quarta-feira, 29 de abril de 2009

Orthographia actual e anarquismo intellectual


Glauco Mattoso
glaucomattoso@uol.com.br
Poeta, ficcionista e ensaísta

Desde agora, janeiro de 2009, aproveito a vigencia da reforma orthographica para mais um acto de rebeldia. Não se tracta propriamente de desobediencia civil, mas de independencia intellectual. Na verdade, eu ja practicara o systema etymologico durante annos, na decada de 1970, emquanto editei o "Jornal Dobrabil", um fanzine anarcho-litterario. Mas, antes de explicar por que adoptei a norma archaica (que aliaz nem era tão archaica assim, como veremos), quero recapitular um artigo que escrevi nos annos 1980 para a revista "A-Z" (antiga "Around", da boate Gallery, ponto badalado de Sampa).

O artigo intitulava-se "Sem rei nem rock" e tractava da nova constituição (1988), que previa um plebiscito para votarmos si a republica deveria continuar ou si a monarchia deveria ser restaurada. Naquelle clima de debate, relatei uma passagem autobiographica para demonstrar que fui mais careta, na faculdade, que os proprios membros da TFP (Tradição, Familia e Propriedade, organização direitista da epocha). Vamos ao trecho da materia que nos interessa aqui:

[Não sei se o partido tá funcionando, pois não me filiei. O fato é que, com ou sem partido, sou monarquista por princípio, assim como os velhos & filhos sobreviventes do período imperial, mas também por uma espécie de nostalgia folclórica, uma curtição que já deixou de ser kitsch pra virar sofisticação intelectual, ou seja, finesse. Quem me vê como um cara tarado & debochado pode não acreditar que passei a adolescência toda me portando & vestindo como um verdadeiro TFP. Fui tão conservador que, quando alguns tefepistas me procuraram na faculdade (em pleno governo Garrastazu) e me convidaram a entrar pra casa de Dominus Plinius, eu respondi que toparia com uma condição: a de que cada um dos emissários escrevesse três palavras numa folha de papel. As palavras eram "filosofia", "clorofila" e "crisântemo". Eles não eram tão bobinhos e sacaram que eu os tava testando. Tentaram entrar na minha e escreveram "philosophia". Mas nas outras duas se embananaram. Não sabiam todas as letras de "chlorophylla" e "chrysanthemo". Aí foi minha chance de encerrar o papo: "Vocês não são tão tradicionalistas. Do contrário, além da volta da monarquia, defenderiam também o uso da `orthographia etymologica`." E virei as costas. Foi nessa fase excêntrica, de colete & relógio de bolso, que encasquetei uma idéia ainda mais extravagante: a de ser recebido pelo príncipe herdeiro da Coroa brasileira. Meus conhecimentos sobre as instituições imperiais se resumiam aos dados históricos e ao texto da constituição de 1824, pela qual o regime é hereditário por primogenitura masculina. Dizia o artigo 117 que a descendência de D. Pedro I sucederia ao trono "segundo a ordem regular de primogenitura e representação, preferindo sempre a linha anterior às posteriores; na mesma linha, o grau mais próximo ao mais remoto; no mesmo grau, o sexo masculino ao feminino; no mesmo sexo, a pessoa mais velha à mais moça". Assim, se a princesa Isabel teve três filhos, o mais velho, Pedro de Alcântara, Príncipe do Grão-Pará, seria o herdeiro. Como o príncipe já morreu, seu filho Pedro Gastão seria o sucessor. E D. Pedro Gastão, segundo me disseram, morava em Petrópolis, no palácio Grão-Pará. Não tive dúvidas. Escrevi uma carta (em ortografia antiga, naturalmente) onde me declarava monarquista e, na maior cara de pau, pedia a Sua Alteza que me hospedasse no palácio. Será que eu esperava resposta? Se não esperava, veio. Foi uma recusa, lógico, mas uma recusa com aquela classe, aquela elegância aristocrática que só os nascidos em berço de ouro sabem ter. Escrita de próprio punho num cartão timbrado com o brasão imperial e ilustrado com uma gravura de 1870 representando o palácio Isabel (hoje palácio Guanabara, sede do governo do Rio), dizia a resposta: "Prezado Pedro José Ferreira da Silva (é meu nome plebeu, e bem plebeu, por sinal, ó desgraça!): Ao voltar de viagem achei no Grão Pará sua amável carta. Agradeço os termos tão amáveis nela contidos. A Princesa estando ainda na Europa não me é possível o hospedar agora. Com meu sincero saudar, Dom Pedro."]

