quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O crime de Lady Gaga




Marcia Tiburi
marciatiburi@revistacult.com.br
Filósofa e escritora

Lady Gaga é o mais recente ídolo pop da cena internacional. Entenda-se por ídolo pop um indivíduo que encanta as massas com a habilidade artística de que é capaz sendo seu autor ou o mero representante de uma estética inventada por publicitários e estrategistas de produtos culturais. Nesse sentido, todo ídolo pop age como o flautista de Hamelin conduzindo por certo efeito de hipnose uma quantidade sempre impressionante de pessoas. Ele é também um guia estético e moral das massas. A propósito, entenda-se por massa um grupo de indivíduos que, ao se encontrar com outros, perde justamente a individualidade, tornando-se sujeito de sua própria dessubjetivação. Em outras palavras, ele é hipnotizado como se estranhamente desejasse sê-lo. A Indústria Cultural depende desse mecanismo, por meio do qual oferece ao indivíduo a oportunidade de se perder com a sensação de que está ganhando. O ídolo pop é a humana mercadoria que permite o gozo pelo logro que o espectador logrado aplica a si mesmo.

Lady Gaga certamente veio para nos lograr. Mas, como disse Walter Benjamin sobre livros (e também putas), muitas vezes a mercadoria vale muito mais do que o dinheirinho que pagamos por ela.

O paradoxal desejo das massas

Antes de mais nada, é preciso ver que Lady Gaga, a despeito da qualidade boa ou má de si mesma e do que ela produz, vem a nós com números impressionantes. Se na internet seus vídeos são vistos por milhões de pessoas (certamente, quando você ler este artigo, os números serão ainda maiores) é porque ela mesma sabe – ou o diretor e roteirista de seus belos videoclipes nos quais a quantidade aparece, seja na nota de dólar com o rosto de Gaga como no vídeo de “Paparazzi”, seja em “Bad Romance” nos índices na cena dos computadores – que se trata em sua obra da questão da quantidade, mais do que da qualidade. A Indústria Cultural sempre tem na quantidade uma questão mais importante do que a qualidade, mas, se Lady Gaga sabe disso e não o esconde, é porque elevou o cinismo a discurso, mas, ao mesmo tempo, lança-nos uma ironia capaz de fazer pensar.

A questão da quantidade adquire um contorno subjetivo na mentalidade dos indivíduos aniquilados no todo. Assim, uma característica expositiva da condição das massas de nosso tempo é o próprio “desejo de ser massa”. Trata-se da ânsia de adesão ao todo que se disfarça no desejo de saber o que todo mundo sabe, ver o que todo mundo vê. Complicado falar de desejo das massas, quando a “massa” remonta à possibilidade de se deixar moldar pela ação exterior justamente por ausência de desejo. Podemos, no entanto, entendê-lo usando uma imagem gasta como a da ovelha a participar do rebanho. Um modo de ter lugar desaparecendo mimeticamente no todo. Nesse sentido, o desejo de ser massa é o mesmo que nos coloca na situação de fazer parte da audiência fazendo com que liguemos a televisão no programa mais visto, que queiramos ver o filme com a maior bilheteria, que, caso cheguemos a desejar um livro, seja da lista dos mais vendidos. Fazer parte da audiência é a garantia de que em algum momento estaremos juntos, que faremos parte de uma comunidade mesmo que ela seja apenas “espectro”. A angústia da solidão, da separação e da própria individuação desaparece por um passe de mágica da imagem do ídolo pop.

Uma estética pop para o pós-feminismo?

A obra da jovem Lady Gaga não é objeto descartável como a maioria das mercadorias promovidas no contexto da indústria e do mercado cultural. Se nos detivermos em sua música, em sua dança ou em sua imagem isoladamente, não entenderemos o todo da mercadoria. Portanto, é preciso estar atento à performance que ela realiza. A apreciação disto que devemos hoje chamar de obra-produto ou produto-obra deve começar por aí, tendo em vista que, acima de tudo, Lady Gaga é uma performer que agrega em seus vídeos diversas formas artísticas que vão da música ao cinema, passando pela dança e chegando a uma relação curiosa com um aspecto inusitado da produção contemporânea nas artes visuais. Lady Gaga tange em seus vídeos mais famosos questões que estão presentes na obra de artistas contemporâneas que podemos chamar de vanguardistas por falta de expressão melhor, tais como Cindy Sherman, Daniela Edburg e Chantal Michel. No Brasil, Karine Alexandrino, Paola Rettore ou o pernambucano Bruno Vilella praticam a mesma suave ironia até o mais cáustico deboche com trabalhos sobre mulheres mortas.

O tema da mulher morta torna-se quase um lugar-comum na arte contemporânea, como foi no século 19. Naquele tempo, ele representava o impulso próprio do romantismo que via na mulher falecida e inválida um ideal agora retomado de modo irônico por diversas artistas contemporâneas. Lady Gaga vai, no entanto, muito além dessas artistas em termos de coragem feminista. Enquanto elas zombam das mulheres estereotipadas que morrem como Ofélias por um homem, Lady Gaga, de modo mais surpreendente e corajoso do que importantes artistas cultas, dá um passo adiante.

No vídeo de “Paparazzi” fica exposto o amor-ódio que um homem nutre por uma mulher, a invalidez à qual ela é temporariamente condenada por sua violência e, por fim, uma vingança inesperada com o assassinato desse mesmo homem. “Incitação à violência”, pensarão as mentes mais simples; “feminismo como ódio aos homens”, dirá a irreflexão sexista acomodada, quando na verdade se trata de uma irônica inversão no cerne mesmo do jogo simbólico que separa mulheres e homens. Se em “Paparazzi” o deboche beira o perverso autorizado psicanaliticamente (a mulher sai da posição deprimida ou melancólica e aprende a gozar com seu algoz, que ela transforma em vítima), em “Bad Romance”, “o vídeo mais visto de todos os tempos”, mulheres de branco – como noivas dançantes – surgem de dentro de esquifes futuristas para curar uma louca que chora querendo ter um “mau romance” com um homem. Um contraponto é criado no vídeo entre a imagem do rosto da própria Gaga levissimamente maquiado, demarcando o caráter angelical de sua personagem, em contraposição ao caráter doentio da personagem da mesma Gaga de cabelos arrepiados e olhos esbugalhados. Entre eles a bailarina sensual junto de suas companheiras faz o elogio do corpo que é obrigado a se erotizar diante de um grupo de homens.

A noiva é queimada. Sobre a cama, no fim, a noiva como um robô um pouco avariado, mas ainda viva, contempla o noivo cadáver. A ironia é o elogio do amor-paixão, do amor-doença e morte ao qual foi reduzido o amor romântico pela estética pop da ninfa pós-feminista. O feminismo só tem a agradecer.

Em “Telephone”, a estética eleita é a da lésbica e da pin-up. Ambas criminosas. A primeira por ser uma forma de vida feminina que dispensa os homens, a segunda por ameaçá-los com uma estética da captura (a mulher-imagem-de-papel, a mulher “cromo”, a mulher-desenho-animado que configura o conceito do “broto”, do “pitéu”). No mesmo vídeo o personagem de Gaga compartilha com Beyoncé uma cumplicidade incomum entre mulheres.

Esse sinal é dado no meio do vídeo, quando Beyoncé vai resgatar Gaga na prisão e ambas mordem um pedaço de pão, que logo é lançado fora como algo desprezível. A comida mostra-se aí como o objeto do crime. O vídeo é mais que um elogio ao assassinato do mau romance, ou da vingança contra o evidente amor bandido de quem a personagem de Beyoncé quer se vingar. Trata-se de uma profanação da comida pelo veneno que nela é depositado. O amor bandido é morto pela comida, uma arma simbólica muito poderosa associada à imagem da mulher-mãe, da mulher-doação, dedicada a alimentar seu homem na antipolítica ordem doméstica.

O palco é a lanchonete de beira de estrada como em Assassinos por Natureza, de Oliver Stone. O assassinato é o objetivo do serviço das duas moças perversas que, no fim do vídeo, dançam vestidas com as cores da bandeira norte-americana – meio Mulher Maravilha – diante dos cadáveres de suas vítimas, já que, além do amor bandido, todos morreram. Cinismo? Sem dúvida, mas como paradoxal autodenúncia.

Mas o maior crime de Gaga, aquilo que fará com que tantos a odeiem, não será, no entanto, o feminismo sem-vergonha que ela pratica como uma brincadeira em que o crime é justamente o que compensa? E, como ídolo pop, não poderá soar aos mais conservadores como um modo de rebelar as massas de mulheres subjugadas pela perversa autorização ao gozo, doa a quem doer?

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O tempo cura


Elvis Presley, 74 anos


Janis Joplin, 66 anos


Raul Seixas, 64 anos



Cazuza, 51 anos


Elis Regina, 64 anos



Michael Jackson, 50 anos

José Fujocka
fujocka@fineartstudio.com.br
Photodesigner

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Luiz Gonzaga, o eterno rei do baião

Jorge Sanglard
jorgesanglard@yahoo.com.br
Jornalista, pesquisador e produtor cultural

O “Rei do Baião”, o velho Lua, o Gonzagão, nascido Luiz Gonzaga do Nascimento, em 13 de dezembro de 1912, dia de Santa Luzia, na Fazenda Caiçara, depois Araripe, perto de Exu, no sertão pernambucano, cantou como poucos a alegria e a dor da gente de sua terra. Morto em 2 de agosto de 1989, há 21 anos, o sanfoneiro do povo de Deus, a voz da seca, deixou como legado uma música viva e forte, impregnada de alma, coração e fé. É o que deixa claro o seu legado musical. Sua obra é eterna e, 20 anos após sua morte, permanece como uma força da natureza, um grito de liberdade em nome de um povo que ainda luta por sua cidadania. Mas o que pouca gente conhece é o início da trajetória musical de Luiz Gonzaga em Minas Gerais, mais precisamente em Juiz de Fora, onde serviu o Exército durante cerca de cinco anos a partir de 1932.

Pioneiro da canção de protesto, com “Vozes da Seca”, em parceria de 1953 com Zé Dantas, Luiz Gonzaga simbolizou a voz de quem não tinha nem voz, nem vez. Em “Vozes da Seca” o recado social é direto: “Seu dotô, os nordestinos / Têm muita gratidão / Pelo auxílio dos sulistas / Mais dotô, uma esmola / A um homem qui é são / Ou lhe mata de vergonha / Ou vicia o cidadão”.

A trajetória de Luiz Gonzaga é um símbolo de persistência, obstinação, talento e força criativa popular. Filho do lavrador e sanfoneiro de oito baixos Januário e de Ana Batista de Jesus, a Santana, Gonzagão foi o segundo dos nove filhos do casal. Quatro de seus irmãos também seriam sanfoneiros. Seu pai era respeitado no sertão nordestino como sanfoneiro e consertador de sanfonas e influenciou os filhos. Aos oito anos, Luiz Gonzaga já tocava em festas e mostrava vocação para a música. Aos 17 anos, um namoro frustrado com a jovem Nazarena, filha de um fazendeiro da região, daria início a uma mudança radical na vida do sanfoneiro.

