quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Íntimas paisagens: sobre os contos de Virginia Woolf e de Katherine Mansfield

Maria Esther Maciel
memaciel@gmail.com
Poeta, ensaísta e professora de Literatura da UFMG, mestre em Literatura e doutora em Literatura Comparada pela UFMG, com pós-doutorado pela University of London

Quando a escritora neozelandesa Katherine Mansfield morreu em 1923, aos 34 anos de idade, vítima de tuberculose, a inglesa Virginia Woolf não conteve sua consternação, ao dizer: “tenho o pressentimento de que vou pensar nela, em intervalos, durante toda a minha vida”. E, de fato, quase dez anos depois, confessou que sonhava muito com Mansfield, com quem mantivera um relacionamento tenso, marcado por uma certa rivalidade literária e várias afinidades intelectuais. Afinal, as duas foram, nas primeiras décadas do século XX, as escritoras mais inventivas e influentes da literatura modernista de língua inglesa, tendo subvertido os princípios da narrativa tradicional e, a partir do uso de inovadores recursos poéticos e de técnicas narrativas como o “monólogo interior” ou o “fluxo da consciência”, criado universos ficcionais densos e instigantes, de grande impacto sensorial. Cada uma, com sua dicção particular e suas diferenças no modo de lidar com a realidade, a linguagem e a experiência cotidiana.

Woolf – principal representante do grupo literário de Bloomsbury, centro de irradiação do modernismo britânico – era mais afeita às experimentações da linguagem. Mansfield – em seu desenraizamento e independência – era mais visceral na sua relação com o mundo, com a vida vivida. Ambas, atentas aos detalhes da existência prosaica e aos estados (ou paisagens) de alma de suas personagens, irônicas em relação às convenções sociais, voltadas para a sondagem crítica e criativa da própria condição feminina em um contexto ainda contaminado pelo puritanismo vitoriano. Uma buscou a morte aos 59 anos, ao encher os bolsos de pedra e se afogar no rio. A outra lutou, com uma vitalidade incisiva, contra a doença que a consumia aos poucos. A primeira deixou uma obra vasta, composta de nove romances, dezenas de contos, centenas de ensaios, algumas biografias, milhares de cartas e meio século de diários. A segunda deixou três livros completos de contos, dois inacabados, várias cartas e diários, não tendo podido, pelo escasso tempo de existência, dedicar-se ao romance, como queria. As duas tiveram vidas tumultuadas e sofridas, mas compartilhavam a mesma alegria no contato com bichos, flores, jardins e pomares.

São estas fascinantes autoras que abrem a coleção de grandes escritoras modernistas de língua inglesa, que a editora Cosac Naify acaba de lançar no Brasil. De Virginia Woolf, sai um volume com todos os seus contos, incluindo o inédito no Brasil “Um diálogo no monte Pentélico”, todos traduzidos, com muita acuidade, pelo poeta Leonardo Fróes, e acompanhados de notas explicativas de Susan Dick e algumas fotografias da autora. De Katherine Mansfield, é publicada uma coletânea de contos primorosamente traduzidos por Carlos Eugênio Marcondes de Moura e Alexandre Barbosa de Souza, a qual também inclui notas e fotos. Embora não tragam as biografias das escritoras e tampouco uma apresentação crítica de suas obras aos leitores brasileiros que não as conhecem – o que não deixa de fazer falta na coleção – os livros primam pelo esmero gráfico e pela qualidade das traduções. Além disso, têm o mérito de servirem como portas de entrada não apenas ao complexo e aliciante universo narrativo das duas autoras, como também à moderna ficção de língua inglesa, em especial a das mulheres.