A continuação dessa historia não vem ao caso, mas basta aquelle panorama para imaginarmos como o Brasil se debatia entre velhos e novos valores. Ser livre-pensador (ou franco-atirador, no caso do poeta) em tal scenario não era facil. Os manicheistas nos pressionavam de todo lado: si você não era de direita, tinha que ser de esquerda; si não era fascista, tinha que ser marxista; si não era monarchista, tinha que ser republicano; si não era sambista, tinha que ser rockeiro; si não era parnasiano, tinha que ser concretista; si não era sonetista, tinha que ser verbivocovisual. Ora, si ha uma coisa que eu detesto, é egrejinha e panellinha. Ninguém compartilha commigo meu glaucoma, minha cegueira, meu masochismo, meu fetichismo ou minha insomnia, mas querem que eu compartilhe idéas e ideaes collectivos, indifferentes à diversidade das individualidades, né? Fodam-se, pensei eu naquella epocha, e ainda penso assim. Não tenho que seguir cartilha alguma nem prestar contas a nenhuma "auctoridade intellectual". Só tenho que consultar minha consciencia e minha trajectoria existencial. Sempre nadei contra a maré e, hoje em dia, nestes tempos de "pós-modernidade", de "globalização" e de "realidade virtual", nada é mais anticonvencional que ser antiquado, nem mais anarchico que ser anachronico. Dahi por que virei sonetista e, agora, adopto de novo a orthographia em que escreveu Machado e Bilac, Alencar e Delfino.

O gancho, porém, desta attitude minha é a actual reforma, contra a qual até escriptores bem-comportados se posicionam, inconformados. Della tractarei nos proximos capitulos desta columna. E ja vou avisando ao editor para não passar meu texto pelo corrector orthographico, do contrario me fodo todo.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Lugo, seis filhos, várias igrejas e um país

Rodrigo C. Vargas

Há duas semanas a vida do presidente paraguaio Fernando Lugo começou a mudar. Sua imagem de salvador da pátria se transformou na de tarado do clero. Isso por que o ex-bispo católico reconheceu como filho o menino Guillermo Armindo, de dois anos, fruto de um relacionamento com Viviana Carrillo Cañete. Até ai tudo bem, fez o papel dos justos. O problema para a maioria é que a mãe da criança engravidou enquanto Lugo ainda era bispo.

O escândalo foi potencializado com o passar dos dias. E o Fernando paraguaio foi pouco a pouco descobrindo, diríamos assim, que sua prole poderia ser bem maior.

Uma segunda mulher, Benigna Leguizamón, ex-funcionária da diocese de San Pedro (cidade a 400 km ao norte de Assunção, onde Lugo manteve o hábito religioso até 18 de dezembro de 2007 quando renunciou para se candidatar à Presidência.), apareceu exigindo que o presidente reconhecesse também o filho Lucas Fernando de seis anos.

Em seguida, uma terceira mulher, Damiana Morán, também denunciou que tem um filho com o atual presidente e ainda afirmou que o líder é pai de ao menos, seis crianças. Ela ainda contou a imprensa que começou a relação com Lugo há cinco anos e a intensificou durante a campanha eleitoral em abril de 2008.

O que deveria deixar todos perplexos não é a quantidade de filhos que surge a cada semana, nem somente o fato de Lugo ter sido bispo enquanto os fez. Mas como a igreja trata o celibato e como seus membros o tratam de volta. Várias mulheres disseram ter denunciado o ex-bispo à igreja e elas tem uma testemunha importante, o bispo de Alto Paraná e Canindeyú Rogelio Livieres.