Em 19 de setembro de 1980, em Juiz de Fora, Minas Gerais, antes do esperadíssimo show “A Vida do Viajante”, ao lado do filho adotivo Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior (22/09/1945 – 09/04/1991), o saudoso Gonzaguinha, o velho Lua voltava à cidade que mais marcara a sua vida após sair do Nordeste. Ao conceder um histórico depoimento ao Museu da Imagem e do Som de Juiz de Fora, tendo entre os entrevistadores os amigos Santo Lima, músico que acompanhou seu aprendizado no acordeão, e Romeu Rainho, seu empresário no início dos anos 1950, Luiz Gonzaga lançou um feixe de luz sobre um período pouquíssimo conhecido de sua vida.

Em entrevista emocionada, Gonzagão revelaria detalhes de sua saída de Exu, aos 17 anos, seu alistamento militar com a idade adulterada em um ano, poucos meses antes da eclosão da Revolução de 1930, sua vinda para Juiz de Fora, em 1932, onde viveu por cerca de cinco anos e aprimorou sua musicalidade, a ida para o Rio de Janeiro, em 1939, e o início do sucesso como o porta-voz do sertão, o Rei do Baião.

Gonzagão contou no depoimento ao MIS de Juiz de Fora em detalhes os motivos de ter deixado Exu: “Tudo isso que aconteceu comigo foi por causa de uma surra, uma surra bem dada, aquele castigo que, quando é bem aplicado, na hora exata, dá bons resultados. Foi o que aconteceu comigo. Puxador de sanfoninha, oito baixos, ‘pé de bode’, na companhia de meu pai, Januário, herdei essa vocação de tocador de sanfona. Minha mãe, uma mulher de mão aberta, Dona Santana, coração aberto, chegava a tirar dos filhos para matar um pouco a fome dos pobres. Pois bem, me considero o maior herdeiro, o herdeiro mais bem aquinhoado de meus pais, que nada tinham, mas tinham alma, coração e fé. Eu quis casar muito cedo, em 1930, aos 18 anos incompletos, e o pai da moça disse que eu era um tocadorzinho de merda, que eu não tinha futuro nenhum para sustentar a filha de um homem... E eu achei aquilo um desaforo. Moleque ignorante, raçudo, porque o pirão que mamãe fazia nos dava essa condição de ter bom físico, entendi de tirar a vida do homem. Porque negócio de matar gente no sertão foi mais maneiro, agora é que não é mais. Chamei o homem no canto da feira, assim, ele me enrolou na conversa, me tirou de banda, falou com a minha mãe e ela me expulsou dali da feira, fora da hora, porque ela não tinha vendido sequer as cordas que a gente tinha levado para vender e para poder comprar um quilo de carne e mais umas besteirinhas. Mas ela não quis vender nada, demos no pé e, chegando em casa, ela me cobriu no pau. Uma surra da moléstia. Meu pai me bateu pela primeira vez. Ele nunca havia me batido. Minha mãe tinha mão leve, mas meu pai não. Mas ele achou que eu havia me excedido e entrei no pau também pela mão pesada de meu pai”.

Foi a partir dessa surra de mãe e pai que Luiz Gonzaga resolveu sair de casa, em meados de 1930: “E foi aí que eu arribei, com raiva. Ingressei nas Forças Armadas e, para isso, tive que aumentar a idade, menti, porque eu queria me libertar”. Passou pelo Crato e depois por Fortaleza, no Ceará, onde serviu no 23.º Batalhão de Caçadores. A tensão política que precedia a Revolução de 1930 acabou levando Gonzagão e uma parte de seu batalhão para a cidade de Souza, na Paraíba, onde permaneceram por pouco tempo. Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, Gonzaga foi deslocado com seus companheiros de farda para o interior do Ceará e também para Teresina, no Piauí. Passado o primeiro período alistado, pediu para ser engajado no Exército com destino ao “Sul” e acabou chegando com seu contingente ao Rio de Janeiro em fins de 1931, onde permaneceria internado no Hospital Geral do Exército, durante alguns meses, por ter adoecido.

Em agosto de 1932, Luiz Gonzaga foi destacado para Belo Horizonte, Minas Gerais, para o 12.º RI que, segundo Gonzagão, havia se esfacelado na Revolução de 1930 por ter resistido, leal e fiel ao governo, não se entregando e pagando um preço muito caro. Em novembro de 1932, chegaria a Juiz de Fora sendo destacado como corneteiro do Exército, servindo no 10.º RI. O corneteiro «Bico de Aço», como ficou conhecido, foi engajado e reengajado. Segundo Gonzagão, esse tempo de Exército fez com que se tornasse o mais antigo do grupo, com algumas folgas, e começou a fazer umas farrinhas. Como corneteiro, encantava os namorados com seu toque inusitado do ‘Silêncio’: “Eu estava fazendo da corneta um piston. Eu queria ser artista e danei de florear na corneta, mas eu me dei mal. E, um dia, fui em cana porque toquei bem demais. A disciplina me apanhou e eu tive que tocar o ‘Silêncio’ certo. Porque diziam que era tão bonito o ‘Silêncio’ que eu tocava que os namorados ficavam ali por perto para irem pra casa só depois que eu tocasse. E eu ficava por perto do corneteiro destacado para pedir pra me deixar tocar no lugar dele”.

Foi nesse período que conheceu o violonista e cantor Santo Lima e o sanfoneiro Dominguinhos Ambrósio, que faziam bonitas serenatas e Gonzagão gostava de acompanhá-los: “O Santo Lima cantava e tocava tanto um cavaquinho quanto um banjozinho legal. E a gente ia ali por aquelas ruas que têm aquelas caboclas diferentes, vindas de todas as partes do interior do Estado, vindo por aqui numa vida fácil, fácil, fácil. Muito fácil, mas ninguém queria ir para lá, homem nenhum queria ir lá enfrentar aquela vida fácil. Só queria saber de pegar as caboclas e sair vadiando por aí”.

Foi numa dessas noitadas que Luiz Gonzaga pegou um acordeão, pela primeira vez, das mãos do saudoso Dominguinhos Ambrósio: “Eu do Exército e ele da Polícia Militar, lá da Tapera, do famoso Segundo Batalhão de Minas”. E arremata: “Santo Lima me ensinou a cantar samba, me ensinou até a fazer acorde no violão e no cavaquinho. Eu também andei arriscando por aí, no violãozinho, tocando nas grossas e, na sanfona, procurando as pretas”. Segundo Santo Lima revelou na entrevista, como Gonzagão não tinha nada para fazer à noite acabava carregando o violão para ele no caminho das serenatas. E ainda contou uma história inédita: “O Regimento do Exército ordenou que o Dominguinhos Ambrósio, da PM, ensinasse ao Luiz Gonzaga a escala de 120 baixos e eu fui falar com o Dominguinhos, que reagiu e disse que, por ordem, não ensinaria. Só ensinaria por livre e espontânea vontade e porque gostava demais dele. E assim foi feito”. Mas, uma coisa era certa, Gonzagão já tocava a sanfoninha dele como gente grande e muita gente com os 120 baixos de um acordeão não fazia o que ele criava só com oito baixos.

Em 1937, ainda em Juiz de Fora, já estava pensando em pegar outro caminho: “Minha vida sempre foi andar, meu destino era andar, foi andando, foi amando esse terreno sagrado que me tornei Luiz Gonzaga, mas levei de Juiz de Fora o instrumento e essa vivência musical toda. Em Juiz de Fora, foi onde marquei mais a minha vida, após sair do Nordeste. Eu aprendi alguma coisa com o Santo Lima, com o Elias, músico do 12.º RI, a jazz band do 12.º, conheci o banjista famoso que cantava e sapateava, o Otavinho (Otávio Cataldi do Couto), e também o irmão dele o Mozart (Mozart Cataldi do Couto), que era divino tocando cavaquinho e violão. Conheci ainda o Armênio. E o Dominguinhos me levou a uma rádio para ver como funcionava e até dei uma puxadinha de fole por aí. Mas não havia a intenção de documentar nada naquela época. Acho difícil encontrar algum vestígio desse tempo”.

Com a organização de uma companhia que seria criada dentro do 11.º RI, em São João Del Rei, e, depois de formada, ia para Ouro Fino, no Sul de Minas, Luiz Gonzaga deixou Juiz de Fora. Em 1939, depois de uma década no Exército, daria baixa da caserna e rumaria para o Rio de Janeiro, levando sua sanfona branca de 80 baixos. Sua intenção era aguardar num quartel o navio do Lloyd que seguiria para Recife e depois pretendia voltar para Exu. Mas não foi isso que aconteceu. O atraso do navio fez com que Luiz Gonzaga explorasse a noite da zona boêmia do Mangue, no Rio de Janeiro, onde tocava, pelo dinheiro que pintasse, um repertório distante de suas raízes musicais. Por sugestão de um grupo de estudantes nordestinos, radicados no Rio, passou a tocar “os negocinhos do Nordeste”, isto é, forró, xaxado, maracatu e baião. A partir daí, sua vida começaria a mudar novamente.

Ao apresentar o chamego "Vira e Mexe" no programa de rádio de Ary Barroso conquistou a nota máxima, a nota cinco, e uns trocados, vislumbrando um novo caminho ao tocar as músicas do Nordeste brasileiro, aquelas coisas que ouvia, desde criança, ao lado do pai sanfoneiro Januário. Em março de 1941, Luiz Gonzaga com sua sanfona de 80 baixos substituiria um sanfoneiro na gravação da canção “A viagem do Genésio”, de Genésio Arruda e Januário França, deixando registrado seu batismo de fogo musical. Esta gravação abre o primeiro volume da caixa de três CD. Sua trajetória artística tomaria impulso e, graças a um contrato com a Rádio Tupi e com as gravações de seus primeiros discos de 78 rotações, na RCA, em 11 de março de 1941, Gonzaga dava os primeiros passos concretos para tornar seu nome uma legenda da música popular brasileira de todos os tempos. Segundo o pesquisador José Silas Xavier, as primeiras gravações trazendo Luiz Gonzaga cantando só surgiriam em abril de 1945. Daí pra frente, Gonzagão firmaria sua carreira e conquistaria o país com sua voz e sua sanfona.

De sanfona em punho, Gonzagão percorreu o Brasil inteiro e semeou por este imenso chão seu canto de fé e de esperança. Seu destino foi andar por este país afora e encantar o povo com sua música entranhada nas raízes do Brasil. Os anos 1980 marcaram a retomada do reconhecimento nacional da importância cultural e social do canto de Luiz Gonzaga. A turnê “A Vida do Viajante”, ao lado de Gonzaguinha, resgataria o prestígio de Gonzagão e reafirmaria sua contribuição como mestre da canção popular brasileira.

