sábado, 7 de novembro de 2009

Camus cai, e nós aprendemos




Chico Lopes
franz53@pocos-net.com.br
Escritor e tradutor

Caminho sozinho noites inteiras e sonho, ou falo sozinho interminavelmente”, diz um certo Jean-Baptiste Clamance, advogado decaído, bebum de um boteco desclassificado de Amsterdam chamado México-City, a um interlocutor que o leitor nunca saberá quem é.

Primeiro grande achado de um romance curto, melhor dizendo, uma novela, que é, na verdade, a meu ver, o melhor de todos os (poucos) livros que Albert Camus escreveu. Estamos diante de um daqueles tipos da noite, dos bares que tardam em fechar e acolhem insones e estropiados, no anonimato de cidades para as quais calor humano é luxo ou frescura.

São tipos que o leitor deve conhecer – sujeitos que falam demais, que querem ser ouvidos, que se agarram ao colarinho do primeiro ouvinte em potencial que lhes apareça e não desgrudam mais, porque o desespero (que lhes aumenta a profundidade e a chatice) é completo, e nem importa que sua vítima (ou ouvinte) concorde, discorde, ouça. A técnica utilizada por Camus é esse diálogo com um desconhecido que torna o livro um longo monólogo, um fluxo ininterrupto de confissões tão viscerais quanto cínicas, colocando o leitor no epicentro do interesse: ao abrir o livro, sem divisões de capítulos por números ou títulos, os intervalos dados por espaços em branco, o leitor já entrou no universo de Clamance, que se intitula “juiz-penitente”, já foi agarrado no colarinho por ele, e será obrigado a ouvir, ou melhor, a ler.

A solidariedade impossível

É o livro mais enigmático de Camus, na verdade. Faz tempo que ele saiu da moda, embora relembrado aqui e ali por algum admirador. Os que irão conhecê-lo agora, certamente serão levados aos inevitáveis “O estrangeiro” e “A peste” ou aos volumes filosóficos de “O mito de Sísifo” e “O homem revoltado”.

Tudo bem, Camus estará lá. São bons livros, embora alguns tenham envelhecido bastante, por seus temas tópicos, e haja um certo tom presunçoso e retórico no argelino, o que torna seus personagens pouco críveis.

Camus tinha, sem dúvida, essa auto-consciência do escritor que não desgruda de seu mito, que deve muito à sua persona. Susan Sontag dizia que ele carregava consigo um “pedestal portátil”. O que quer ele fizesse, parecia merecer registro, teria que ter algo de solene, pomposo e filosoficamente relevante, como se ele não fosse caso comum, nunca. Sempre a consciência elevada, nunca a sordidez, a pequenez sem desculpa e sem remédio, esta de que somos realmente feitos.

“A queda”, pelo cinismo, pela radicalidade, porque não se esforça por agradar, é muito superior aos outros livros.

E não é um livro agradável. Cai-se nele como num mundo que já está cristalizado, do qual participamos como “voyeurs” impotentes, fascinados, indignados, querendo não aceitar o que Clamance diz.

O “juiz-penitente” pode ser definido como um guru às avessas: chama a nossa atenção para o irremediável, diverte-se lugubremente com a sua decadência e lança, com prazer sádico e “penitente”, suspeitas as mais odientas sobre a condição humana – com as quais, repugnados, acabamos concordando. Ele é um pouco como “o homem do subterrâneo” de Dostoievski, mas agravado por um século que viu o humanismo desaparecer sob o brado heideggeriano de “o Pior já aconteceu”.

Clamance é simplesmente o hedonista comum, o egoísta, o prepotente, o corrupto e cínico que há em todos nós (ou não haveria tanta corrupção e cinismo no mundo). Todos nós com facilidade nos erguemos em juízes da moral, somos peritos em detectar a podridão do mundo, fácil de ver porque é afinal tão exterior; todos nós nos sentimos sublimes, vivemos e morremos como cúmplices, mas nos queremos omissos, nos desculpamos com facilidade, não tínhamos nada com isso, as intenções eram as melhores etc. Em suma, jamais compreendemos o quanto colaboramos para que o mundo seja sórdido.