Ainda assim, terça passada durante a Conferência Episcopal Paraguaia os religiosos asseguraram não ter recebido nada e que “Se a denúncia foi apresentada perante a Nunciatura Apostólica, seu tratamento e definição foram de exclusiva competência da [instituição] mencionada”. A Nunciatura é a representação diplomática do Vaticano, equivalente à embaixada.

Aqui no Brasil, a CNBB realizou ontem, encontro ecumênico em Indaiatuba no interior de SP. Os bispos discutiram a formação religiosa de padres no país e o celibato foi um dos assuntos. Em fevereiro do ano passado, ao final do 12º Encontro Nacional de Presbíteros, realizado na mesma cidade no Mosteiro de Itaici, o documento final propunha ao Vaticano a busca de alternativas para o celibato sacerdotal. Aprovado por 430 delegados que representavam os 18.685 padres das 269 dioceses brasileiras, onde trabalham em 9.222 paróquias, o pedido foi enviado à Sagrada Congregação para o Clero em Roma. Nada mudou e nem vai, já que esse Papa já reafirmou o celibato como ordem imprescindível.

A imposição do celibato surgiu no ano 306, no Concílio de Elvira, apenas para à Espanha. Entre 1537 e 1563 durante o Concílio de Trento se tornou obrigatório em todo o mundo. Como hoje há uma maior liberdade para discutir a igreja, alguns rumores dão conta de que o afastamento de qualquer possibilidade de sexo e do casamanto, tem ligação direta com a manutenção dos bens da igreja. A matemática é simples: Família = mais despesas e Separação = separação de bens.

O caso Lugo não é o único. Uma vasta literatura a respeito vem sendo publicada. Em 1999 o livro Gone with the wind in the Vatican escrito pelo monsenhor Luigi Marinelli, ex-chefe da Congregação das Igrejas do Leste, revelou supostos segredos inconfessáveis da cúpula eclesiástica: brigas pelo poder, homossexualismo e quebra de celibato. Na capa do livro vem escrito: "É hora de a igreja pedir perdão a Cristo pelas diversas infidelidades e traições de seus ministros, especialmente daqueles que ocupam altos cargos na hierarquia do Vaticano." Marinelli está sendo processado por difamação. O livro mostra o exemplo de dois bispos: um teria sido surpreendido pela polícia num carro, seminu e com outro homem; o outro bispo teria se apropriado de dinheiro dos fiéis para sustentar um filho por ele não reconhecido.

O que fica claro em situações como a do Paraguai é que o celibato deixou de ser integrador para ser um ato de protesto individual, privado. Distante da igreja apesar de ser cometido enquanto ela.

Ontem, o presidente falou pela primeira vez sobre os casos e não confirmou e nem negou o envolvimento com as mulheres. Fez questão de pedir perdão e de afastar qualquer possibilidade de renunciar. Sobre o perdão, parece que a população de Assunção, capital do país, não sabe exercer muito bem a prerrogativa cristã. Cartazes com legendas contra o presidente e camisetas com frases como "Lugo, o pai da mentira" começam a circular em grande número. A resposta pode vir de cima.

O escândalo coincide com novos atritos do chefe de Estado com o vice-presidente do país, Federico Franco, pela reestruturação ministerial que ordenada há poucos dias. Parte da imprensa local e analistas políticos consideram que as mudanças fazem parte de uma estratégia para desviar a atenção. A reestruturação ministerial prejudicou a ala liderada por Franco que é do PLRA, partido posicionado como centro-direita e que serve como suporte político de Lugo no Congresso.

Fernando Lugo assumiu o poder em 15 de agosto passado pondo fim a 61 anos de hegemonia política do Partido Colorado à frente de uma coalizão que apesar de ser integrada por diversos grupos sociais e de esquerda, é liderada pelo partido do vice.

Walter Benjamin: o futuro do passado versus Modernidade & Modernos

Gilfrancisco Santos
Jornalista e pesquisador

Considerado um clássico da sociologia da literatura, Walter Benjamin é o grande teórico da modernidade, visto que é impossível compreender os caminhos da sociedade e cultura modernas sem as análises profundas que ele fez de suas estruturas e de seus processos. A necessidade de se estudar a fundo a totalidade da obra desse autor, para se ter uma idéia do seu conceito de crítica e prática, e vê-lo através de suas múltiplas facetas; como pensador, pesquisador e escritor original.