O produtor Leon Barg, falecido aos 79 anos, no último dia 12 de outubro, no Rio de Janeiro, reeditou em CD pelo selo Revivendo inúmeras preciosidades musicais de Gonzagão. Após uma minuciosa pesquisa, tendo como assistente de produção a filha Lilian Barg, em 2006, Leon lançou um tributo triplo, pela Revivendo, intitulado “Luiz Gonzaga, seu canto, sua sanfona e seus amigos”, numa caixa de CDs em três volumes, que é uma homenagem ao sanfoneiro maior do Brasil e um exemplo do vigor da música de Gonzagão. Barg revelou todo o cuidado em reproduzir faixas históricas extraídas de velhos discos em 78 rpm e de LPs, trazendo 18 canções em cada um dos três CDs e a caixa atesta a importância do mestre Luiz Gonzaga no cenário da música popular brasileira do século XX, além de ser um tributo prestado à preservação da memória musical do Brasil. Constata a força de parceiros como Humberto Teixeira, Zé Dantas e João Silva, entre muitos outros compositores, e ainda revela canções de outros autores, como Walter Santos / Tereza Souza, Dominguinhos / Fausto Nilo, Genésio Arruda / Januário França, Mauro Pires / Messias Garcia, Patativa do Assaré, Rosil Cavalcanti, Onildo Almeida, Raul Sampaio, Luiz Ramalho, Genésio e o “velho” Januário José dos Santos, pai do sanfoneiro.

Entre as raridades reveladas está a gravação de Gonzagão, em 1968, em plena ditadura militar, cantando a emblemática “Prá não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, que gravara, em 1965, a obra-prima “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, também incluída nesta edição histórica. A apresentação desta caixa da Revivendo foi assinada pelo pesquisador José Silas Xavier, uma referência na música popular brasileira, que narrou inúmeras passagens da trajetória do sanfoneiro maior do Brasil e traçou um perfil do compositor e instrumentista, que se tornaria uma das maiores expressões musicais brasileiras de todos os tempos. O referido depoimento de Gonzagão ao MIS de Juiz de Fora serviu de base para parte do texto elaborado por Silas apresentando os CDs. O teor integral da entrevista foi divulgado em primeira-mão, em julho de 1997, pela revista AZ, editada na época pela Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (Funalfa).

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Clarice Lispector - Infelicidade Inspiradora

José Castello
j.castello@uol.com.br
Escritor e jornalista

Clarice Lispector amou o romancista Lúcio Cardoso, homossexual, e o cronista Paulo Mendes Campos, que era casado. As paixões impossíveis alimentaram sua literatura - e ela não foi a única escritora a se nutrir do fracasso amoroso


A paixão alimenta a literatura ou a enfraquece? Amar leva a escrever ou a calar? Clarice - A Vida de Clarice Lispector, biografia do jornalista norte-americano Benjamin Moser - que chega neste mês ao Brasil com o status de ser a mais completa sobre a autora de Laços de Família e Felicidade Clandestina —, sugere que, mesmo quando o amor é impossível, ele estimula a escrita. Mesmo fracassado, um amor pode ajudar a escrever.

Casada entre 1943 e 1959 com o diplomata Maury Gurgel Valente, Clarice nunca escondeu que se sentia sufocada pela vida conjugal. "Nada tenho feito, nem lido, nem nada. Sou inteiramente Clarice Gurgel Valente", escreveu em uma carta datada de 1944. Se o casamento com Maury "deu certo" - gerou dois filhos e perdurou por 16 anos - a paixão pelo romancista mineiro Lúcio Cardoso foi muito mais importante para sua escrita, mesmo "dando errado".

Quando se conheceram, em 1940, Clarice tinha 20 anos, e Lúcio - brilhante e sedutor -, 28. Mas era um amor impossível: Lúcio era um homossexual assumido. Havia, porém, lembra Moser, um segundo impedimento: os dois eram "parecidos demais". Mesmo assim, especula Moser, foi esse amor não correspondido que levou Clarice a cultivar a solidão - condição essencial para a escrita. Mais que isso: foi o fracasso no amor que a empurrou para a literatura. Por meio de Lúcio, ela passou a frequentar as rodas literárias do "grupo introspectivo", que se reunia no Bar Recreio, no Rio de Janeiro. Chegou, assim, à poesia metafísica de Augusto Frederico Schmidt e encontrou sua ascendência "mística" em Cornélio Penna e Octavio de Faria, essenciais para a sua obra. Foi Lúcio Cardoso quem sugeriu o título de seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem (1943). Foi ele, ainda, quem lhe mostrou que as anotações dispersas, que ela tomava às tontas e pareciam incoerentes, eram, na verdade, o seu método.

Nos anos 60, Clarice Lispector se aproximou de outro escritor: o cronista e poeta mineiro Paulo Mendes Campos. Desde 1959 estava separada de Maury, com quem tinha morado na Itália, Suíça e Estados Unidos. Em junho daquele ano, regressou com os dois filhos ao Brasil, apostando novamente na solidão. Em 1962, porém, envolveu-se com Paulo.

Diz Moser, com astúcia, que ele foi uma "versão heterossexual" de Lúcio Cardoso. Ambos eram mineiros, católicos, talentosos e sedutores. Eram também perdulários, boêmios e alcoólatras. Como Lúcio, Paulo exerceu uma forte influência intelectual sobre Clarice. Mas era outro amor impossível: ele era casado. Mesmo assim os dois viveram uma paixão secreta. Vínculos invisíveis os ligavam. O jornalista Ivan Lessa assim resumiu: "Em matéria de neurose, nasceram um para o outro". Clarice tentava ser discreta, mas não continha a ansiedade. Intimado pela mulher, Paulo partiu com a família para Londres. Moser avalia que o fim do romance isolou Clarice do meio literário e, de um modo mais geral, do "mundo adulto", com o qual ela teve sempre laços muito frágeis. Ela o amou até o fim de seus dias.

Tensão e Loucura

É sempre ambígua e tensa a relação amorosa entre escritores. Influenciada pela filosofia de Jean-Paul Sartre, com quem viveu uma relação heterodoxa, Simone de Beauvoir acreditava que todo amor é impossível, mas que era possível fazer muito de seus destroços. Só porque via o amor como uma experiência desastrosa, Simone conseguiu amar Sartre: não moravam juntos, não tiveram filhos e namoravam outras pessoas. Ele mais que ela. "Não somos a mesma pessoa, mas temos as mesmas recordações", Simone argumentava. Tinha certeza de que, escrevendo, ajudava Sartre a entender quem ele era.

Às vezes, como mostra a relação dos poetas Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, a mistura de literatura e paixão resvala na loucura. Quando se aproximaram, Verlaine, um homem casado, tinha 26 anos, e Rimbaud era um rapazote de 17. Correspondiam-se. Apaixonaram-se. Verlaine se embriagou com as ideias de Rimbaud, que combatia os parnasianos, a família e a pátria. Na busca do "desregramento dos sentidos", abusaram do absinto e do haxixe. Mas brigavam sempre. Verlaine se arrependia sempre. "Volte, volte, amigo. Juro que serei bom", escreveu em carta de 1873. Numa dessas brigas, Verlaine feriu Rimbaud com um tiro no punho. Passou dois anos na prisão. A paixão os destruiu, mas ampliou os limites de sua poesia.

A mistura de amor e literatura tomou uma forma quase perfeita na figura da escritora Lou Andreas-Salomé. Brilhante e sensual, ela "devorou" o espírito de três grandes homens: o poeta Rainer Maria Rilke, o filósofo Friedrich Nietzsche e o fundador da psicanálise, Sigmund Freud. Foram amores distintos - que ela, friamente, chamava de "experiências". Com Rilke, ela viveu uma paixão intensa que esbarrou na fraqueza do poeta. Aos poucos, Lou entendeu que a poesia era, para ele, o avesso do desespero. Ficou com o melhor - o poeta - e se afastou do homem. Pragmática, escreveu: "Se você quer uma vida, aprenda a roubá-la".

Mesmo quando bordeja o desespero, a paixão sustenta a literatura. Casada em 1912 com o escritor Leopold Woolf, nem o amor salvou Virginia Woolf. Na base da paixão de Leopold por Virginia estava não só o fascínio por sua escrita, mas o desejo de salvá-la da loucura - que enfim, no ano de 1941, levou-a a afogar-se no rio Ouse. A admiração literária e o amor não garantiram a felicidade. Mas a fizeram escrever.

Também é impossível não pensar no poeta britânico Ted Hughes, cujo amor foi insuficiente para salvar a mulher, a norte-americana Sylvia Plath, do suicídio - que ela enfim cometeu em 1963. Um ano antes, cansado, Hughes a deixou. Tantas e tantas vezes a paixão não basta. Mas a importância de Hughes na poesia de Sylvia é indiscutível.

Mesmo quando se torna asfixiante, a paixão não anula a escrita. O caso entre os americanos F. Scott Fitzgerald e Zelda Sayre é uma prova disso. Em carta de 1920, Zelda escreve ao amado: "Eu jamais poderia passar sem você - ainda que me deixasse morrer de fome e me espancasse". A presença esmagadora de Scott não a impediu de escrever um belo romance como Esta Valsa É Minha, de fundo autobiográfico. Já em sua vida pessoal, o amor não lhe bastou. Em 1930, demonstrando a insuficiência da paixão para sustentar uma vida, Zelda foi internada como louca.

Nem todos, como o argentino Adolfo Bioy Casares, tiveram a sorte de transformar a parceria amorosa - no caso, o casamento com a escritora Silvina Ocampo - em fecunda parceira literária. Juntos, escreveram Quem Ama, Odeia, novela simples, mas inspirada, que resume um pouco não só os paradoxos da paixão, mas as relações tensas, porém produtivas, entre amor e literatura.

Adolfo e Silvina são, provavelmente, uma exceção. Mesmo quando fracassa, porém, um amor pode salvar um escritor.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Artistas do sertão

Wilker Sousa
wilkersouza@revistacult.com.br
Jornalista

Na região serteneja do Cariri, artistas locais reforçam a tradição do artesanato

Composta por 12 municípios do sertão cearense, a região do Cariri tem no artesanato uma de suas principais manifestações artísticas. Na esteira da efervescência cultural que toma conta da região durante os dias da Mostra Sesc, artesãos locais ganham maior visibilidade ante os olhares curiosos daqueles que tomam contato com suas obras pela primeira vez. Muitos desses olhares convergem para a sede da Associação dos Artesãos de Juazeiro Mestre Noza, localizada no antigo prédio da cadeia pública de Juazeiro do Norte, onde funciona desde sua criação, em 1985.

O nome é uma homenagem ao pernambucano Inocêncio Medeiros da Costa (1897-1983), o mestre Noza, cuja arte foi estimulada por Padre Cícero nos primórdios de Juazeiro. Fundada a cidade, Padre Cícero buscava desenvolver a economia local, incentivando os moradores a desenvolverem suas aptidões; e foi por meio desta iniciativa que Noza se tornou o primeiro artesão do município. Seu nome hoje catalisa os 275 artistas integrantes da Associação, entre membros efetivos e cadastrados. A diferença é que aos primeiros é conferido o direito de votar e de ser votado em pleitos realizados a cada dois anos. Esculturas em madeira ou argila, xilogravura, literatura de cordel, todas as obras são compradas pela associação, política que, embora dispendiosa, garante a renda de muitos artistas: “seria melhor que os trabalhos ficassem consignados, mas aí não teria mais artesãos porque a maioria tem como única fonte de renda a produção da arte popular”, explica Hamurábi Bezerra da Cruz, 39 anos, presidente da associação.

Dada a marcante tradição religiosa da região, predomina a arte sacra, como atestam as inúmeras representações de Cristo, da Virgem, dos santos, além, é claro, do Padre Cícero, cujo lugar na hierarquia divina parece ultrapassar o status de santo. Há, contudo, outros personagens recorrentes, com destaque para Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré e Lampião. Os preços variam. Questionado sobre os valores, Hamurábi exibe desde as miniaturas de santos a R$ 5, até a escultura em homenagem a Luiz Gonzaga, recém-vendida a turistas norte-americanos por R$ 2.500.

