segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Erich Auerbach e a crítica literária em Mímesis




Gilberto de Sousa Lucena
drgilbertoslucena@hotmail.com
Escritor, mestre em letras

Como contemporâneo de uma geração que revelou grandes estudiosos alemães-judeus de literaturas, línguas e culturas, o filólogo Erich Auerbach (1892-1957) tornou-se uma das mais significativas referências nos estudos de cunho hermenêutico e de exegese literária do Ocidente. Isso devido, principalmente, após o fato de ter publicado em 1946 sua obra monumental intitulada Mímesis. Os que fazem parte dessa vetusta tradição intelectual podem, pela importância e qualidade dos seus trabalhos, ser aqui elencados de modo irrefutável: a começar pelo sábio prussiano Karl Lachmann (1793-1851) – fundador da nova crítica textual –; os filólogos Friedrich Christian Diez (1794-1876), Ernst Robert Curtius (1820-1885), Karl Vossler (1872-1949) e Leo Spitzer (1887-1960); o glotólogo e romanista Hugo Schuchardt (1842-1927); a exegeta berlinense Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925) e o lingüista neogramático Wilhelm Meyer-Lübke (1861-1936), só para destacarmos os mais expressivos eruditos que marcaram um grande momento do estudo das chamadas Humanidades.

Há muito tempo considerado um livro clássico entre os estudiosos das letras, trata-se da obra-prima do sábio berlinense. Mímesis compreende, entre outros e relevantes aspectos, uma abordagem original da questão da representação da realidade e do foco narrativo em obras emblemáticas da literatura ocidental, partindo de textos antigos da cultura greco-latina até contemplar autores da modernidade como os irmãos Jules e Edmond de Goncourt e a novelista e ensaísta britânica Virginia Woolf.

De forma excepcional, com Erich Auerbach e seu famoso compêndio, a crítica literária no século XX experimentou enorme avanço quanto à metodologia de análise textual. Isso porque o exegeta germânico soube, como poucos estudiosos da matéria, estabelecer uma fecunda confluência da pesquisa histórica e filológica com a estilística para o esclarecimento da obra literária. Com sua erudição, pôde também desenvolver a necessária e pertinente conexão entre filologia e literatura, o que permitiu enorme avanço qualitativo em suas análises, adotando um método caracterizado pela possibilidade de junção do diacronismo com o sincronismo que, no seu caso, e de forma original – voltamos a destacar – só contribuiu para uma leitura atual e esclarecedora dos grandes textos e excertos da literatura do Ocidente.

Em seu papel de crítico, o mestre de Berlim conseguiu levar a efeito os “modos de efetuação” do que chamou de “realidade” em suas análises e que, segundo João Adolfo Hansen em ensaio brilhante, representam “categorias de pensamento e esquemas de formar várias teorias da percepção e formações históricas”. Embora admitindo que em Auerbach “o conceito de mímesis é operado sem muita teorização”, defende ser – por isso mesmo “mais oportuno discutir alguns de seus procedimentos” (HANSEN, 1994, p.45). Segundo o especialista da Universidade de São Paulo seu método de análise, ao escrever

[...] capítulos em que se comparam discursos constituídos como pertencentes a uma mesma tradição ou a tradições diversas [...] implica os critérios comparativos do ‘mais’ e do ‘menos’ estilísticos da participação dos discursos no Gênero, pressupondo-se o meio-termo de proporção de sensível-inteligível como a qualidade estética por excelência. (HANSEN, idem, pp.46-47).

Tal preocupação se reflete no reconhecimento da importância da edição crítica, numa consistente historiografia da literatura através da adoção de um estilo que aprofunda aspectos filológicos pertinentes ao trabalho de análise de questões de poética e de retórica, indispensáveis para uma maior compreensão dos autores estudados em sua dimensão cultural. Neste tocante, são palavras do próprio sábio berlinense:

A necessidade de construir textos autênticos se faz sentir quando um povo de alta civilização toma consciência dessa civilização e deseja preservar dos estragos do tempo as obras que lhe constituem o patrimônio espiritual. (AUERBACH, 1976, p.12).

Eis, de modo cristalino, sua consciência da urgência e importância do método filológico no esclarecimento do texto e da tradição que o envolve. Ao resumir, de modo genérico, a importância da obra do nosso filólogo, o professor Leopoldo Waizbort afirmou:

Desde cedo as pesquisas de Erich Auerbach foram tomadas, por seus contemporâneos, como contribuições à sociologia da literatura. Contudo, esse aspecto sempre foi considerado secundário, ofuscado pela empreitada gigantesca da sua escrita da história e por seus estudos filológicos. (WAIZBORT, 2004, p.62).

Nem por isso o estudioso acima citado deixou de destacar a dimensão de Auerbach como sociólogo da literatura, cuja obra permaneceu dando ensejo a uma sociologia literária ainda que ironicamente desafiadora dos sociólogos. É bem possível que devamos compreender, mediante tal questionamento, a razão pela qual o autor de Mímesis permaneça gerando profícuos debates entre os que, pertencendo a campos diversificados do conhecimento humanístico, nunca deixaram de se interessar pela sua obra monumental.