*****

I. A chamada escola neohegeliana de Frankfurt (origináriamente composta por Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse e Siegfried Kracaner), é uma das mais sugestivas formações ideológicas do nosso tempo. O nazismo e a guerra, que lhe dispersaram o grupo inicial, não lhe destruíram a unidade de espírito. Walter Benjamin foi um dos pilares da Escola, mas, ao mesmo tempo, afastou-se dela à medida que avança na direção do marxismo. Amigo de Adorno, com que teve em 1930, discussões por ele mesmo qualificadas como “históricas”, com o apoio deste, teve vários de seus trabalhos publicados na revista do Instituto. Todos esses elementos vinculados ao grupo, salientam-se, por razões diversas, o nome de Benjamin e Habermas.

Desde 1929, vinha sendo dirigida por um ex-assistente do Ordinarius Hans Cornelius: Max Horkheimer. Em torno do Instituto se desenvolveram as atividades de um grupo de pensadores que ficou conhecido como a Escola de Frankfurt. O exílio nos Estados Unidos, onde Adorno, Marcuse e Horkheimer encontraram o arquétipo da sociedade tecnológica plenamente desenvolvida. Para os três exilados, a cultura americana não é senão o último e mais sutil avatar de repressão.

Segundo Marcuse, o objetivo dos seus estudos é a “interpretação de algumas das idéias dominantes da cultura intelectual da ideologia”, ou seja, a ambição de Marcuse é rastrear uma evolução paralela no terreno da cultura (especificadamente na filosofia). No livro “Dialética do Esclarecimento”, escrito por Adorno e Horkheimer nos Estados Unidos, saudados como clássico desde sua publicação em 1947, trata-se de uns ataques vigorosos às produções do capitalismo cultural, que põe tudo na linha de montagem e a tudo confere um ar de semelhança. O uso da expressão “industria cultural” empregada por eles pela primeira vez, disseminou-se e passou a valer como moeda de troca para todos os artistas queixosos do establishment.

O nome de Habermas está intimamente associado ao da Escola, pois com a morte dos seus fundadores em especial, Adorno, Horhkeimer e Marcuse - Habermas é considerado o último representante da teoria crítica da sociedade. Desde que assumiu o cargo de assistente de pesquisa (1956-1959) no Instituto para Pesquisa Social, Habermas dedicou-se intensamente a atividades acadêmicas. O certo é que nos bastidores da Escola de Frankfurt, as tensões, as convergências e divergências existentes no pensamento do grupo, tanto no âmbito estético e filosófico quanto no político e social, estiveram sempre presentes em todos eles.

Assim individualizada, a Escola constitui o objeto de apreciações de ordem filosóficas, sociológicas e políticas, mas a aproximação puramente histórica assim como a aproximação defensora parece omitir um momento preliminar do questionar da identidade do próprio fenômeno. Os membros da Escola de Frankfurt, tinham uma posição antifascista, socialista, influenciada com o “maxismo leninismo”, porém tinham a preocupação na época de não somar com os inimigos da União Soviética. Benjamin era sensível a esses pontos de convergência que existiam a sua posição pessoal e a dos frankfurtianos.

A escola de Frankfurt á a corrente que tomou corpo em Frankfurt, quando da criação, por um decreto do Ministério da Educação com data de 3 de fevereiro de 1933, por um acordo com a Gesellschaft Für Socialforshung, de Instituto de Pesquisa Social, cuja criação já em 1922 Geselach tinha proposto. A origem do Instituto é iniciativa de Félix J. Weil, filho de um negociante de cereais, que fizera fortuna na Argentina. Weil, doutor em ciências políticas, organizou a “Primeira Semana de Trabalhos Marxista” durante o verão de 1922 em Ilmenan, na qual participaram nomeadamente Lukáscs, Korsch, Pollock, wittfogel, e que devia lançar a noção de um marxismo “verdadeiro” ou “puro”. Assim nasceu a idéia de uma instituição permanente sob a forma de um Instituto de Investigação Independente, que se beneficiou de um donativo de Hermann Weil e de um contrato com o Ministério da Educação, cujo diretor devia ser titular de uma cadeira na Universidade.

