terça-feira, 5 de maio de 2009

John Fante - O homem que foi Deus para Bukowski

Antonio Júnior
antonio_junior2@yahoo.com
Jornalista e escritor


“Siempre es así. Cuando crees que la tierra está exclusivamente poblada por Mierdas, encuentras una perla”

(William S. Burroughs, “Marica”, 1985)



Ele se esforçou para “chegar a ser o melhor escritor que o mundo conheceu”, como costumava dizer, porém Hollywood dilapidou o seu talento, reduzindo-o a um mero roteirista de encomenda sem assinar qualquer obra cinematográfica de substância. Figura lendária da literatura norte-americana do século XX, tanto por sua vida como por sua obra, de um pessimismo total e um sombrio sentido de humor, que refletem uma atitude de rebelião permanente contra a sociedade convencional. Considerado o “guru” de talentos reconhecidos como Raymond Carver, entre outros, sua obra é uma das mais radicalmente inovadoras da literatura contemporânea, de uma escrita direta, visceral, enxuta, de olho no cotidiano. John Fante lançou um gênero literário que viria a se chamar “realismo sujo” com pelo menos duas obras extraordinárias: “Pergunte ao Pó” (1939) e “Dreams From Bunker Hill” (1982), pequenas novelas que estavam entre as preferidas do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu. Entre um café com conhaque e mais outro, eu e Caio, no último ano dos anos oitenta do século passado, discutíamos, empolgados, sobre a técnica narrativa e a caracterização dos personagens deste escritor; sua violenta energia e perturbadora visão estavam em nossas consciências. Inocente, eu queria participar do mesmo grupo “indecende” do mestre “maltratado pela vida”. Lembro que ainda adolescente, trabalhando num escritório de arquitetura para pagar os meus estudos, identificava-me com Bandini, sonhando em viajar, amar, participar de aventuras medíocres e escrever tais experiências.

Outro defensor fervoroso de Fante, Charles Bukowski, o papa do underground literário, se ocupou durante toda a sua vida, e com afinco, de evidenciar a importância da obra de um escritor considerado até então medíocre e carente de recursos, além de totalmente desconhecido durante décadas. Estranho na terra prometida, como um santo ou um criminoso com ordem de busca e captura, Fante contou em seus livros as experiências e as vivências dos derrotados, acabando seus últimos dias em uma confortável casa de Malibu, cego, com as pernas amputadas devido a diabetes que padecia, mergulhado num coração ferido, em ressentimentos, álcool, apostas e ditando novelas para a mulher, Joyce Smart, uma poetisa com interesse em magia branca.

Nascido em Denver, Colorado, em 1909, filho de uma modesta família de imigrantes italianos, o jovem candidato a escritor iniciou sua carreira publicando um conto na The American Mercury, uma revista literária editada pelo famoso H. L. Mencken. Para ganhar a vida e sustentar a numerosa família de quatro filhos, que nunca levou muito a sério, Fante aceitou trabalhar em Hollywood, na década de 30, roteirizando filmes série B, ou melhor, vendendo a alma ao Diabo. Em quarenta anos, publicou apenas quatro livros. O primeiro deles, “Wait Until Spring”, de 1938, já contava com o irresistível protagonista alter-ego Arturo Bandini. Em 1952, Fante obteve sucesso comercial com o romance “Full of Life”, e a adaptação para o cinema da obra levou-o a ser nomeado ao Oscar de melhor roteiro. Em 1957 passou temporada em Roma, convidado pelo poderoso produtor Dino De Laurentiis, que pagou um apartamento renascentista, com chofer e criada, para que desenvolvesse um roteiro nunca rodado sobre São Genaro; um marginalizado Orson Welles o contratou como colaborador de um programa radiofônico patrocinado por uma firma de cosméticos; Michael Curtiz pagou-lhe 350 dólares por dedicar uma hora a polir uma cena de “São Francisco de Assis” e Federico Fellini tentou tê-lo como parceiro.

