terça-feira, 8 de setembro de 2009

Traduzir Gullar

Luis Estrela de Matos
estrematos@yahoo.com.br
Professor universitário, jornalista, ensaísta e escritor

Poemas deveriam nos marcar para sempre. Quase como se fossem uma tatuagem. No espírito e também no corpo. Um grande poeta é uma voz dentro de nossas vidas. Respira conosco. Mais do que isso, seus versos se misturam aos nossos olhos e passamos a ver o mundo e as coisas e, quem sabe, as pessoas, juntamente com a poesia contida em um grande poema que consegue nos habitar. Ninguém escolhe ser poeta. Não há escolha. Mas podemos escolher ser bons leitores, leitores fortes, como venho repetindo constantemente. Ferreira Gullar é um poeta forte. Marcou os caminhos e descaminhos da grande poesia brasileira do século XX e, sem dúvida alguma, em função de sua contemporaneidade poética, continuará marcando alguns dos novos caminhos do fazer artístico neste século que se inicia. Por quê? Simplesmente porque ele dialoga com nosso sentir e viver contemporâneos. Exemplo? Segue o mais comum deles, visto que é dos mais conhecidos. E que por comum, por ser já de todos, não se traduza aqui enquanto banal. Banal somos nós, quando não conseguimos ver a força dos versos largos e imperativos de uma grande voz. Ei-la:

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

E é esse fundo sem fundo que somos nós, ou melhor, a pesquisa de nós mesmos. Há que se pesquisar. Todos e ninguém, ó Pessoa!!! Estranheza e solidão, eis dois alicerces da saúde existencial de um ser contemporâneo. Não tê-los, eis o problema. Somente no estranhar-se, no desentranhar-se de si, somente na solidão enquanto fundamento, conseguiremos um pouco de saúde nesta vida tão doente que estamos vivendo. Seguindo os versos:

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta

Pesar, ponderar... medir, metrificar, calcular. Como se calcula nesta vida. E como estamos abarrotados de resultados equivocados. Nossas estratégias e nossos cálculos e a sensação de que poderíamos viver de outra maneira, onde delirar fosse um verbo essencial. Delirar, fantasiar, imaginar. Deixemos o almoço e a janta para quem tem fome. Mas a gente não quer só comida, conforme já nos avisou Arnaldo Antunes há uns bons e longos anos...

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

De repente o susto. De repente o permanente. E nesso jogo, que não é nosso, a vida vai respirando por nós. Vertigem, lançar-se, cair, despencar, sonhar, o poeta nos dizendo que existe o susto, que a vida também o assombra de repente. E que o permanente é uma teimosia em dizer o indizível, em nos mostrar que tudo é linguagem, e que a linguagem é uma grande vertigem do ser.

E traduzir? Quem arriscaria? Eu arrisquei o suficiente? Linhas foram riscadas nesta página. Tentei respirar com. Ou melhor, tentei que o poema respirasse neste espaço. Espero que tenha traduzido o meu espanto. Viver um grande poema é muito perigoso, meu amigo Guimarães. Salve Rosa!

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