O Instituto para Pesquisa Social da qual a revista era porta-voz, foi obrigado, com a ascensão ao poder na Alemanha do Nacional-Socialismo em 1933, a transferir-se para Genebra, depois para Paris, e, finalmente, para Nova York. Nesta cidade a revista passou a ser publicada com o título de “Estudos de Filosofia e Ciências Sociais”. Com a vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial, os principais diretores da revista puderam regressar à Alemanha e reorganizar o Instituto em 1950. Portanto, a Escola de Frankfurt é a etiqueta que serve para marcar um acontecimento (a criação do Instituto), um projeto científico (intitulado "filosofia social"), uma atitude (batizada de Teoria Crítica), enfim uma corrente ou movimentação teórica ao mesmo tempo contínua e diversa (constituída por individualidades pensantes).

Os múltiplos interesses dos pensadores de Frankfurt e o fato de não constituírem uma escola no sentido tradicional do termo, mas uma postura de análise crítica e uma perspectiva aberta para todos os problemas da cultura do século XX, torna difícil a sistematização de seu pensamento. Pode-se, no entanto, salientar alguns de seus temas, chegando-se a compor um quadro de suas principais idéias. De Benjamin, deve-se destacar reflexões sobre as técnicas de reprodução de obra de arte, particularmente do cinema, e as conseqüências sociais e políticas resultantes; de Adorno, o conceito de "indústria cultura" e a função da obra de arte; de Horkheimer, os fundamentos epistemológicos da posição filosófica de todo o grupo de Frankfurt. tal como se encontram formulados em sua "teoria crítica", e finalmente Habermas, as idéias sobre a ciência e a técnica como ideologia.

Marcuse cujo caminho se cruzou com o da Escola, a ponto de se ter implicado nele intimamente, seguindo ao mesmo tempo o seu próprio projeto, se bem que com pressupostos teóricos praticamente heterogêneos. Daí o seu estatuto ambíguo, ao mesmo tempo inseparável do destino da Escola, e revelador diferencial da sua identidade própria. Não se pode deixar de evocar Eric Fromm, estreitamente ligado a um certo período da Escola, antes de radicalmente se afastar dela. Outra personalidade que, sem fazer parte da Escola, lhe está ligada em combates paralelos; é assim que vamos encontrar no horizonte da Escola Ernst Bloch, cuja concepção da utopia foi ao encontro das problemáticas e dos temas da teoria crítica, a partir de princípios completamente diferentes.

Assim, a religiosidade de Horkheimer, no fim da vida, não é apenas um refúgio desiludido, é a (re) presentificação do problema da autoridade, pois a Escola não parou de questionar a história à luz do materialismo e do racionalismo na linguagem (crítica) da ciência, sem buscar um "suplemento de alma". Portanto, os esforços teóricos da Escola de Frankfurt são muitos; a crise da história experimentada como a forma histórica do niilismo moderno e de que produz uma bela fenomenologia, regressa à descoberta dessa divisão do saber do sujeito histórico e da verdade do processo - o que se exprime por uma crise do modo de idealização social correspondente. Esta crise conheceu sintomas vários obtendo diferentes respostas dos seus representantes, sendo este um dos temas centrais da Escola de Frankfurt.

O livro Teoria Crítica de Horkheimer, textos escritos entre 1922 e 1936, oferecem um grande interesse histórico, pois foram publicados principalmente nos primeiros números da revista do Instituto, em Leipzig. No Brasil foi publicado recentemente (1991), onde a maioria dos textos tenta redefinir um conceito pleno e crítico da razão contra três correntes filosóficas principais da época: o positivismo que ao endeusar os fatos e a sua descrição, não mantém a tensão entre Vermunft e Verstand; o pragmatismo que ao confundir o critério de utilidade prática da verdade com o sucesso histórico, mistifica a ordem reinante; e enfim, o irracionalismo questionado filosoficamente o pensamento de Marx, retomando Hegel, mostrando ao mesmo tempo, o caráter irrelutavelmente determinado e histórico de cada momento do pensamento, mas também a inserção destes momentos no processo global de realização da razão, a dialética hegeliana desenvolveu justamente ao histórico e as determinando a sua dignidade, tantas vezes negada pela tradição filosófica. O trabalho de Adorno, A Dialética Negativa, de 1966, será justamente a tentativa notável de pensar esta dialética que nenhuma totalidade mais consegue sintetizar.