Com o dinheiro das vendas aliado ao fomento estatal (a associação mantém um convênio com o governo do Ceará e o Ministério da Cultura), o intuito é manter viva uma tradição se arrasta por gerações, sem se deixar seduzir por “modernas” técnicas de aprendizado, conforme argumenta Hamurábi: “a gente se sente invadido quando chega alguém para dar oficinas de design, porque querem dizer para gente como tem que fazer. Acredito muito no que é nato. A gente precisa desenvolver a aptidão, mas ninguém pode ensinar o outro a ser artista.”

Não é por enricar

A 45 quilômetros de Juazeiro está o município de Nova Olinda. Ao chegar à cidade, quem procurar por um senhor conhecido por seus trabalhos em couro logo será conduzido à oficina do mestre Espedito Seleiro. Mais do que um apelido, “Seleiro” é uma herança paterna, pois era seu pai quem produzia selas para os vaqueiros da região, inclusive para o bando de Lampião. Quando o pai faleceu em 1971, Espedito já havia aprendido o ofício e o transmitiu aos seus irmãos e filhos. Passados mais de 50 anos dedicados ao artesanato, em 2008 ele recebeu do governo cearense o título de Mestre da Cultura, em reconhecimento à contribuição dada por ele à cultura do estado. A partir de então, passou a receber um salário mínimo, o qual se soma os lucros de sua oficina – apinhada de calçados, bolsas, entre outros muitos artefatos de couro. O dinheiro, contudo, não é um fim: “ Isso é uma coisa que a gente faz por amor à profissão. Eu me dou bem quando estou dentro de uma oficina igual a essa aqui; não é interessado em enricar, é só porque eu adoro o trabalho.”

Há tempos seus artefatos cruzaram a fronteira do sertão nordestino e caíram no gosto de turistas estrangeiros e de brasileiros ilustres como Gilberto Gil. Embora haja uma demanda considerável de pedidos para exportação, o artesão alega não ter condições de atender: “a gente só não manda mais para outros países porque não tem produção para isso. Aqui é diferente de uma fábrica em que todo dia vai gente na sua porta pedir emprego. Aqui eu tenho que começar com alguém bem novinho e quando ele vem a aprender, já está velho.” Enquanto dá atenção aos clientes de variadas idades e graus de escolaridade, Mestre Espedito caminha sob o olhar atento de outro ilustre sertanejo, Luiz Gonzaga, cuja frase estampada no alto da parede é endossada pelos admiradores da cultura popular: “Você pode até cursar na melhor escola, mas não será ninguém se não souber respeitar as ideias e a cultura do povão.”

Humanismo como patologia



Vladimir Safatle
vladimirsafatle@revistacult.com.br
Professor no departamento de filosofia da USP

Há palavras que só podem ser escutadas quando gritadas. Só que, para gritar, é necessário força e, quando algumas dessas palavras não têm mais força para serem gritadas, a única coisa que resta é esperar que elas sejam ouvidas quando reduzirmos tudo o que nelas se contrapõe ao silêncio.

Percebamos, com os olhos de quem descobre um sintoma revelador, que aqueles que gostam de ancorar no porto do “humanismo” são os mesmos que não cansam de olhar para outros mares e chamar os que lá navegam de “niilistas”, “irracionalistas” e, se for necessário, até mesmo de “terroristas”. A estratégia é clara. A partir do momento em que a designação for imposta, nada mais falaremos do designado, pois simplesmente não será possível falar com ele, porque ele, no fundo, nada fala, haveria muito “fanatismo” nesses simulacros de sons e argumentos que ele chama de “fala”, haveria muito “ressentimento” em suas intenções, haveria muito “niilismo” em suas ações.

Bento Prado Júnior, que sabia muito bem o que esse tipo de esconjuração esconde, costumava lembrar, nessas situações, que: “Sempre se é o irracionalista de alguém”. Tudo indica que, infelizmente, caminhamos para um tempo em que será necessário acrescentar: “Sempre se é o niilista de alguém” e, pior, “Sempre se é o terrorista de alguém”. Ou seja, sempre há alguém a querer nos expulsar da razão, da criação, da política. Acusações dessa natureza são apenas a última arma desesperada daqueles que têm medo de a crítica ir “longe demais”, colocar em questão o que, para alguns, não deveria ser questionado, transformar a crítica, de mera comparação entre valores e caso, no questionamento de nossos próprios valores fundamentais.

Natureza segregadora e totalitária

Nesse sentido, que o humanismo só possa atualmente ser pronunciado por meio dessas suas designações impronunciáveis, que ele só possa ser enunciado abrindo esse lugar vazio para o qual todos aqueles que não se reconhecem mais na figura atual do homem devam ser enviados, isso apenas demonstra sua natureza profundamente segregadora e totalitária. Pois, daqui para a frente, o humanismo sempre virá para nos pregar o evangelho da tolerância de condomínio fechado, o racionalismo daqueles que acreditam que a maior realização da justiça é a guerra preventiva contra qualquer coisa que estiver geograficamente a leste da Turquia, daqueles que estão dispostos a falar com todos, desde que todos falem a língua dos seus valores e princípios.

Acima de tudo, “humanismo” será a palavra preferida daqueles que querem nos exilar no presente. Pois uma das maiores características do século 20 foi a luta pela abertura do que ainda não tem figura, luta pela advento daquilo que não se esgota na repetição compulsiva do homem atual e de seus modos. Essas lutas podem ser encontradas nas discussões próprias aos campos da estética, da política, das clínicas da subjetividade, da filosofia. Em vários momentos de nossa história recente, elas mostraram grande força para mover a história, engajar sujeitos na capacidade de viver para além do presente. No entanto, vemos atualmente um grande esforço em apagar tal história, isso quando não se trata de simplesmente criminalizá-la, como se as tentativas do passado de escapar das limitações da figura atual do homem devessem ser compreendidas, em sua integralidade, como a simples descrição de processos que necessariamente se realizariam como catástrofe. Como se não fosse mais possível olhar para trás, pensar em maneiras novas de recuperar tais momentos nos quais o tempo para e as possibilidades de metamorfose do humano são múltiplas. Pois o humanismo parece querer nos ensinar a cartilha do passado que cheira ao enxofre da catástrofe e o futuro que não pode ser muito diferente daquilo que já existe. Talvez seja o caso, então, de dizer que tudo o que seus defensores, brandos ou não, conseguirão é bloquear nossa capacidade de agir com base em uma humanidade por vir, nos acostumar com um presente no qual, no fundo, ninguém acredita e a respeito do qual muitos já se cansaram. Ou seja, elevar o medo a afeto central da política.

domingo, 28 de novembro de 2010

Érico Veríssimo – do mundo ordenado dos EUA à vertigem do México




Ademir Demarchi
revistababel@uol.com.br
Doutor em literatura brasileira, escritor

Érico Veríssimo notabilizou-se por conceber a região do sul do Brasil literariamente, de forma inédita e atraente, transformando em saga a vida dos gaúchos e dando colorido à vida da capital de província, a Porto Alegre dos anos 1930 aos 40. Mas sua obra registra também que sua imaginação transcendia aquela região do sul do Brasil e a ampliava para uma idéia continental que incluía os países de fala hispânica e sua cultura. Essa região ampliada aparece em sua obra por aquilo que a América do Sul apresentava de mais grotesco - e assemelhado com o Brasil - como a ditadura militar e a repressão política, presentes em Incidente em Antares, em que, num divertido trecho, sete mortos vêm à praça pública denunciar que a podridão não é uma característica deles, mas dos vivos e governantes, estabelecendo um paralelo com o país da década de 1960, governado por militares. Outro desses locais é a República de Sacramento, país imaginário em Nova Granada, que seria uma ilha fictícia do Caribe, governada despoticamente por um ditador militar que se apóia na oligarquia rural e empresas multinacionais norte-americanas.

Trata-se de uma literatura muitas vezes alegórica, que se utiliza da criação de um local imaginário e distante como recurso para falar da realidade de um Brasil sob censura, ao mesmo tempo em que expressa aspecto geopolítico, de um pensamento e condição sul-americanos, fundados por contraposição à forte presença política e cultural norte-americana na região.

Em México – História duma viagem, de 1957, essa condição de sul-americano aparece com todas as suas vicissitudes e contradições. Lemos nesse livro o premente desejo do escritor de aprofundar o conhecimento real dessa América do Sul idealizada nos textos, assim como o registro de sua condição de fora-de-lugar, despaizado, tanto no México que busca com encanto e conhece em suas misérias, quanto nos Estados Unidos da América, em que gosta do conforto mas que o abala por anestesiar e impedir de pensar.

Ordem e “bagunça”

Nos EUA o que encanta um sul-americano é o que lhe soa como falta em seu país: a organização, a economia pujante, a tecnologia expressa em automóveis, edifícios e indústrias, a propaganda e o consumo. Sobre os EUA o escritor nos diz: “amo este país, gosto de Washington. É um burgo encantador, um plácido jardim de turistas, diplomatas e funcionários públicos – correct, charmant et ridicule. Um modelo de organização, um primor de urbanismo. Tudo aqui funciona direitinho, ‘a tempo e a hora’, como dizia Dona Maurícia, minha falecida avó”.

No entanto, essa ordem anglo-saxônica que encanta num primeiro momento por ser o avesso da “bagunça” sul-americana oriunda da colonização européia, espanhola ou portuguesa, breve enfastia. Assim, logo a rotina se transforma em algo maçante pois o escritor, obrigado a viver numa “alegria de rotariano”, se vê sujeito a participar de almoços semanais no Clube dos Alegres Ursos, em que os homens se reúnem com “grotescos chapéus de papel” nas cabeças para contar anedotas e ouvir conferências - no caso de Érico como palestrista, sobre a cultura brasileira, cuja receptividade é frustrante, sobre o que ele nos diz que “Esperei que perguntassem como vivem os brasileiros, como amam, dançam, cantam, sonham e morrem... Mas qual! Queriam que eu lhes desse as cifras da exportação de café, o rendimento per capita da população, o índice de precipitação pluvial”.

Há um sentimento de ridículo nisso tudo que estimula o senso de humor irônico, constante, que perpassa o livro e nos dá um especial prazer de leitura. Assim responde Érico, expondo a impropriedade de alguém que se baba e ao mesmo tempo se preocupa com a economia: “O cavalheiro que estava a meu lado, os lábios lambuzados de sorvete de baunilha, quis saber que está fazendo nosso governo para combater a erosão do pátrio solo. Respondi que Villa-Lobos havia escrito uma sinfonia intitulada Erosão e que todos nós esperávamos que isso resolvesse definitivamente o problema. E não é que o homem levou a resposta a sério e quis pormenores técnicos?”.

