sexta-feira, 5 de junho de 2009

Federico García Lorca: o menestrel da Andaluzia

Antonio Naud Júnior
antonio_junior2@yahoo.com
Escritor e jornalista

Setenta e três anos após sua morte, o poeta mais popular de Espanha segue cativando milhões de leitores em todo o mundo. Filho do pessimismo de uma geração literária, em dezoito anos de carreira e trinta e oito de vida Federico García Lorca (1898-1936) arquitetou um imaginário poético que vai além de tópicos atraentes como touradas, flamenco ou ciganos, renovando a poesia e a prosa espanhola. A influência de sua região natal (Fuente Vaqueros, província de Granada, Andaluzia) se encontra em toda a sua obra, com temas inspirados na tradição andaluza, numa combinação do mais antigo com o modernismo do século XX. Ele foi símbolo da celebrada Geração de 27, um grupo que recuperou a poesia popular, investiu no modernismo, introduziu o surrealismo e outros ismos na vanguarda européia da época. Faziam parte dele, entre outros, Luis Cernuda, Manuel de Falla, Rafael Alberti, Jorge Guillén, Gerardo Diego e Dámaso Alonso. Entretanto, o poeta nunca pertenceu a qualquer movimento literário, embora características do surrealismo se encontrem em sua poesia, assim como as associações semânticas estranhas entre as palavras. Lorca era um inventor de vernáculos ou jogava com eles em função de sua musicalidade. Utilizava a palavra “chorpatélico” quando gostava muito de alguma coisa, e muitas outras: chupaletrinas, espantanublos, uni-uni, dole-dole, meningotes, catalinetas.

Estudando em Madri, produziu uma de suas primeiras obras genuínas, Livro de Poemas (1921), formando o aspecto moderno de sua escrita numa antologia com muitas qualidades. Já Romancero Gitano, iniciado em 1924 e concluído em 1928, é um exemplo genial de poesia composta a partir de influências populares, oferecendo uma Andaluzia deslumbrante, de caráter mítico e símbolos que destacam o amor e a morte. Procurando fazer da cultura andaluza uma temática universal, o poeta apresenta sua terra natal com estética própria, síntese da miscigenação cultural intensa daquela região do sul da Espanha. Meio moura, meio cristã. Os protagonistas dessa obra inesquecível são toureiros, dançarinas de flamencos, violonistas e ciganos, mostrados sem estereótipos preconceituosos e finalmente revelados ao mundo como portadores de um modo de vida e uma cultura única, passional, divertida, hedonista.

Em 1929, no auge de uma crise sentimental, García Lorca se muda para Nova York, disposto a aprender inglês e com o secreto empenho de reavaliar sua vida. O contato com esse novo mundo, que simbolizava o progresso e o futuro, seria determinante em sua carreira literária, ainda que suas declarações sejam duras: “Arquitetura extra-humana e ritmo furioso, geometria e angústia. Sem dúvida não existe alegria neste ritmo de vida”. Era o ano do crash da bolsa: espetáculo de suicidas, de gente histérica e grupos desmaiados. Espetáculo terrível e sem grandeza. Ele não gostou da sociedade nova-iorquina, já que tinha na cabeça a idéia algo comunista de uma sociedade sem classes. Durante oito meses, o poeta se comove com a opressão sofrida pela raça negra, não consegue aprender inglês, busca prazeres carnais e escreve um dos mais fortes poemários da literatura em espanhol: Poeta en Nueva York (1930). Profético e metafísico, influenciado por Walt Whitman, aposta nos oprimidos, sem deixar de revelar as obsessões íntimas do autor. Ligado a sua língua e a sua cultura, simpatizando com os perseguidos, Lorca acreditava levar no sangue algo do cigano, do negro e do judeu. É uma compreensão que está presente em sua escrita, que reforçou, sem dúvida, a apaixonada identificação com os marginalizados, com “os que não tem nada e até o nada é negado”.

Deixando vários livros por publicar, entre eles, os admiráveis e homoeróticos Sonetos del Amor Oscuro (1929), que só recentemente foram editados, o poeta deu ênfase a uma esquecida tradição lírica fincada no erotismo, envolvendo amor, sexo, desejo, instinto e carne. A dor de viver, a impossibilidade de realização, a frustração e o destino trágico também estão presentes em toda a sua criação. Nela, equilibram-se o mais elevado refinamento estilístico com uma linguagem espontânea e sensível, o mais tradicional com o mais vanguardista. Poesia vibrante, ardente, sombria, que reproduz a pureza da fala popular, capaz do lirismo intimista e atormentado de Diván del Tamarit (1934) ou de épicos como Romancero Gitano. Considerado um dos mais difíceis e cultos poetas da literatura espanhola, ele concilia passado e futuro, sensualidade e morte, sacrifício e fecundidade. Felizmente sua poesia cresce com o passar dos anos, suavizando um implacável destino e uma breve existência. Sobre ela, expressou-se numa entrevista publicada no diário La Voz, em abril de 1936, poucos meses antes de morrer: “La poesía es algo que anda por las calles. Que se mueve, que pasa a nuestro lado. Todas las cosas tienen su misterio, y la poesía es el misterio que tienen todas la cosas”. Federico García Lorca, enfim, com Pablo Picasso na pintura e Luis Buñuel no cinema, consagrou-se com sua modernidade, sua escrita contemporânea, atropelando uma Espanha devota, carola, atrasada, reacionária. E tudo isso sem folclore, apenas com a sua verve lírica entre a exuberância e a melancolia.

