quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O silêncio, em Nelson Pereira dos Santos

Dinara G. Machado Guimarães
dinaraguimaraes@ig.com.br
Psicanalista, doutora em comunicação e cultura pela UFRJ

O neo-realismo italiano, que foi adotado por cineastas brasileiros, corresponde à resolução de filmar fora dos estúdios, dando ênfase ao realismo, com precisa observação de uma paisagem e o tratamento adequado das personagens, em uma boa integração entre o que se mostra e o que se diz. Nelson Pereira dos Santos, ao mesmo tempo, sustenta-se do movimento do neo-realismo italiano e consegue acrescentar-lhe elementos, indo ao sertão buscar as Vidas secas, obra-prima de Graciliano Ramos, e tema do seu filme homônimo, Brasil, 1963, uma obra referencial do movimento do Cinema Novo no Brasil. Nesta antropofagia, a obra de Santos, já histórica, levou ao espectador uma viagem pela zona agreste do Nordeste brasileiro, com paragens impressionantes.

O filme é um marco feliz da apropriação da literatura pelo cinema. Primeiro, o cineasta usa a palavra rarefeita do romance, introduzida no filme como uma pontuação dos poucos diálogos episódicos, esporádicos. Segundo, aproveita o gemido do carro de boi. A terceira razão é a histórica seca, com os problemas no domínio da falta de direitos privados e de responsabilidades públicas, no filme chamado social, cujo engajamento ideológico é evidente.

O modo de filmar de Santos, naquele momento das vidas secas, fica por conta da forma sucinta de narrar e da exploração do silêncio no simbólico – a grande contribuição de Ramos à narrativa literária que, pelo silêncio, age. É desta tendência que vem parte dos méritos do filme, ao mostrar o que se passa durante o período da seca, tendo como centro Fabiano (Átila Iório); a mulher, sinhá Vitória (Maria Ribeiro); os dois filhos; a cachorra de nome Baleia; e o papagaio.

O retirante, renegado, “anda no mato, furando as caatingas”, escreve José Lins do Rêgo. Desamparado, exposto diretamente ao sol ardente, o branco, o sol do filme, concede-lhe o calor sem sombra, prefigura o êxodo de terra em terra à busca de trabalho e abrigo da seca. Tudo nele é o silêncio de pouca fala, porém, muito desejo de ir longe. Algumas vezes, em meio ao silêncio intermitente, pelo diálogo entre o casal, que raramente troca palavras, ouve-se a fala da companheira, a sinhá Vitória: “Se ficasse calada seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo – pouca, mas além”. Ao término do filme, o casal sai, retirando-se em fuga da seca, mais uma vez, caminhando como se não soubesse para onde, outra vez... É a mesma questão do sonho do filho no velório do pai morto: “Pai, não vê que estou queimando?”; na Interpretação do sonho, de Sigmund Freud.

Constantemente, o artista, querendo dizer um Real, ou dizer o “impossível” de ser dito, acaba, paradoxalmente, por destacar este impossível, ou o Real, a partir do Simbólico, já que, segundo Jacques Lacan evidenciou, o Real está em continuidade e descontinuidade com a ordem da palavra, o Simbólico; ele ex-siste ao Simbólico.

Ao longo das vidas secas, perfaz-se o silêncio. Pode-se ouvir-lhe o gemido do carro de boi. Ele vem de longe. Parece chamar os retirantes até a terra longínqua perdida na linha do horizonte; de perto, delimita a terra que não lhes pertence, nem a quem chega, e os afugenta. Com isto, evoca o direito de propriedade que ancora o sistema organizado na indústria da seca, ampliando as contradições que revelam por meio das tensões entre a propriedade privada e a produção, a apropriação e a desapropriação, a riqueza e a pobreza, a polícia e a justiça, a verdade e a morte da palavra.

O público que segue o desenrolar da história da miséria na seca, longe, pode indagar sobre o sentido de ações que remetem a outras épocas, mas acrescentando algo de significativo ao seu entendimento no presente.

Certamente a questão legal relativa àquela determinada região no Nordeste, levanta a problemática da justiça e da verdade no geral, à medida que a exposição realista do desterrado mostra as rupturas de contrato sucessivas no mundo fabiano e que vão deixando-o sem a menor possibilidade de chamar em ajuda qualquer outro, já ele é sem direitos.

O primeiro desmantelamento deste pseudo-estado de direito dá-se diante do soldado Amarelo, o representante da lei, e também um transgressor. De um momento para o outro, surpreendido como um enganador da verdade e um injusto, o Outro da lei, a quem se acredita poder confiar, cessa de ser confiável. Para Fabiano, a justiça é aquele cinturão. Ele vai preso, sofre maus-tratos, apanha e sente a dor na própria pele. Sem poder justificar o seu mais completo abandono, fica como uma criança no estado do desamparo e dependência da mãe. Diante da violência, onde quer que tenha mais força, na relação entre os poderosos e os oprimidos, lhe faltarão com os direitos e as obrigações de cidadania. E já é privado da Terra-mãe.

A expressão estética se manifesta pelo ritmo organizado em torno do tempo de leitura dado, para tornar legível, através do silêncio, as relações profundas. O que não é possível dizer, mostra, preconiza de certa forma, o filme. Ademais, no céu as nuvens do sertão desértico, o vazio invoca muita coisa mais. Até nos dias de hoje, quem escuta as ressonâncias do gemido desprendido dos confins mais imediatos da tela, perturba-se. Arranca poderosamente os ouvidos das harmonias costumeiras. E já afeta várias gerações, como voz (a)significante: isso cala a ameaça de um mundo sem direitos, um Auschvitz entre nós.

Anexo: Trecho de Vidas Secas (1963) baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos.

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