Adorno e Benjamin são figuras de primeiro plano na crítica e na teoria de arte contemporânea. Benjamin tinha seu ensaio “A obra de arte na Época de sua Reprodutividade”, na conta de primeira teoria materialista da arte pois o ponto central desse estudo encontra-se na análise das causas e conseqüências da destruição da "aura" que envolve as obras de arte, enquanto objetos individualizados e únicos. Para o primeiro, seu mestre inigualável na modernidade foi Benjamin, o mais original nas contribuições à crítica moderna, pois a "crítica da cultura” da Escola de Frankfurt é uma forma intelectual de luta contra a sociedade vigente.

II. É mais ou menos recente o interesse que as obras de Walter Benjamin (1892-1940), particularmente aquelas que tratam de questões de filosofia, crítica e teoria literária, vem despertando em nossos meios intelectuais. Esse filósofo e crítico literário, pensador sistemático, influenciado por diversas correntes intelectuais, dos estudos hegelianos à tradição teológica judaica e ao materialismo histórico, escreveu importantes ensaios sobre Kafka, Goethe, Brecht, Proust e Baudelaire, além de aforismos impressões de viagem e recordações de infância.

Sua obra vem sendo progressivamente publicada e seu prestígio tem crescido surpreendentemente, como o de um crítico antidogmático, que não busca o significado dirigido, que não está interessado em indicar caminhos únicos e irreversíveis. É considerado o mais fascinante teórico da vanguarda européia, o mais audaz e rigoroso segundo Lukács, por tudo isso, a estética de Benjamin continua sendo ainda a teoria possível da vanguarda. Portador duma vida de sofrimento e solidão, um pensamento que emerge do prazer e da dor, ousado, insolente e rebelde, Walter Benjamin desfia as normas de sua época, mas um dia dedicou-se a essa voz que se cala de espanto e de susto dentro da gente, e que só se faz na palavra, no texto, na literatura, feita da essencialidade dos fatos. Benjamin invocou a contradição e fez florescer a divergência e a ambigüidade, um marxista convicto que teve olhos e corações atentos, cujo único pecado foi querer caminhos libertários e independentes para um povo que amou e pelo qual lutou.

Desde muito jovem relacionado aos círculos intelectuais mais importantes deste século, Benjamin foi às vezes incompreendido, às vezes com seu pensamento intencionalmente deformado, na verdade o julgamento crítico reservou-lhe mais ataques e defesas emocionais que operações de análises. Para sua extensão, diversidade e riqueza, a obra de Walter Benjamin constitui uma verdadeira análise do pensamento do século XX. Tanto na vida amorosa como na profissional, Benjamin sofreu muito, nada dava certo. Revolucionário possuído pela paixão de contribuir para a transformação do mundo, mesmo antes de conhecer o marxismo, já tinha consciência de que era preciso alimentar a esperança de que um mundo bem melhor podia ser criado, e sua tarefa como escritor consistia em desmascarar as mentiras da sociedade burguesa, expondo suas fraturas internas e contribuindo para acelerar sua decomposição.

