sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Memórias constrangedoras

Rodrigo C. Vargas

"A voz dos animais serve unicamente para expressar a vontade, em suas excitações e movimentos, mas a voz humana serve para expressar o conhecimento." (Schopenhauer)

O telejornal de maior audiência no Brasil abriu a noite do último dia 22 contando a história de uma mãe que decidiu construir uma cela dentro de casa, para impedir o filho viciado em crack de sair. Uma especialista foi convocada para explicar o caso e conversou com os apresentadores. Falou da droga e sua potência, do quanto é difícil lidar com a situação dentro de casa, deu dicas, mas nem tocou no óbvio: por quê?

O tempo de televisão é caro e o desse telejornal específico chega a custar mais de 300 mil reais, apenas 30 segundos. Mas se podem oferecer um programa inteiro ao espetáculo agendado (queda de aviões comerciais - morte do Papa ou Michael Jackson - olimpíadas), por que não ir fundo nos assuntos sugeridos? Deleuze explica que a imagem não é objeto mas sim processo, e que esses equipamentos tem palavras de ordem clichês de uma sociedade de controle, por isso apenas reforçam suas necessidades.

Esse artigo não tem a pretensão que o telejornal teve. Não busca responder uma questão médica e individual assim, de forma rápida. O que não apareceu na matéria por conveniência, é o que está levando jovens ao suicídio ético, moral e físico na maioria dos casos: o consumo e o medo.

Não há como tocar nesses dois assuntos num ambiente claramente construído sobre essas bases. Assassinatos aqui – bombas ali – Nobel da paz - corta – intervalo (compra carro tal – abra uma conta neste banco – use essa marca – beba a cerveja que desce redondo) volta do intervalo - policia invade morro – drogas – futebol – corta! Imperativos imorais. Essa prática interfere sim nas relações sociais e comete um equivoco irremediável de achar que vale tudo em nome do mercado livre.

No mesmo dia, crianças da quarta série de uma escola pública do interior gaúcho brincavam de traficante em plena sala de aula, usando giz em pó embalado para substituir a cocaína. Esse desarranjo espacial em que tudo é desconforto e estranho, não é novidade. É chamado por Nietzsche como a morte de Deus. O fim do sentido comum e o nascimento de um outro, onde não há espaço para a compreensão tradicional. É nesse contexto claustrofóbico que a comunicação deve atuar sem memórias constrangedoras.

Liberdade é ter o real controle sobre as escolhas, e não fazê-las achando que tem. A liberdade é a essência da possibilidade humana de existir, mas ela não pode sucumbir diante de um meio que desloca de seu eixo num revezamento cínico entre o fim e o começo.

A diferença entre o rato e o homem é a capacidade de comunicação da espécie. Foi essa ferramenta que nos manteve vivos, e não pode ser usada para aprisionar as massas. As redefinições nietzschianas do homem apontam sermos "o animal mais corajoso", o animal "mais cruel" e o animal "mais sofredor". Por que deixamos que abusem apenas das duas últimas espectativas?

Não é mais possível viver numa sociedade fundada na desconfiança. O consumo deve ser questionado. Quase que a totalidade da violência que somos obrigados a comprar diariamente é financiada pelo consumo. Não é a fome nem a miséria, é o petróleo, os minerais, as pedras preciosas, os negócios que matam e fazem matar. Uma vida por um tênis.

Ainda tem apresentador com coragem de dizer boa noite!

2 comentários:

Miguel Leocádio Araújo disse...

Seu artigo está muito bom. Que venham outros pra despertar a pasmaceira em que nos encontramos nesse mundo.

Ana Valeska Maia disse...

Parabéns pelo artigo Rodrigo.
O tema que você abordou é assunto frequente nas minhas aulas(consumo, sociedade de controle).
O que me deixa espantada é o apego que existe com a sociedade de consumo. A cooptação é tão forte que o senso crítico do indivíduo fica prejudicado e a hipocrisia reina
Gostei, tô sempre por aqui.
Bjs.