Malgrado a importância dos trabalhos de Erich Auerbach para o estudo da literatura do Ocidente seja inconteste, no Brasil – em termos gerais – é possível verificar um interesse ainda incipiente pelo conhecimento mais abrangente de sua obra e, de modo especial, por Mímesis. Talvez devido a certas dificuldades técnicas na compreensão dos seus ensaios – (e aqui não podemos desconsiderar dificuldades de tradução, sua enorme erudição e a diversidade de questões envolvidas em seu método de abordagem textual) – não se tenha ainda atingido um grau satisfatório de abordagens que contemplem, de forma regular e freqüente, seu legado intelectual. Principalmente entre as novas gerações acadêmicas.

Dada a amplitude da produção de estudos universitários na área de Humanidades em nosso país, não são muitos – nos dias de hoje – os que se interessam por sua obra nas universidades brasileiras. As causas dessa relativa indiferença talvez possam ser explicadas pela ausência de uma tradição, no âmbito de nossas academias, que se volte de modo mais enfático para os estudos no campo da Filologia Românica, com seus métodos de crítica textual em sua feição clássica.

A quantidade de estudos a respeito do legado intelectual do sábio berlinense ainda não representa contingente de vulto, necessário a um debate mais consistente e aprofundado sobre sua contribuição à historiografia e sociologia literárias, das relações entre a filologia e a análise do discurso, de aspectos que envolvam línguas e culturas, além da necessidade e urgência de abordagens textuais cujos parâmetros se pautem em edições críticas criteriosas que levem em conta as complexas relações entre língua e representação literária.

Reforçando tal argumento, é necessário darmos atenção ao fato de que, na bibliografia teórico-crítica brasileira sobre Erich Auerbach, aparecem poucas referências de estudiosos que se voltam para sua obra. São destaques em nosso meio apenas autores como Luiz Costa Lima, Guillermo Giucci, Ana Beatriz Cepelovics Lessa, Edward W. Said, João Adolfo Hansen e, por fim, Leopoldo Garcia Pinto Waizbort. Convém ressaltar que, este último, recentemente coordenou um projeto de pesquisa (desenvolvido no período 2005/2006), no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, intitulado “Erich Auerbach: Filologia e Sociologia”, que compreendeu “uma investigação ampla acerca da obra e pensamento do filólogo judeu alemão, centrada nos diversos debates intelectuais e contatos interdisciplinares na Alemanha do entre-guerras”. Para confirmar a existência deste trabalho, pode-se contactar o seguinte endereço eletrônico: waizbort@usp.br. Ainda no Brasil, como relevante contribuição aos estudos sobre nosso filólogo, merecem destaque a jornada de debates que resultou na publicação do livro intitulado V Colóquio UERJ – Erich Auerbach, pela Editora Imago, do Rio de Janeiro, em 1994 (conferir referências bibliográficas); além da seguinte opinião de Edward W. Said – publicada em solo nacional – sobre a importância hermenêutica de Mímesis:

[...] compreende-se que esse grande livro de Auerbach era um hino a uma época em que se analisavam os textos em termos filológicos, de maneira concreta, sensível, intuitiva; uma época em que a erudição e o domínio absoluto de vários idiomas contribuíam para um tipo de compreensão da qual Goethe era o paladino, com sua própria compreensão da literatura islâmica. O conhecimento de línguas e de história era indispensável, mas nunca suficiente, assim como, por exemplo, o mero acúmulo de fatos não constitui um método adequado para a percepção do que representa um escritor como Dante. A principal exigência da abordagem filológica – da qual Auerbach, assim como seus antecessores falavam e tentavam colocar em prática – consistia em penetrar, de maneira subjetiva e enfática, na matéria viva do texto a partir da perspectiva de seu tempo e de seu autor. (SAID, 2003, p.32).

Considerando o raio de abrangência da disciplina filológica, para a leitura aprofundada de Mímesis torna-se fundamental, pelo menos num primeiro momento, o conhecimento de línguas, estilística, historiografia literária, sociologia da literatura, análise do discurso e de teorias do foco narrativo. Na tentativa de compreensão do moderno método hermenêutico de Erich Auerbach é imprescindível o domínio interdisciplinar do leitor que, ao analisar sua obra modelar, terá que empreender descomunal labor de estudo nas áreas do saber referidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUERBACH, Erich. Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Tradução de George Bernard Sperber. 2ª Edição revisada. São Paulo: Perspectiva, 1976 (Coleção Estudos – Crítica, 2).

HANSEN, João Adolfo. “Mímesis: Figura, Retórica e Imagem”. In: V Colóquio UERJ – Erich Auerbach. Rio de Janeiro: Imago, 1994, pp.45-69 (Série Diversos).

SAID, Edward W. “O Humanismo ou a Barbárie”. In: Cadernos do Le Monde Diplomatique. São Paulo, Setembro de 2003.

WAIZBORT, Leopoldo Garcia Pinto. “Erich Auerbach Sociólogo”. In: Tempo Social. São Paulo: EDUSP, Número 16, Junho de 2004.

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