
Atenazas-me rumo a te me atrai
tua delicada boca de cereja,
arrebatada de última doçura.

Voltar para onde te espero, tenho
medo se tu me faltar.
Nunca te desejei
como agora. E todos meus desejos
revertem logo em realidades.
Os impulsos já são sombras,
porém tua luz me chama.


Óssip Mandelstam é um dos maiores escritores do período soviético e do século XX. Suas primeiras produções ensaísticas começam no período ginasiano, quando escreve O Crime e o Castigo em Boris Godunóv (1906) como trabalho para a escola. Depois viria o ensaio François Villon (1910), publicado na revista Appolón (1913), O Amanhecer do Acmeísmo (1912/1913), corrente da qual foi um dos principais representantes ao lado dos poetas Nikolai Gumilov e Anna Akhmatóva, O Interlocutor (1914), Pior Tchaadáiev (1914), Skriábin o Cristianismo (1915) e outros textos em prosa. Publicou ainda os livros: Tristia (1922), O Ruído do Tempo (1925, reminiscências, publicadas no Brasil em 2000 pela Editora 34), O Selo Egípcio (1928), Viagem à Armênia (1930, reminiscências publicadas no Brasil em 2000 pela Editora 34), Lamark (1932), Sobre a fala alemã (1932).

[1] POMORSKA, Krystyna. Formalismo e Futurismo. São Paulo, Perspectiva, col. Debates nº60 (trad. Sebastião Uchoa Leite), 1972.

[2] BERNARDINA, Auroro Fornoni. Mandelstam, a Elegância da Forma. O Estado de São Paulo, 19. Jan. 1991.