quarta-feira, 11 de novembro de 2009

René Clair mudo, mas nem tanto

João Batista de Brito
jbbb@openline.com.br
Crítico de cinema

Se o primeiro filme, Paris adormecida (Paris qui dort, 1923) é só um registro histórico, em compensação, o segundo, Entr’acte (1924) constitui um marco da arte revolucionária da época e é uma eterna referência na história das artes visuais do Século XX. Parisiense de nascimento e intelectual refinado, Clair foi ligado às vanguardas artísticas dos anos vinte e sua obra, pelo menos a muda, reflete toda a irrequieta efervescência de então, da qual Entr’acte é uma espécie de emblema.

Tudo começou quando o artista performático Francis Picabia e o músico vanguardista Erik Satie resolveram montar um balé que tivesse um entremeio cinematográfico e convidaram Clair para participar do projeto. Ousado, mal comportado e esteticamente chocante, o balé “Relâche” possuía esse interlúdio em que era projetado o Entr’acte de Clair, cuja exibição era acompanhada, naturalmente, pela trilha já minimalista de Satie, composta exclusivamente para ele. O resultado todo, digo, balé mais filme, era, segundo consta, algo meio indefinido e confuso, com cheiro misto de impressionismo, dadaísmo e surrealismo, e recebeu do público presente vaias e aplausos. Do balé só restaram fotos, mas o filme está aí, para ser visto e discutido como um precioso documento de uma fase artística em que o experimento era tudo. O filme não tem uma estória, ou sequer uma lógica. Imagens surreais de coisas sem aparente relação semântica, sucedem-se durante algum tempo, até que um homem que atira num alvo estranho é atingido por um outro atirador: morre e, aparentemente, tem-se, a partir daí, o percurso do seu velório, ocasião em que o féretro, sozinho, desembesta pelas ruas da cidade, e deixa todo mundo para trás. Mais tarde, num local ermo, se encontrará o ataúde, do qual pula, saltitante, o cadáver redivivo e, com um gesto mágico, faz todos desaparecerem, inclusive ele mesmo. E o filme termina.

Como dito, para o público atual um filme desses parece só uma extravagância de artista desvairado, agora, de minha parte, fico pensando se para os espectadores da época, 1924, o filme não deve ter parecido um pouco menos absurdo. É que, em que pese aos seus compromissos com o vanguardismo vigente, Entr’acte lembra muito o cinema primitivo do século XIX (sim, dezenove mesmo!) quando qualquer bailarina rodopiante, ou qualquer homem de cabeça de borracha inflável era o suficiente para divertir os freqüentadores das feiras livres, fascinados com a mobilidade da fotografia. Eram filmes curtos, sem estórias e sem lógicas, para os quais os pesquisadores de hoje cunhariam a denominação de “cinema de mostração”, em contraste com o cinema de narração posteriormente consagrado.

No que diz respeito à carreira cinematográfica de René Clair, o engraçado é que ele, apesar da importância de Entr’acte, não se consagraria, na história do cinema universal, como vanguardista, mas ao contrário, como acadêmico: com o passar dos fotogramas, seus filmes, sobretudo os falados, foram ficando cada vez mais convencionais, ao ponto de apagar – junto à opinião pública -- o seu passado experimental.

Tanto é assim que no final de sua carreira, anos cinqüenta e sessenta, Clair, já devidamente empossado na pomposa e solene Academia Francesa, seria dado pelos jovens cineastas que faziam a revolucionária Nouvelle Vague (Truffaut, Chabrol, Godard e outros articulistas da revista Cahiers du cinéma) como um burocrático realizador de “cinemão ultrapassado”.

Eu, que guardo uma cara lembrança do belo e comovente Por ternura também se mata (Porte de Lilas, 1957) não concordo com a avaliação, e acho que René Clair foi talentoso no experimento e na convenção, mas, essa é outra estória, para ser contada em outra ocasião.

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