Mas há mais nesse país pródigo. Aos ursos somam-se as velhotas “limpas, alegres, enfeitadinhas, decentes, gentis, sedentas de informação e animadas pelos mais puros sentimentos cívicos. Pertencem a mil clubes, mil comissões, mil fraternidades. Fazem coisas, organizam coisas, querem saber coisas. Colaboro com elas, faço-lhes conferências sobre todos os assuntos, inclusive e principalmente sobre os que não conheço. Respondo às suas perguntas com paciência filial. Mas elas me sufocam, Bill, ai, elas me enlouquecem! Vivam as nossas velhas brasileiras! Salve Dona Maurícia com seu xale xadrez, suas chinelas bordadas, seus bolinhos de polvilho, seus guardanapos de croché, sua asma e seus silêncios! Nunca pertenceu a um clube. Nunca foi a uma conferência, benza-a Deus!”

O México mágico

A viagem ao México, assim, nasce do esgotamento de viver nos EUA, sobre o qual o escritor nos confessa: “estou cansado deste mundo lógico, anseio por voltar, nem que seja por poucos dias, a um mundo mágico. Sinto saudade da desordem latino-americana, das imagens, sons e cheiros de nosso mundinho em que o relógio é apenas um elemento decorativo e o tempo, assunto de poesia. Dêem-me o México, o mágico México, o absurdo México!”

Querer o absurdo em lugar do ridículo de tornar-se um urso norte-americano e vestir chapéu de papel não livrará o escritor da pecha, parecendo já uma condição desconfortável, pois em meio a um descarrilhamento de trem, na viagem, um homem alourado o confunde com um norte-americano e Érico confessa que explicar o contrário “seria inútil, pois minha mulher tem olhos azuis e está a bater fotografias desesperadamente”.

Aquele México mágico desejado, assim, é o que o escritor conheceu há pouco mais de um ano antes dessa nova viagem, de onde voltou “perturbado com o pouco que vi e o muito que adivinhei”, e do qual restou um gosto que não é doce, nem amargo, mas “esquisito, raro, diferente, mistura de tortilla, cigarro de palha, chile e sangue. Um gosto seco, às vezes com certa aspereza de terra desértica, não raro com inesperadas e perecíveis doçuras de fruto tropical”, que sumaria como sendo país de um “gosto pardo” e de “rústica tragédia”.

A viagem ao México, portanto, logo permitirá ao escritor trocar os funcionários americanos “louros, magros e joviais” pelos mexicanos “gordos, cabeludos e taciturnos”, ou, já no trem, cabineiros norte-americanos “gordos, luzidios e sorridentes negrões” por “sujeito magro e calvo, de face cadavérica e barba de dois dias”, numa paisagem de “fascinação quase mórbida” – “Jamais vi tamanha desolação” - que lhe dá sensação de déjà vu por lembrar o nordeste brasileiro, composta por índios e índias descalços, “retacos, feios, sujos e tristes” que ficam parados nas ruas e erguem para o trem “suas enigmáticas caras cor de terra”.

Aquele México mágico rapidamente se transforma numa ilusão demolida pela onipresença de mendigos, foguetes, bilhetes de loteria, “verdejantes ilhas de esterco”, auréolas de moscas, manchas escuras num muro que remetem a memória diretamente ao “sangue dos fuzilados de antigas revoluções”, saudades da “alvura das toalhas dos carros-restaurantes americanos, do brilho argentino de seus talheres, da limpa rigidez dos geladinhos caracóis de manteiga” que, neste novo lugar, tem “consistência de pomada”.

Disso para a ocorrência de um descarrilhamento do trem é um passo e logo o escritor se põe a nos descrever a passividade dos índios mexicanos em meio ao desastre – “No soy autoridad, señor” – cada um cuidando da sua vida, como se vivessem “num mundo à parte do nosso, como peixes num aquário a mirar-nos furtivamente com seus olhos imóveis, num silêncio líquido e oblíquo” tal como no conto “Axolote”, de Julio Cortazar. O escritor então é tomado por sentimento humanitário, ou tipicamente populista que acometia os intelectuais de esquerda – “São homens, são teus irmãos, digo para mim mesmo com a melhor intenção franciscana. Quero amá-los. Quero ao menos tolerá-los. Dou disfarçadamente um peso a um menino que ao passar nos lança um olhar comprido. Ele apanha a nota indiferente, sob o olhar ainda mais indiferente da mãe”. A atitude resultaria inútil se não fossem as reflexões que suscitam, pois o menino “apanha a nota indiferente, sob o olhar ainda mais indiferente da mãe. Por que fiz isso? Sentimento de culpa? Será que pretendo com esse peso penitenciar-me de ser um ‘pequeno-burguês sentimental’, como diria Jorge Amado, de ter o que tenho, de não haver nascido índio numa casa de adobe no deserto de Chihuahua?”

O estranhamento se aprofunda na “vergonha de ser turista”, de considera “sacrílego comer neste vagão quando no outro há feridos que sofrem, as peles e as vestes ainda manchadas de sangue”.

Nesse ritmo de tensão Érico Veríssimo vai discorrendo sobre o México, indo desse tenso contato com sua população à descrição de aspectos históricos antigos, como se estivesse em pleno momento que descreve, ou momentos antes, por exemplo, do grande massacre a que os astecas foram submetidos pelos espanhóis. Isso mantém o tom quente da narrativa e enfatiza os contrastes dessa cultura que ele descobre, sendo comum incorporar ao texto bizarrias como a de que os astecas criavam cães para comer, entre tantas outras, o que distancia o México cada vez mais daquela cultura ordenada dos EUA e também da sua própria cultura.

Sínteses: mestiçagem e diversão

É preciso, porém, buscar saídas dessa contraposição de culturas, buscar um equilíbrio entre o excesso da ordenação norte-americana e o caos da vida sul-americana. Érico Veríssimo, assim, tenta encontrar uma síntese baseada na mescla, numa mestiçagem que não seja o falseamento da incorporação de vestimentas como os macacões de zuarte para jogar basebol pelos meninos com “caras cor de terra”, de nítida influência texana. Ele busca antes uma solução física, como no exemplo de uma então avançada câmara fotográfica da qual ele e a mulher levam para a viagem e da qual lêem superficialmente a “bula”, preferindo confiar no olho a serem os “metódicos, os cautelosos, e – por que não dizer? – os sensatos” que usam fotômetros para medir a intensidade da luz ambiente adequada para as fotografias. Assim, tem-se o que ele diz ser uma “reflexão psico-fisiológica” que traduz a buscada mestiçagem, encontrada num entrelugar que não está nem na máquina, nem no cérebro tido ele mesmo como uma máquina, mas no corpo como um todo, que se apropria de ambos baseado na intuição em vez de restringir-se na racionalidade, não para conquistar e transformar o mundo em técnica, trabalho mecânico e em dados econômicos mas para fruí-lo e usá-lo como fonte de diversão e prazer: “O latino usa sempre o corpo em situações em que o anglo-saxão preferirá usar uma de suas muitas engenhocas. Resultado: eles fazem as coisas melhor, mas nós nos divertimos mais”.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

McCartney: reflexos

Rodrigo C. Vargas

A música com os Beatles assumiu o papel que antes pertencia à literatura, o de liderar os miseráveis. Até aquele ponto, a música transitava entre duas possibilidades: pequenos grupos primitivos e a elite wagneriana. O rock feito por aqueles garotos mudou o percurso dos mitos. Era possível ser um. Mesmo assim, algo permaneceu. O fenômeno da cópia dos cabelos compridos e dos terninhos aconteceu também com os jovens europeus do ano de 1774. Inspirados na obra Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, vestiam-se como a personagem do livro, calça e colete amarelos com botões de metal e jaqueta azul. A arte sempre influenciou a vida das pessoas.

Essa noite um evento aproximou algo que para mim nunca existiu. Acabei de ver pela televisão Paul McCartney em São Paulo e suas letras me convenceram que não há como medir gênios, como também não há como não compará-los. Arrisco. McCartney compôs provavelmente as letras mais tocantes do último século. Sua sensibilidade lembra o poeta francês Arthur Rimbaud. Apesar de estarem separados pelos estilos e por um século, os dois se encontram incontáveis vezes naquilo que fizeram ou continuam fazendo de melhor, surpreender a memória afetiva de muitos.

Rimbaud foi abandonado pelo pai quando tinha seis anos. McCartney perdeu a mãe aos 14. Aos 13 anos Arthur publicou seus primeiros versos e já era considerado um poeta. Aos 17 Paul já era um Beatle. Verlaine atirou duas vezes. Lennon foi assassinado. Fatos que margearam suas experiências externas, obras incríveis.

Vênus Anadiômene – Arthur Rimbaud

Como de um verde túmulo em latão o vulto
De uma mulher, cabelos brunos empastados,
De uma velha banheira emerge, lento e estulto,
Com deficits bastantes mal dissimulados;

Do colo graxo e gris saltam as omoplatas
Amplas, o dorso curto que entra e sai no ar;
Sob a pele a gordura cai em folhas chatas,
E o redondo dos rins como a querer voar...

O dorso é avermelhado e em tudo há um sabor
Estranhamente horrível; notam-se, a rigor,
Particularidades que demandam lupa...

Nos rins dois nomes só gravados: CLARA VÊNUS
- E todo o corpo move e estende a ampla garupa
Bela horrorosamente, uma úlcera no ânus.


Eleanor Rigby – Paul MacCartney

Eleanor Rigby
Apanha o arroz na igreja onde um casamento foi feito
Vive em um sonho
Espera na janela
Vestindo o rosto que ela guarda em um jarro perto da porta
Para quem é isso?

Todas as pessoas solitárias
De onde todas elas vem?
Todas as pessoas solitárias
De onde todas elas são?

Padre McKenzie
Escrevendo as palavras de um sermão que ninguém ouvirá
Ninguém chega perto
Olha para seu trabalho
Remendando sua meias à noite quando não há ninguém lá
O que ele protege?

Todas as pessoas solitárias
De onde todas elas vem?
Todas as pessoas solitárias
De onde todas elas são?

Não são apenas palavras. Dizem algo que por mais que eu reconheça não fazer parte de mim, está lá. Remoendo e cuspindo pequenas lágrimas invisíveis aos olhares, cortantes. Homens maiores que seus defeitos e menores que suas qualidades. A única diferença entre eles é o fim. Rimbaud desistiu da literatura e morreu ainda jovem, aos 37. McCartney, bem, let it be.

Existe uma estética homossexual?

José Castello
j.castello@uol.com.br
Escritor e jornalista

A comparação entre uma série de obras literárias, às quais se soma o inédito “O Pombo-Torcaz”, de André Gide, põe em dúvida o argumento

Assim como a homossexualidade não existe — o "homossexual" é só um personagem inventado pela psiquiatria do século 19 —, é no mínimo temerário falar de uma estética homossexual. Se existem apenas as relações homoeróticas, e não os personagens imaginários que o senso comum arrola no clichê do "terceiro sexo", preferir as relações com o mesmo sexo não define ninguém. Essa impossibilidade se reafirma na leitura de O Pombo-Torcaz, delicado conto que o francês André Gide escreveu no verão 1907 e que só reapareceu um século depois. No texto, publicado agora no Brasil, Gide conta a noite memorável que passou com um jovem chamado Ferdinand Pouzac, em Bagnols-de-Grenade, perto de Toulouse. O "pombo" do título é Ferdinand, apelidado assim por "arrulhar" quando fazia amor.