John Fonte morreu em 1983, aos 74 anos, justamente quando seus livros voltavam a ser publicados. Escreveu pouco antes “1933 Was a Bad Year”, “The Road to Los Angeles” e “West of Rome”. Seu “Dago Red”, de 1940, foi reeditado em 1985 como “The Wine of Youth”. Só que o inicio foi duro. Criou-se num lar entre broncas domésticas, falta de dinheiro, insultos xenófobos e manifestações anti-católicas, defendendo-se do mundo hostil com frequentes brigas e a prática do boxe. Herdeiro do espírito aventureiro e revoltado da família paterna, trocou a igreja pela biblioteca pública e, cansando-se da universidade em seis meses, mudou-se para a terra onde se tornaria um dos seus mais formidáveis cronistas, Los Angeles. Suas peripécias diárias para sobreviver, com a mente direcionada para converter-se em uma “celebridade das letras”, estão em seus admiráveis relatos. À imagem de Knut Hamsun, um dos seus escritores favoritos, John Fante passou fome, vagabundeou sem descanso e habitou sórdidos motéis, envolvendo-se com garotas nada sérias. Trabalhando em uma fábrica de conservas, embriagava-se todos os dias, montando escândalos públicos e proclamando ser um gênio incompreendido. Ele buscava um público, o reconhecimento de seu talento, que não deixava de ser uma máscara para esconder uma espantosa desintegração social. São experiências dramáticas que cose com humor a personalidade de Arturo Bandini, um escritor-filósofo malandro e vaidoso protagonista de uma tetralogia iniciada com “Wait Until Spring”.

As generosas vendas dos seus primeiros livros, além da reputação como criador de histórias de uma emotividade muito italiana, lhe permitem trabalhar para os grandes estúdios. Livre da fome e das roupas remendadas, pagou o preço atando-se à melodramas cinematográficos baratos, muitas vezes parodiando sua linhagem, em títulos como “Mamá Ravioli”, sobre o bairro novaiorquino de Little Italy. Mercenário que chegou a ganhar mil dólares por semana, só se filmariam oito de seus trinta roteiros, aos quais desprezava. Francis Ford Coppola projetou adaptar “The Brotherhood of the Grape” (1977), que Fante declarou considerar como o seu melhor trabalho e aquele que o havia feito chorar mais. É o retrato de uma rude figura paterna em uma família italiana em crise.

Os contos de John Fante apareceram em revistas importantes como Harper´s ou Esquire e suas novelas foram recusadas por dezenas de editoras. Bebedor incontrolável, péssimo pai e marido, podia acabar a noite falando porcarias com um companheiro ébrio da talha do Nobel William Faulkner ou destruíndo seu Plymouth contra um poste telefônico de Hermosa Beach. Caprichoso, teve um jaguar, um pit-bull branco batizado Rocco e uma Baretta de calibre 22. Chegou também a deixar passar 20 anos entre uma novela e outra, porém o tempo não jogou limpo com suas ambições literárias de reconhecimento público por um material artístico sincero e vital. Foi Bukowski que o resgatou do anonimato, quando Fante já pensava na possibilidade de escrever sobre a sua decadência em uma obra que intitularia “Fante´s Inferno”. Fascinado pela leitura de “Pergunte ao Pó”, Charles Bukowski visitou o bairro de Bunker Hill, onde Fante situou o seu esfomeado personagem-artista, para sentir-se Arturo Bandini por um dia e mais tarde convenceu a sua editora, a Black Sparrow Press, a republicá-la depois de quatro décadas de esquecimento. Esteve também com o ídolo no hospital e dedicou-lhe o poemário “Love is a Dog from Hell”: “Para John Fante, que me ensinou como. Hank”.

John Fante faz parte do círculo dos maiores escritores dos anos 30-40 do séc. XX, escritores que viveram durante muito tempo do ofício de roteirista: Raymond Chandler, Nathanael West, Budd Schulberg, Faulkner, Fitzgerald e Dorothy Parker. Não seria nada mal tomar uma taça de vinho tinto seco e forte em sua memória. Que viva o mestre!

Um comentário:

Anônimo disse...

o texto é interessante, gostei. So uma correção: Rocco era um BULL TERRIER, não um pit bull