Scholem, Adorno e Brecht seus amigos, eram inimigos entre si e constantemente trocavam insultos, cada um deles queria que Benjamin seguisse uma determinada direção, que explorasse com exclusividade de determinadas potencialidades manifestadas em seu trabalho, e desenvolvesse suas investigações. Por exemplo, Adorno desejaria atraí-lo para o cultivo do pensamento crítico, que o levaria à dialética negativa, Brecht gostaria de vê-lo mergulhado no comunismo e Scholem não perdia as esperanças de vê-lo dedicar-se à teologia judaica. Mas Benjamin preferiu cuidar de preservar sua liberdade interior, para pesquisar em todas as direções que lhe parecessem interessantes. Apesar de não ter conhecido Gramsci, e este também ignorava a suas idéias, paralelamente ao pensador italiano, afastado do seu engajamento político, o ensaísta alemão refletia preocupações idênticas; É através da leitura de História e Consciência de Classe, do filósofo húngaro Georg Lukács lido por Benjamin em 1923, que as análises lukacsianas do fenômeno da reedificação o deslumbraram, e o pensamento de Karl Marx lhe parece proporcionar instrumentos fecundos para a crítica do presente, descobrindo no fundador do marxismo, uma riqueza maior do que aquela que antes havia podido enxergar. Foi Lukács que o influenciou gradativamente, apesar do seu encontro com Asja e Brecht, serem importante para essa virada, mas o potencial já estava todo nele.

III. Walter Benedix Schönflies Benjamin, nasceu a 15 de julho de 1892 em Berlim, era filho do comerciante abastado judeu de objetos de arte Emil Benjamin, que perdeu a fortuna com a inflação alemã após a I Guerra Mundial, e de Paula Schönflies Benjamin, filha de um grande comerciante também judeu. Menino franzino, enfermiço, míope, desde cedo usou óculos e desenvolveu logo com os livros uma relação apaixonada, que o acompanhou por toda a vida. Seus estudos superiores foram iniciados em 1913 e realizados em várias universidades, nas quais sempre exerceu intensa atividade política e cultural entre os colegas, como por exemplo a de presidente do Movimento da Juventude, do qual se afastou em 1914, quando rompeu com o chefe geral Gustav Wynekem (pedagogo), que quis converter o "movimento" num aliado favorável à guerra. Entre 1914/1915, Benjamin continua seus estudos, entre outras coisas, escreve o ensaio Dois Poemas de Friedrich Hölderlin, e passa a estudar em Munique onde conhece Gerschom Gerhard Scholem, o poeta Rilke e se interessou pela obra de Mallarmé.

Em 1917 casa-se com Dora Sophie Pollak por dois motivos, continuar os estudos e evitar seu engajamento no exército alemão, e se transferiu para a Universidade de Berna, onde conhece Ernst Bloch, período bastante eclético para sua formação filosófica. Em janeiro de 1919 ocorre várias revoltas operárias em Berlim, quando Rosa Luxemberg e Karl Liebknecht são assassinados. Em julho Benjamin conclui a tese de doutorado sobre o tema O Conceito da Crítica de Arte no Romantismo Alemão. É a partir de Kant e Fichte que Benjamin busca os pressupostos epistemológicos da crítica literária dos primeiros românticos alemães, especialmente de Friedrich Schlegel, examinando as suas identidades e diferenças metodológicas. Levado pelas dificuldades financeiras, retorna a Berlim no ano seguinte e passa a viver em casa dos pais, onde ficou com interrupção até 1930.

Em 1921 fez amizade com Florens Christian Rang, que no ano seguinte apresentou um dos seus ensaios As Afinidades Eletivas de Goethe, a Hugo Hoffmannsthal que o publicou na revista Neue Deutsche Beiträge, abrindo-lhe as portas para o mundo literário. Benjamin é um dos principais representantes do Instituto de Pesquisa Social, fundado neste mesmo ano por um rico comerciante de grãos em homenagem a seu filho, estudante de ciências sociais na Universidade de Frankfurt, que deu origem a Escola de Frankfurt (neohegeliana), do qual a Revista Pesquisa Social, era porta-voz, constituindo um dos documentos mais importantes para a compreensão do espírito europeu do século XX. Seus colaboradores estiveram sempre na primeira linha da reflexão crítica sobre os principais aspectos da economia, da sociedade e da cultura de seu tempo. Com a ascensão ao poder na Alemanha do Partido Nacional Socialista em 1933, a revista foi obrigada a transferir-se para Genebra (Suiça), depois para Paris e finalmente para Nova York, quando passou a ser publicada com o título de Estudos de Filosofia e Ciências Sociais.