Com sua ética protestante e seus conflitos interiores, André Gide (1869-1951) se esforçou para produzir uma explicação "natural" para a homossexualidade, da qual nunca afastou seus ideais religiosos. Em um livro como Corydon (1924), ele apresenta a pederastia (no sentido grego, de amor entre um homem mais velho e um jovem) como um ramo da pedagogia e a homossexualidade como um fenômeno biológico. O esforço para tornar aceitável o amor homossexual levou-o a fundar uma ética naturalista e biológica, que percorre toda a sua escrita. Ética segundo a qual o amor (seja ele qual for) é, antes de tudo, uma manifestação da natureza. Ética que bane de cena o desejo e a subjetividade, e que está presente também no conto que agora se publica.

Menos dogmático que Gide, o furioso Oscar Wilde (1854-1900) lustrou sua vida sexual com o verniz do desafio, do vício e da decadência. Ao mostrar quão efêmera é a beleza, um relato como O Retrato de Dorian Gray reafirma um vínculo entre a homossexualidade e o "estilo" — seja ele nobre ou doentio. O amor homossexual não passaria, nesse caso, de uma afetação, como o esnobismo ou o pedantismo — que estão sempre presentes nos escritos do inglês. Em carta ao amigo Robert Ross, escrita dois anos antes de morrer, ele se arrepende dessa posição. Mas, em vez de avançar rumo à aceitação de si, recua. Escreve: "Eu teria alterado a minha vida se admitisse que o amor uranista era ignóbil". De fato, uma sombra negra percorre toda a obra de Wilde — sinal do vínculo entre a homossexualidade e o vício, que nunca conseguiu desfazer.

Efeitos e estéticas muito diferentes foram obtidos no século 20 pelos autores da literatura beat americana, sobretudo por William Burroughs (1914-1997), autor de Almoço Nu, livro inspirado na temporada de sexo livre que passou em Tânger, no Marrocos. Ao lado de poetas como Allen Ginsberg e Jack Kerouac, Burroughs trata a homossexualidade não como uma questão biológica, tampouco como uma afetação, mas sim como uma perigosa e excitante viagem interior. Politizada pela contracultura, essa viagem se tornou não só marginal, mas contestadora. Por isso, em suas mãos, a estética homossexual assume tons violentos, de grande força política, atitude que o leva para uma espécie de "pansexualismo".

Antes dele, um autor como Marcel Proust (1871-1922) via as práticas homossexuais como uma espécie de maldição. Algo que, de alguma forma, se ligava à asma que, desde cedo, o infernizou. Em uma reversão, Proust fez da homossexualidade uma versão mundana da elevação espiritual, que ele encenou com sua vida reclusa. Repetiu, de certa forma, a herança dos poetas franceses Arthur Rimbaud (1854-1891) e Paul Verlaine (1844-1896), para quem a paixão homossexual que os uniu (e os separou) foi, sempre, um trafegar à beira do abismo; posição que se reflete na poesia que escreveram.

UMA FORMA DE VIOLÊNCIA


No século 20, um autor como o brasileiro Lúcio Cardoso (1913-1968) tratou a homossexualidade como um doloroso atestado de incompreensão. "Médicos, professores do futuro; exponho-me nu aos vossos olhos de certeza", escreveu, sintetizando sua posição de rejeitado. Místico e autodestrutivo, Cardoso via a homossexualidade não como uma realidade biológica, tampouco como uma ética; nem como afetação, ou uma "viagem"; mas como uma forma de violência.

Visão que o aproxima de dois outros artistas do mesmo século, o escritor cubano Reinaldo Arenas (1943-1990) e o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975). Para Arenas, a homossexualidade — vivida sempre às escuras, nos parques, nas vielas — se torna uma bandeira política contra Fidel Castro. Nas mãos de Pasolini, ela se transforma em uma afirmação de desejos arcaicos (e "populares") e de uma verdade que nem sempre é saborosa. Ao morrer assassinado brutalmente em uma praia de Ostia, com o rosto desfigurado e a postura de um santo, Pasolini, de alguma forma, fechou uma estética de revolta e da luta, na qual o homossexual aparece como uma espécie de arauto do futuro.

Hoje, nas telenovelas, a estética homossexual se afasta também da doença (o que é positivo), mas se aproxima do modismo — o que, de fato, corresponde à forte expansão da indústria gay. As narrativas homossexuais ganham no vídeo, assim, um ar um tanto chique — como uma nova grife. Muitas estéticas são construídas em torno das relações homoeróticas; todas tentam enquadrar e disciplinar a esfera do desejo, que, em vez disso, é sempre singular e ingovernável.

Supor que o amor homossexual é sempre o mesmo é tão ingênuo quanto imaginar que as relações heterossexuais, só porque se repetem entre parceiros de sexos opostos, se equivalem. Todos sabemos que, sob a estética oficial do vestido de noiva, do casal perfeito e dos filhos saudáveis, esconde-se uma infinidade de variações do amor. E que é nessas particularidades, nesses desvios do singular, que as relações amorosas são sempre vividas.

Por isso — e o livro de Gide é só mais uma prova dessa impossibilidade — se torna cada vez mais difícil pensar em uma estética homossexual. Os amores, homossexuais ou heterossexuais, não comportam modelos. É na singularidade e na invenção, e não na repetição de fórmulas eróticas e estéticas, que eles revelam sua potência.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

René Clair mudo, mas nem tanto




João Batista de Brito
jbbb@openline.com.br
Crítico de cinema

Se o primeiro filme, Paris adormecida (Paris qui dort, 1923) é só um registro histórico, em compensação, o segundo, Entr’acte (1924) constitui um marco da arte revolucionária da época e é uma eterna referência na história das artes visuais do Século XX.

Parisiense de nascimento e intelectual refinado, Clair foi ligado às vanguardas artísticas dos anos vinte e sua obra, pelo menos a muda, reflete toda a irrequieta efervescência de então, da qual Entr’acte é uma espécie de emblema.

Tudo começou quando o artista performático Francis Picabia e o músico vanguardista Erik Satie resolveram montar um balé que tivesse um entremeio cinematográfico e convidaram Clair para participar do projeto. Ousado, mal comportado e esteticamente chocante, o balé “Relâche” possuía esse interlúdio em que era projetado o Entr’acte de Clair, cuja exibição era acompanhada, naturalmente, pela trilha já minimalista de Satie, composta exclusivamente para ele.

O resultado todo, digo, balé mais filme, era, segundo consta, algo meio indefinido e confuso, com cheiro misto de impressionismo, dadaísmo e surrealismo, e recebeu do público presente vaias e aplausos. Do balé só restaram fotos, mas o filme está aí, para ser visto e discutido como um precioso documento de uma fase artística em que o experimento era tudo.

O filme não tem uma estória, ou sequer uma lógica. Imagens surreais de coisas sem aparente relação semântica, sucedem-se durante algum tempo, até que um homem que atira num alvo estranho é atingido por um outro atirador: morre e, aparentemente, tem-se, a partir daí, o percurso do seu velório, ocasião em que o féretro, sozinho, desembesta pelas ruas da cidade, e deixa todo mundo para trás. Mais tarde, num local ermo, se encontrará o ataúde, do qual pula, saltitante, o cadáver redivivo e, com um gesto mágico, faz todos desaparecerem, inclusive ele mesmo. E o filme termina.

Como dito, para o público atual um filme desses parece só uma extravagância de artista desvairado, agora, de minha parte, fico pensando se para os espectadores da época, 1924, o filme não deve ter parecido um pouco menos absurdo.

É que, em que pese aos seus compromissos com o vanguardismo vigente, Entr’acte lembra muito o cinema primitivo do século XIX (sim, dezenove mesmo!) quando qualquer bailarina rodopiante, ou qualquer homem de cabeça de borracha inflável era o suficiente para divertir os freqüentadores das feiras livres, fascinados com a mobilidade da fotografia. Eram filmes curtos, sem estórias e sem lógicas, para os quais os pesquisadores de hoje cunhariam a denominação de “cinema de mostração”, em contraste com o cinema de narração posteriormente consagrado.

No que diz respeito à carreira cinematográfica de René Clair, o engraçado é que ele, apesar da importância de Entr’acte, não se consagraria, na história do cinema universal, como vanguardista, mas ao contrário, como acadêmico: com o passar dos fotogramas, seus filmes, sobretudo os falados, foram ficando cada vez mais convencionais, ao ponto de apagar – junto à opinião pública -- o seu passado experimental.

Tanto é assim que no final de sua carreira, anos cinqüenta e sessenta, Clair, já devidamente empossado na pomposa e solene Academia Francesa, seria dado pelos jovens cineastas que faziam a revolucionária Nouvelle Vague (Truffaut, Chabrol, Godard e outros articulistas da revista Cahiers du cinéma) como um burocrático realizador de “cinemão ultrapassado”.

Eu, que guardo uma cara lembrança do belo e comovente Por ternura também se mata (Porte de Lilas, 1957) não concordo com a avaliação, e acho que René Clair foi talentoso no experimento e na convenção, mas, essa é outra estória, para ser contada em outra ocasião.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Ali boma aye




Rodrigo C. Vargas

Ontem assisti o filme Quando Erámos Reis, que narra a história da luta entre os boxeadores Muhammad Ali e George Foreman, no Zaire, em 1974. O que mais me marcou não foi a batalha no ringue, mas fora. Ali era o tipo de atleta que não existe mais. Um líder político, um homem preocupado com o seu povo e a sua cutura. Lá pelas tantas ela falava sobre música e como a música negra americana não podia ser imitada por ninguém. "...nenhum de vocês perdeu a mulher e os filhos por que não tinha dinheiro, por que estava desempregado. Esse é o nosso lamento, a nossa cultura." Que frase fantástica! A mais pura demonstração de que a música também serve ao processo de divisão de classes.

O filósofo e sociólogo alemão Theodor Adorno expressa isso com ingenuidade em seu texto A digressão da audição quando classifica a música popular como música ligeira numa espécie de desclassificação de tudo aquilo que não fosse música clássica. A música portanto massifica um esteriótipo e nós não sabemos lidar com isso. A massificação da cultura se dá através de um artifício totalitário e é assim que forjamos o gosto. Quem gosta de Forró é A e quem gosta de Bossa Nova é B. Uma bobagem sem limite.

Aprendi com Ali a rever meu conceito sobre o gosto. Mesmo depois de ter lido tanto a respeito foi esse homem, com sua frase antecedendo uma luta de boxe, que me mostrou o caminho. Um direto no estômago. Se Chopin tivesse nascido na mangueira não seria ele um grande sambista? Se Wagner tivesse nascido no campo não seria ele um gênio sertenajo?

A medida que consumimos nossos instintos primitivos, dividimos o mundo. Até mesmo aquilo que nos acompanha desde o nosso surgimento como individuos sociais acaba servindo aos interesses razos da classificação grosseira. Pobres críticos...

domingo, 31 de outubro de 2010

Amanhã é outro dia

Rodrigo C. Vargas

Resolvi esperar a definição de quem seria o próximo presidente para poder lançar aquilo que imagino, será a manhã do dia primeiro de janeiro para o então ex-presidente Lula. Não que o resultado altere o meu olhar, mas dá um certo charme. Não há como questionar a sua força política e espiritual do ponto de vista Weberiano. Um líder carismático como não tivemos nas últimas décadas. Acredito que o "Lulinha paz e amor" nunca mais precisará de jingles ou marqueteiros. Sua imagem está definida e portanto não arriscará colocá-la no tabuleiro de insinuações (campo político brasileiro).