Prestar atenção a esse partido tão querido por nós, de esquerda, que desabou há um bom tempo e em geral nunca quis admitir e seguirá não admitindo sua corrupção. Uma corrupção especial, daquelas de pessoas que se acham automaticamente santificadas por estarem ao lado dos oprimidos, das boas causas, da superioridade moral, e exatamente por essa auto-complacência condescendem com o mal, achando que, ao praticá-lo, um santo está desculpado a priori; são sempre os mesmos santos automáticos que acham que purificam, com sua presença, o ar e a índole de um bordel. Nunca agem errado e se espantam quando alguém lhes diz que estão cercados da pior incredulidade, por tudo que fazem. Há uma candura fantástica na sua inconseqüência, na sua cegueira. A crença de sua superioridade moral os tornou esses monstrengos acomodados numa providencial ignorância de tudo que se autorizam a fazer.

Clamance é um hipócrita. Até uma certa altura, ele estava convencido de agir humanitariamente, de ser um sujeito até exemplar, bem-sucedido com as mulheres, com veia filantrópica, intelectualmente brilhante, profissionalmente admirado, fisicamente bem-dotado etc. – em suma, um homem de sucesso. Ele se vangloria desse humanitarismo, inclusive, de ajudar viúvas, de amparar cegos para atravessar a rua.

Um dia, um incidente curioso lhe deu a consciência exata de sua pequenez e do mal-estar desse mundo em que se sente à vontade: passando por uma ponte, viu uma mulher, cuja intenção era óbvia, mas ele a ignorou, até ouvir um grito – um pedido de socorro? – quando já ia bem longe. Não se voltou para salvá-la: a noite estava fria e ele não queria se molhar.

A partir daí, cai. Sua queda é a queda de uma consciência falsa numa contingência verdadeira: o absurdo, o horror do mundo, com os quais estamos muito mais mancomunados do que pensamos. O livro todo é compreensível como o longo desabafo de um omisso que de modo algum consegue escapar à consciência de sua culpa e da culpa do mundo todo, afundando-se numa auto-degradação lúcida, que só faz corroborar tudo que de horrível pensa de si mesmo e dos homens.

Mesmo os melhores homens que conhecemos podem, por insídias do narcisismo – que é nosso verdadeiro pecado mortal – não serem mais que pilares da opressão, da indiferença e da crueldade que nos cercam. “A queda” põe dedo em brasa na ferida que os ilustres, os admirados, os muito louvados – mesmo aqueles que parecem mais humildes e despojados – detestam admitir em si mesmos.

Revela em Camus uma coragem incomum. Num personagem como Rieux, o médico de “A peste”, cheio de ótimas intenções, de auto-complacências e atenuantes, apaixonado por seu papel de consciência única de uma comunidade afetada pela epidemia, enxerga-se essa vaidade e o pendor pela retórica, pelas grandes frases, e tínhamos ali um óbvio alter-ego do escritor argelino.

Digamos que “A queda” é superior porque nele Camus obriga Rieux a passar por essa ponte onde a mulher grita e não é ouvida. Pode ser triste, mas é muito mais verossímil. Há pouco heroísmo em nosso mundo, e santos, nenhum. O gesto que Clamance não fez é o gesto que nunca fazemos por ninguém. E não há desculpa para o que nunca fizemos. A única lucidez consiste em lamentar, em não mentir para nós mesmos – e para o mundo – que somos determinada efígie muito querida. Essa efígie pode se erguer muito alto, mas está impregnada de terra e excremento. É só não se iludir mais. E produzir livros à altura dessa desilusão, a única que pode atestar um resto de dignidade no homem do nosso tempo.

Livro obrigatório. Continuará interessando quando os outros Camus nem mais forem lembrados.

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