Obra Poética de Federico García Lorca

1918 – Impresiones y Paisajes
1921 – Libro de Poemas
1927 – Canciones
1928 – Romancero Gitano
1929 – Sonetos del Amor Oscuro
1930 – Poeta en Nueva York
1931 – Poema del Cante Jondo (escrito entre 1921-24)
1934- Diván del Tamarit
1935 – Llanto por Ignacio Sánchez Mejías
1936 – Primeras Canciones

Anexo: Poemas de Gracia Lorca

Volta de Passeio


Assassinado pelo céu,
entre as formas que vão até a serpente
e as formas que buscam o cristal,
deixarei crescer meus cabelos.

Com a árvore de cotos que não canta
e o menino com o branco rosto de ovo.

Com os animaizinhos de cabeça rota
e a água esfarrapada dos pés secos.

Com tudo o que tem cansaço surdo-mudo
e borboleta afogada no tinteiro.

Tropeçando com meu rosto diferente de cada dia.
Assassinado pelo céu!

1910

Intermédio

Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
não viram enterrar os mortos
nem a feira de cinza de quem chora pela madrugada
nem o coração que treme encurralado como um cavalo-marinho.

Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
viram a parede branca onde mijavam as meninas,
o focinho do touro, a seta venenosa
e uma lua incompreensível que iluminava pelos cantos
os pedaços de limão seco sob o negro duro das garrafas.

Aqueles meus olhos no pescoço da égua,
no seio trespassado de Santa Rosa adormecida,
nos telhados do amor com gemidos e frescas mãos,
em um jardim onde os gatos comiam as rãs.

Desvão onde a velha poeira congrega estátuas e musgos.
Caixas que guardam silêncios de caranguejos devorados.
No lugar onde o sonho tropeçava com sua realidade.
Ali meus pequenos olhos.

Não me perguntem nada. Eu vi que as coisas
quando buscam seu curso encontram seu vazio.
Há uma dor de ocos pelo ar sem ninguém
e nos meus olhos criaturas vestidas. Sem nudez!

Poema Duplo de Lago Edem

Nuestro ganado pace, el viento espira

Garcilaso

Era minha voz antiga
ignorante dos densos sumos amargos.
Eu a adivinho lambendo meus pés
sob as frágeis folhas molhadas.

Ai, voz antiga de meu amor,
ai, voz de minha verdade,
ai, voz de meu flanco aberto,
quando todas as rosas manavam de minha língua
e a céspede não conhecia a impassível dentadura do cavalo!

Está aqui bebendo meu sangue,
bebendo meu humor de menino pesado,
enquanto meus olhos se quebram no vento
com o alumínio e as vozes dos bêbados.

Deixai-me passar pela porta
onde Eva come formigas
e Adão fecunda peixes deslumbrados.
Deixai-me passar, homenzinhos de cornos,
ao bosque do espreguiçar
e dos alegríssimos saltos.

Eu sei o uso mais secreto
que tem um velho alfinete oxidado
e sei do horror de uns olhos despertos
sobre a superfície concreta do prato.

Porém não quero mundo nem sonho, voz divina,
quero minha liberdade, meu amor humano
no canto mais escuro da brisa que ninguém deseje.
Meu amor humano!

Esses cães marinhos se perseguem
e o vento espreita troncos descuidados.
Oh, voz antiga, queima com tua língua
esta voz de folha de Flandres e de talco!

Quero chorar porque tenho vontade
como choram os meninos do último banco,
porque eu não sou um homem, nem um poeta, nem uma folha,
mas um pulso ferido que sonda as coisas do outro lado.

Quero chorar dizendo meu nome,
rosa, menino e abeto à margem deste lago,
para dizer minha verdade de homem de sangue
matando em mim a burla e a sugestão do vocábulo.

Não, não, eu não pergunto, eu desejo,
minha voz libertada que me lambe as mãos.
No labirinto de biombos é minha nudez quem recebe
a lua de castigo e o relógio coberto de cinzas.

Assim eu dizia.
Assim eu dizia quando Saturno deteve os trens
e a bruma e o Sonho e a Morte estavam me buscando.
Estavam me buscando
ali onde mugem as vacas que têm patinhas de pajem
e ali onde flutua meu corpo entre os equilíbrios contrários.

Céu Vivo

Eu não poderei queixar-me
se não encontrei o que buscava.
Próximo das pedras sem sumo e dos insetos vazios
não verei o duelo do sol com as criaturas em carne viva.

Porém eu irei à primeira paisagem
de choques, líquidos e rumores
que tresanda a menino recém-nascido
e onde toda superfície é evitada,
para entender que o que busco terá seu alvo de alegria
quando eu voar mesclado com o amor e as areias.

Ali não chega a geada dos olhos apagados
nem o mugido da árvore assasinada pela lagarta.
Ali todas as formas guardam entrelaçadas
uma só expressão frenética de avanço.

Não podes avançar pelos enxames de corolas
porque o ar dissolve teus dentes de açúcar,
nem podes acariciar a fugaz folha do feto
sem sentir o assombro definitivo do marfim.

Ali sob as raízes e na medula do ar,
comprende-se a verdade das coisas equivocadas.
O nadador de níquel que espreita a onda mais fina
e o rebanho de vacas noturnas com patinhas vermelhas de mulher.

Eu não poderes queixar-me
se não encontrei o que buscava;
porém irei à primeira paisagem de umidades e pulsações
para entender que o que busco terá seu alvo de alegria
quando eu voar mesclado com o amor e as areias.

Vôo fresco de sempre sobre leitos vazios,
sobre grupos de brisas e barcos encalhados.
Tropeço vacilante pela dura eternidade fixa
e amor ao fim sim alvorecer. Amor, Amor visível!

Edem Mills, Vermont. 24 de agosto de 1929.

(Poemas do livro Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca.)

Traduções: Claudio Daniel - claudio.dan@gmail.com

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