Luiz Inácio cabe onde o calo aperta, secretaria-geral da ONU. Essa frase pode soar estranho, mas é só analisar os fatos e então fará sentido. Ban Ki-Moon não conseguiu reformar a instituição e muito menos trouxe de volta a moral que gostaríamos que ela tivesse (se é que um dia teve). A ONU de hoje é apenas um menino de recado dos EUA, China, Russia, França e Inglaterra. O maior exemplo está no Conselho de Segurança que tem esses cinco países como membros permanentes e que o Brasil tanto busca sentar-se ao lado. Os cinco tem o chamado direito a veto em assuntos de interesse mundial ligados aos mais diferentes conflitos, e ao mesmo tempo são os maiores produtores e comerciantes de armas do mundo. Ou seja, a meta desse grupo não seria o de mediar a paz mas a guerra, fonte de lucro.

A idéia não é minha e já saiu até no jornal britânico The Times. Parece que o presidente da França, Nicolas Sarkozy, durante uma reunião da cúpula do G-20 foi o primeiro a levantar essa hipótese e logo ganhou adeptos.

Lula é o único hoje que pode mudar essa estrutura viciada que está posta e lutar pelo fim da miséria, por uma distribuição real de renda, pela descriminalização das minorias e pela aproximação de países pobres e ricos. Apesar dos deslizes cometidos em Cuba e no Haiti, como disse Chico Buarque hoje o Brasil não fala grosso com Bolívia nem fino com os EUA. Portanto acredito que ao acordar na primeira manhã de 2011, Lula vai virar para o lado, cutucar Dona Marisa e dizer: a arquibancada pode esperar!

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Milton Nascimento: “A música caminha comigo como a minha alma”

(Eliardo França)

Jorge Sanglard
jorgesanglard@yahoo.com.br
Jornalista, pesquisador e produtor cultural

No palco do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, o jovem cantor, violonista e compositor Milton Nascimento, poucos dias antes de completar 25 anos, nos dias 19 e 21 de outubro de 1967, há 42 anos, não poderia sonhar que, a partir de suas três músicas no II Festival Internacional da Canção – “Travessia”, “Morro Velho” e “Maria, Minha Fé” –, trilharia uma autêntica travessia rumo a uma das mais significativas trajetórias na Música Popular Brasileira da segunda metade do século XX e se projetaria como um dos maiores cantores de seu tempo.

Milton sempre entrou de coração em tudo, desde os tempos de contrabaixista nos bailes de Minas Gerais, passando pelos encontros musicais do Clube da Esquina, pela projeção a partir do segundo lugar no II FIC-1967, até consolidar uma trajetória vitoriosa na Música Popular Brasileira. O cantor e compositor nunca perguntou para onde ia esta estrada, se jogou por inteiro no caminho, seguindo “o brilho cego de paixão e fé, faca amolada”. O importante sempre foi “deixar a sua luz brilhar e ser muito tranquilo / deixar o seu amor crescer e ser muito tranquilo / brilhar, brilhar, acontecer, brilhar, faca amolada / irmão, irmã, irmã, irmão de fé, faca amolada”, como em “Nada será como antes”, parceria com Ronaldo Bastos.

Milton nasceu às seis horas da tarde, a “Hora do Angelus”, do dia 26 de outubro de 1942, filho de Maria do Carmo do Nascimento, cozinheira por profissão, que deixou Juiz de Fora, em Minas Gerais, para trabalhar no Rio de Janeiro. A “Hora do Angelus” relembra para os católicos o momento da anunciação, feita pelo anjo Gabriel a Maria, da concepção de Jesus Cristo, como livre do pecado original. O seu nome deriva da frase: “Angelus Domini nuntiavit Mariæ”. Em Juiz de Fora, na Câmara Municipal, Milton recebeu o título de Cidadão Honorário e a Medalha Nelson Silva, em 27 de novembro de 2009. A retribuição é por tudo que Bituca fez pela MPB e por suas raízes encravadas na cidade mineira. Desde a década de 1970, Milton coleciona amizades em Juiz de Fora. Quando o médico e músico Márcio Itaboray lançou o livro "Assuntos de Vento", em 2001, esses laços foram consolidados. Em maio de 2009, durante show no Theatro Central, Milton disse que Juiz de Fora é onde ele tem mais amigos. E no dia da entrega do Título de Cidadão Honorário, ele sintetizou: "Sou de Juiz de Fora desde que nasci".

Bituca – apelido dado pela mãe adotiva Lília Silva Campos –, como era conhecido na família e entre os amigos, depois do segundo lugar na classificação geral e da premiação como melhor intérprete do II FIC-1967, inscreveria o nome Milton Nascimento no primeiro time de compositores e cantores que renovariam a MPB. Os festivais injetavam sangue novo no universo cultural brasileiro e a música ainda era uma das poucas manifestações de expressão popular no Brasil dos primeiros anos da ditadura militar.

Em entrevista exclusiva, em outubro de 1987, marcando os 20 anos da premiação de “Travessia”, durante o lançamento do disco “Yauaretê”, Milton confessaria: “Desde criança, eu sabia que ia mexer com a música. Nunca me enganei, nem minha família, nem nada. Todo mundo já sabia que era música mesmo. Apesar de morar em Três Pontas, que naquela época era longe, a estrada era de terra, sabia que ia sair e ia procurar...Se ia vencer, só Deus sabia, mas eu ia tentar. Acontece que a música caminha comigo como a minha alma. Por isso e pelo fato de cada canção refletir um momento meu, chega nas pessoas com a mesma intensidade que estou querendo botar pra fora, e aí não tem barreira de língua, não tem barreira de chão, não tem nada, em qualquer parte”.

O sucesso de “Travessia”, parceria entre Milton Nascimento e Fernando Brant, no II FIC-1967, projetou Milton como um cometa. Mas a criatividade e a qualidade musical do novo talento transcenderam os limites da passagem de um cometa e o transformaram num feixe de luz permanente a apontar caminhos na Música Popular Brasileira. O próprio Milton já afirmou: “Isso está nas mãos do que se quiser chamar, pode ser Deus, pode ser destino, pode ser o que for”.

Amigo de sempre e parceiro, Márcio Borges, em depoimento exclusivo, descreve a emoção que tomou conta da apresentação de “Travessia”: “De tarde nós saímos do hotel, todos no mesmo ônibus, rumo ao Maracanãzinho. Eu ia sentado ao lado de Toninho Horta, com quem havia classificado a dolorosa canção ‘Correntes’. Mas no ônibus só se falava no Bituca, o cara que havia classificado três canções, uma delas considerada a favorita para ganhar o festival. Senti uma emoção muito grande quando o ônibus ultrapassou os portões que davam direto no fundo do enorme palco. Parecia dia de futebol. As filas já davam volta no estádio e ainda nem era de noite. O ensaio geral foi impressionante. Astros e estrelas da música nacional e internacional circulavam em áreas restritas – e eu lá! Quando caiu a noite, vi o estádio encher-se de gente. Vi as arquibancadas se colorirem de todas as cores e matizes, cabelos, cartazes e bandeiras. Vi chegar a hora de ‘Travessia’. A favorita de todos. Bituca colocou o Maracanãzinho de pé e foi classificado. ‘Correntes’ ficou de fora. Fomos torcer pelo Bituca e pelo Fernando, que surpreendentemente, e contra todas as emoções presentes, inclusive a do vencedor Guarabyra, conseguiram apenas um segundo lugar. Na reapresentação da música, vencedora moral e imortal, o apresentador Hilton Gomes chamou os nomes de Milton Nascimento e Fernando Brant e eles saíram de perto de nós para voltarem ao palco. Eu e Gonzaguinha corremos atrás deles e nos sentamos no limite extremo entre a coxia e o palco, bem aos pés dos nossos amigos. Sei que quando vimos e ouvimos o Maracanãzinho cantar com os dois e soltar a voz nas estradas, não conseguimos conter a emoção. Eu e Gonzaguinha nos abraçamos e deixamos nossas lágrimas correrem soltas, molhando os ombros um do outro. Quarenta anos se passaram desde aquela noite. Mas aquelas lágrimas serão para sempre”.

Trajetória de sucesso

A trajetória do cantor e compositor mineiro mais carioca que existe – Milton nasceu no Rio de Janeiro e foi criado em Três Pontas – é contada em detalhes na biografia “Travessia – A vida de Milton Nascimento” (Record), da jornalista mineira Maria Dolores, nascida em Belo Horizonte e criada também em Três Pontas. O livro, que está na segunda edição, é um mergulho na vida e na música de Milton e revela aqui e ali detalhes da consolidação do mestre do Clube da Esquina como um ícone da MPB.

Em depoimento exclusivo, Maria Dolores fala do livro, para dizer sobre Milton: “Essa biografia começou como projeto de conclusão do meu curso de Comunicação Social - Jornalismo, na Universidade Federal de Minas Gerais, em 2003. Eu queria fazer um livro reportagem de algo relacionado a Três Pontas, cidade onde cresci. Entre os temas mais interessantes – a cafeicultura, o Padre Victor (um padre negro milagreiro) e o Milton Nascimento – preferi fazer sobre o Milton. A idéia era contar a vida dele na cidade. Aproveitei um dia que ele estava em Três Pontas, criei coragem, e fui atrás dele. Disse que ia fazer o trabalho e pedi uma entrevista. Ele aceitou fazer. Uns quatro meses depois fui fazer a entrevista e aí eu já tinha realizado uma pesquisa sobre ele, e descoberto que não havia quase nenhum material biográfico do Milton, a não ser essas biografias resumidas de sites, revistas, etc.. O que tinha de mais completo era o livro do Márcio Borges, ‘Os sonhos não envelhecem – histórias do Clube da Esquina’, que é ótimo e tem o Milton como personagem principal, mas aborda só um período da vida dele, até bem extenso, e fala também dos outros personagens do Clube da Esquina. Resolvi então escrever uma biografia do Milton, a primeira, ainda mais ao descobrir o quanto a vida dele era incrível, como um romance”.

A autora confessa que conhecia o trabalho dele, mas não profundamente: “Até então nunca tinha sido uma pessoa que tem o costume de ouvir música, engraçado isso, né? Então, primeiro me apaixonei pela história, pelo personagem. Depois, pela obra, pelo artista, que, no final das contas, descobri não ter como separar um do outro. Pedi outras entrevistas e ele concordou. Deixou também que eu acompanhasse ensaios, shows, fosse na sua casa, pesquisasse seu material pessoal. Para a faculdade entreguei um trabalho resumido, só da vida dele em Três Pontas, e depois continuei”.

O livro abrange o período que vai de 1939, antes mesmo de Milton nascer, até 2005. Maria Dolores afirma que já conhecia o cantor, “claro, desde criança, mas não tinha uma relação próxima com o Milton” e fala da proximidade que a elaboração do livro possibilitou: “nesses quatro anos e meio de trabalho, que eu passei a conviver com o Milton, descobri a pessoa incrível que ele é, um ser humano especial, um artista especial, cheio de mistério ao seu redor, magia, alguém que tem uma generosidade imensa. Não tem como trabalhar com o Milton, com o Bituca, né, e não se tornar amigo dele, ainda mais ele, que tem tantos amigos. Hoje posso dizer que me tornei uma amiga dele e ele se tornou alguém especial pra mim, uma relação dessas que a gente sabe que dura. Eu não esperava que isso fosse acontecer, na verdade, nem pensava nisso, mas foi uma feliz surpresa descobrir essa amizade e a maior conquista com o livro”.