O volume de Woolf reúne 46 contos, distribuídos em quatro seções cronológicas. Neles, encontramos retratos, quadros, recortes e descrições de pessoas, situações, paisagens e instantes, flagrados naquilo que têm de mais intenso e intrínseco. O requinte do vocabulário, aliado às inovações sintáticas e sutilezas narrativas, predomina na maioria dos textos que privilegiam, não o encadeamento lógico dos fatos, mas o fervilhar interno das personagens, suas digressões da memória, seus pensamentos e distrações. O enredo, nesse caso, acaba sendo um mero pretexto para que as situações e os acontecimentos sejam capturados em sua dimensão menos factual. Muitas vezes, a intriga nem mesmo existe, dando lugar a uma miríade de cores, movimentos e sensações, como no conto “Kew Gardens” – com sua prosa atravessada de sinestesias – no qual uma fivela de sapato de um dos personagens e um louva-deus em meio à profusão cromática de plantas e flores concentram em sua aparente insignificância toda a realidade do mundo circundante.

Aliás, as coisas – imprecisas ou palpáveis – merecem quase sempre uma atenção especial da autora. Além da fivela ou do caco de vidro do conto “Objetos sólidos”, vários objetos aparecem nos textos, como aqueles que, sob a designação de “coisas perdidas em nosso tempo de vida”, são enumerados caoticamente em “A marca na parede”, conto todo urdido em torno de uma mancha escura que a narradora vê, de repente, na parede, acima do parapeito da lareira. Já em “Condolência”, quem rouba a cena é uma abelha que entra e sai do quarto (e dos devaneios) da personagem. E em “Felicidade”, um gesto banal, como o do personagem que se dobra para tirar de sua calça, com um peteleco, um fio branco, adquire uma dimensão epifânica, de revelação.

Mas nem todas as narrativas da autora abstêm-se de enredos e intrigas explícitas. Na bela fábula “ A viúva e o papagaio”, por exemplo, que chega a lembrar certos momentos do conto “Um coração simples”, de Gustave Flaubert, o enredo se impõe aos artifícios da linguagem, envolvendo o leitor no ritmo seqüencial da trama. O que se repete em outros textos mais lineares, como “Cigana, a vira-lata”, que conta a história de uma cadelinha imprevisível.

O volume de Katherine Mansfield, por sua vez, traz doze contos selecionados: um do primeiro livro da autora, de 1911; três de Felicidade e outros contos, de 1920; quatro de A festa no jardim, de 1922, além de quatro outros, extraídos de obras inacabadas, postumamente publicadas pelo crítico John Murry, marido da escritora.

Como Woolf, Mansfield aposta na força da ambigüidade e da polissemia, optando por uma linguagem de explícita visualidade. Vale ressaltar, inclusive, o caráter quase cinematográfico de vários contos da coletânea, como aqueles que descrevem cenas e situações flagradas do interior de um trem em movimento. São verdadeiros “travellings”, em modulações cromáticas que imprimem na própria superfície da escrita as cargas de complexidade do olhar da “câmera”, como se pode atestar sobretudo no instigante “A pequena governanta”, que narra a história de uma moça que viaja para a Alemanha, para assumir o emprego de governanta em uma casa de família, vivendo uma insólita experiência de viagem. O vigor imagético se explicita também no último conto, “A mosca”, que traz o embate desesperado pela vida (seria uma alegoria da própria contenda da autora contra a morte?) de uma mosca dentro de um tinteiro e que, depois de salva, ainda tem que lutar contra o jogo sádico do chefe do escritório, que nela joga sucessivas gotas de tinta, só para avaliar a resistência do inseto, que acaba perecendo.

Os elementos biográficos são recorrentes na literatura de Mansfield. Mas, longe de serem meramente transpostos para a narrativa de forma referencial, são obliquamente entretecidos através de inventivos recursos ficcionais e poéticos, que incluem descontinuidades narrativas, fluxos temporais e finais abertos, inconclusivos. Minimalista, ela explora sempre os detalhes, atendo-se ao estranho da vida, ao que escapa à imediaticidade do olhar comum.

As duas obras vêm, assim, abrir para o leitor brasileiro um universo feminino de intimidades lúcidas e paisagens raras, extraídas da realidade prosaica das coisas vividas ou lembradas. Embora nesse caso, as lembranças se explicitem também como quase improvisos, como pedaços da imaginação. Isso, porque em Woolf e Mansfield, como diria Clarice Lispector (escritora que integra essa mesma linhagem), “escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu”.

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