Desde a primeira parceria com Fernando Brant, “Travessia”, Milton abriu alas para uma geração de grandes músicos e compositores mineiros e nunca transigiu sua arte, nunca aceitou os apelos fáceis da massificação. Na entrevista citada, Milton declarou incisivo: “A massificação vai bitolando a cabeça das pessoas e bitola a música popular brasileira também”. Assim, o cantor e compositor sempre procurou a qualidade musical, sabedor de que escolhera um caminho mais difícil, porém, passadas quatro décadas de seu batismo de fogo com a interpretação de “Travessia”, fica a certeza de que a criatividade e a qualidade resistem a tudo.

Fernando Brant, em depoimento exclusivo, afirma que “a música de Milton Nascimento não se explica, ouve-se. Desde que o conheci, e à sua música, o Bituca é um repertório de surpresas interminável. Até hoje, quando ele me mostra algo que acabou de compor, sua genialidade não dá descanso. Ele me surpreende agora como me surpreendia 30 anos atrás. A melodia, o ritmo, a harmonia, ele sintetiza o mundo em suas músicas. Devo a ele não só o fato de encontrar uma profissão que me sustenta e dá prazer, como a oportunidade de colocar minhas palavras e minhas idéias em canções belas e diferentes. E, ainda por cima, ele as canta. Ele é fonte inesgotável da música popular brasileira, um gênio”.

O artista é o arauto da liberdade

Na referida entrevista exclusiva, Milton adverte que criaram um tipo de música, um tipo de som, que virou tudo a mesma coisa e, num mercado fechado, a renovação de artistas é mais difícil, porque as grandes gravadoras determinam a política para a área musical, só investindo naquilo que elas acreditam que dá retorno. E revela: “Eu apareci numa época em que todo mundo estava brotando, com mil experiências diferentes, não tinha um som pasteurizado. Nos últimos tempos é mais difícil a pessoa nova ser ouvida, mas não impossível”. Já em 1987, Milton advertia na mesma entrevista: “É terrível ver um país como esse, onde o músico se forma por esforço próprio, porque não tem escola, nem nada. O Brasil é um desamparo total, e com tantos músicos fantásticos tendo que tocar qualquer coisa, sem poder desenvolver seu próprio trabalho musical, é muito triste. E olhe que o país é rico, é tão grande, com tanta diversidade e o povo é muito musical. Mas prefiro não perder a esperança, porque o dia em que eu perder a esperança, paro de cantar, minha vida acaba”.

Para Milton, o Brasil é um país onde a mistura é tão forte que todas as influências que vierem nas coisas feitas honestamente virão para acrescentar, mas nunca para esmagar a cultura brasileira: “medo de influência esmagar eu não tenho nenhum não”. E arremata: “O lance da arte é a liberdade, o artista é o arauto da liberdade”.

Nélson Ângelo, parceiro dos primeiros tempos, em depoimento exclusivo comenta: “Meu primeiro contato com Milton Nascimento, meu amigo Bituca, deu-se no ano de 1964, em Belo Horizonte, logo após um show do grupo Opinião, realizado no Teatro Francisco Nunes. Desde então construímos uma sólida amizade que dura até hoje, pautada em muito respeito, atenção e paixão pela música. Sempre fomos parceiros em diferentes formas: como amigos, na vida, em trabalhos. Antes mesmo de ‘Travessia’, já curtíamos e nos admirávamos. Nesta época compus ‘Fim de caminho’, ‘Canto triste’ (anterior a do Edu e Vinícius; claro que mudei o título da minha!) e o Bituca tocava pra mim ‘Crença’ e ‘Terra’, parcerias dele com o Márcio Borges. No mesmo período, compus com o Valdimir Diniz a música ‘Ciclo do Ouro’, que foi muito elogiada pelo Milton. Ele foi um grande incentivador do meu trabalho. Mais tarde um pouco, ele e o Márcio fizeram uma que foi dedicada a mim (pelo menos foi o que me contaram), chamada ‘Irmão de fé’”.

Ainda segundo, Nélson Ângelo, “quando o Bituca conheceu o Fernando Brant, foram logo estreando com ‘Travessia’, e muitas outras que surgiram e marcaram seu lugar na história. Mais tarde, eu e ele fizemos ‘Sacramento’ e ‘Testamento’, ambas músicas minhas e letras do Milton. Mais tarde ainda, o samba enredo ‘Reis e Rainhas do Maracatu’, com mais dois parceiros: o Novelli e o Fran”.

Portanto, assegura Nélson Ângelo, “minha opinião sobre o Milton e parcerias é abrangente da mesma forma como foi consolidada nossa amizade. Sou suspeito sobre todas as instâncias e circunstâncias. Ainda bem que a admiração e a boa impressão são compartilhadas com tantas pessoas mundo afora que conhecem o assunto”.

O livro de Maria Dolores aponta “Travessia” como a primeira letra da vida de Fernando Brant, escrita sob pressão, jogada, num papel dobrado, na mesa da padaria São José, em Belo Horizonte. O nome da música foi inspirado no livro “Grande Sertão: Veredas”, do escritor mineiro Guimarães Rosa, que tinha como última palavra da obra o termo “Travessia”. O próprio Milton explicaria a escolha: “O importante não é a saída, nem a chegada, mas a travessia”.

A segunda letra de Brant foi “Outubro”, e o parceiro teria dito anteriormente a Milton: “Agora que você me pôs nessa, trata de compor outra música para eu colocar uma letra logo, senão estou perdido!”. O assédio da imprensa, logo após as apresentações no II FIC-1967, mexia com os dois tímidos compositores mineiros.

Segundo Maria Dolores, o cantor, compositor e violonista Gilberto Gil, ex-ministro da Cultura no Brasil, disse certa vez que a timidez de Milton não é uma timidez pura, mas um ato de observação: “Ele é como essas pedras enormes da Gávea, quietas, silenciosas...observa tudo ao seu redor, fala com o olhar e, quando usa palavras, diz a coisa certa no momento certo”.

Caetano Veloso também fez revelações, no livro, sobre Milton: “Ele é uma força profunda da expressão cultural brasileira, com raízes muito fortes na nossa história e com um talento na área da genialidade, uma coisa meio espiritual, e se há algo que a gente possa chamar de espiritual é exatamente isso, é quando alguém está ligado a tantas coisas tão importantes por fatores casuais, tantas vezes. Isso para mim é o caso de Milton, é o caso mais radical desse acontecimento no Brasil”.

Só mesmo Milton Nascimento para tornar permanente toda a emoção de coisas tão simples e fundamentais como as brincadeiras de crianças, a cumplicidade entre amigos de verdade, a pulsação de um povo na luta pela liberdade, a dor do amor e do desamor, tudo isso com “o coração aberto em vento, por toda eternidade, com o coração doendo de tanta felicidade”.

No livro, “Os sonhos não envelhecem – histórias do Clube da Esquina” (Geração Editorial), escrito por Márcio Borges, o parceiro e amigo mergulha na essência das vivências desde os tempos em que se conheceram no Edifício Levy, em Belo Horizonte, até a gravação do disco “Angelus”, em 1993. Este disco foi concebido por Milton para simbolizar sua trajetória de vida e seu compromisso com a música.

A partir dos anos 1960 e até esta primeira década do século XXI, Milton e seus parceiros, como Ronaldo Bastos, deixaram pistas sobre suas intenções: “Plantar o trigo e refazer o pão de cada dia / beber o vinho e renascer na luz de todo dia / a fé, a fé, paixão e fé, a fé, faca amolada / o chão, o chão, o sal da terra, o chão, faca amolada / deixar a sua luz brilhar no pão de todo dia”. Não é à toa que, em outra parceria com Ronaldo Bastos, Milton cantou: “Eu já estou com o pé na estrada / qualquer dia a gente se vê / sei que nada será como antes, amanhã”. Com seu alegre e contundente canto de fé, de esperança e de sonho, Milton Nascimento se tornou um autêntico arauto da liberdade e, junto com outros companheiros de eterna travessia, teceu e entreteceu uma ponte para atravessar este verdadeiro oceano que é o Brasil.

Ao mesmo tempo, Milton – como Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso – é o oceano atravessado e o barco que atravessa, e vai solidificando uma ponte sobre este mar. Essa feliz definição de Gilberto Gil sobre expoentes de sua geração sintetiza a essência musical de compositores que renovaram o panorama da MPB e permanecem atentos, como faróis. Afinal, Milton fez de seu canto um canal direto até onde o povo está, muitas vezes “com sabor de vidro e corte”, mas sempre semeando o sonho e a esperança de ter fé na vida.

A comunhão da criação

Um dos momentos mágicos vivenciados por Milton Nascimento, simbolicamente num dia dedicado à consciência negra, em 20 de novembro de 1999, foi quando o pintor mineiro Carlos Bracher, mergulhado nas cores e ao som das canções do Clube da Esquina e da Nona Sinfonia de Beethoven (1770 – 1827), pintou em óleo sobre tela, durante cerca de 1h30, o retrato do cantor e compositor, antecedendo uma apresentação no baile-show intitulado “Crooner”, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Pela primeira vez, Bracher – um dos grandes pintores brasileiros – retratava um artista negro e foi buscar inspiração no erê que dá vivacidade a Milton Nascimento.

Ao expressar o menino que impregna a alma de Milton de alegria e de generosidade, o pintor mineiro celebrava a eterna juventude do autor de “Travessia” (em parceria com Fernando Brant). E Milton estabeleceu com Bracher uma relação de intensidade imensurável. Simplicidade e criatividade de mãos dadas e corações abertos, estabelecendo um elo de cumplicidade e possibilitando um encontro de almas capazes de irradiar harmonia, onde cada um a seu modo criou as condições para estabelecer a alquimia das cores e dos sons. O artista da voz e o artista das cores unidos na comunhão da criação.

Ao reconhecer-se como um erê (como os meninos da capa do antológico disco “Clube da Esquina”, de 1972), Milton posou para o retrato de Bracher deixando fluir todo o sentimento de eternidade que sua música passa e que sua travessia revela, trilhando o caminho da criatividade e do compromisso com a cidadania cultural e com a vida. Como o romancista Guimarães Rosa e o poeta Carlos Drummond de Andrade, Milton Nascimento encarna em sua obra musical a essência de Minas Gerais, a alma brasileira e a universalidade artística dos grandes criadores. Como um mago das cores, Bracher tão- somente revelou essa magia num retrato com a força da emoção de Milton.

No verso do óleo sobre tela, o pintor escreveu: “Meu caro Milton, que assim seja, que este Deus da vida e da arte nos possa abençoar. Obrigado Milton, por essa força contida na sua vasta voz”. Entre a timidez e a felicidade estampada, o cantor, depois de trocar um forte abraço com o pintor, confidenciou ao jornalista, que acompanhou tudo, a satisfação de ter vivenciado aquele momento de intensa troca de energia e de revelação de sua alma de eterno menino nas cores densas e inspiradas de Bracher. O retrato está na sala da casa de Milton no Rio de Janeiro.

(Carlos Bracher)