Nos fins de 1923, seu melhor amigo Scholem emigra definitivamente para Jerusalém (Palestina) e durante muito tempo tentará convencer Walter Benjamin a que se reúna a ele, chegando a fornecer-lhe uma bolsa da Universidade de Jerusalém, para aprender o hebraico, apesar das promessas, Benjamin jamais irá para a Palestina. É o ano em que ele publica as traduções de poemas de Baudelaire, prefaciando-as com o ensaio Die Aufgabe des Ubersetzers, e conhece Theodor Adorno (1903-1969), mais jovem onze anos e de quem acabou por tornar-se o seu grande mestre, escutava-o com admiração, apesar de raramente estarem na mesma cidade. Esse contato (marco decisivo) nunca mais foi interrompido, tendo assim a oportunidade de conhecer vários dos seus textos, mesmo antes de serem publicados. Em 1924, estando em Capri para redigir a tese de livre-docência, conhece Asja Lacis (1891-1979), atriz e diretora de teatro letão, além de ser secretária de Bertolt Brecht, passando a estudar o marxismo e no ano seguinte sua tese foi rejeitada pela Universidade de Frankfurt.

A Origem do Drama Barroco Alemão, destaca o papel da morte na visão barroca do mundo, deixando explicitamente a função da alegoria como mediadora entre o barroco e o século XIX. Esta tese, discorre sobre peças de teatro escritas por autores alemães do século XVII, peças em geral conhecidas apenas por uns poucos especialistas, não chegaram a ser encenadas na época em que foram conhecidas. Na realidade, é um livro estranho e perturbador, que não corresponde ao que se espera de uma tese acadêmica. Inicialmente encaminhada ao Departamento de Literatura Alemã, que a recusou, foi posteriormente para o Departamento de Estética, onde dois professores titulares examinaram o trabalho e concluíram que não preenchia os requisitos imprescindíveis.

IV. Aos 33 anos de idade renuncia a carreira acadêmica, ficou sabendo que o caminho da universidade estava fechado para ela, era brilhante demais para ser assimilado, teve sua carreira bloqueada em virtude de seu pensamento antiacadêmico. Durante os anos vinte, viu-se obrigado a se desdobrar em múltiplas atividades para garantir sua subsistência, escrevendo numerosos artigos e resenha de livros que saíram no suplemento de literatura da Frankfurter Zeitung, Internationale Revue de Amsterdam e na Die-Literarische Welt, tendo esta lhe possibilitado muitas viagens, inclusive a Moscou, onde passou dois meses. Até 1933, pode-se calcular em mais de trezentos os artigos publicados, além disso, fazia traduções para o alemão. Asja mulher de Bernhard Reich, jamais separou do marido para viver com Benjamin, era considerada por ele como "revolucionária russa de Riga, uma das mulheres mais marcantes que já conheci", teve indubitavelmente uma influência decisiva sobre sua vida, desde 1924 até 1930.

Benjamin viaja a Moscou em dezembro de 1926, permanecendo até fevereiro do ano seguinte, viagem realizada principalmente para vê-la, encontra-a doente e hospitalizada num sanatório, mas não nos é dado saber nada sobre a natureza de sua doença. Sua visita a Moscou foi também motivada pelo amor pela cidade, por seus espaços públicos, o amor pela Revolução Russa, misturado pelos desejos de conhecer mais de perto seus rumos antes de se decidir pela entrada no Partido Comunista Alemão, que não acontece após retornar de viagem. Durante sua estada escreveu o Diário de Moscou, cujo contexto original, pleno e detalhado, trata-se indiscutivelmente do documento mais pessoal, total e impiedosamente franco, fragmentos autônomos. Benjamin desejava estabelecer em Moscou uma relação produtiva com representantes da vida literária e artística, todos judeus, quase sem exceção, mas fracassou. O centro do diário é seu relacionamento com Asja (que seria forçada mais tarde, a passar muitos anos num campo de prisioneiros, durante os “expurgos” stalinistas), que se revela infinitamente problemático, sendo ela juntamente com Dora e Jula Cohn, sua terceira mulher a ter uma importância central na sua vida. Asja exercia sobre Walter Benjamin poderosa influência, a julgar pela dedicatória de seu livro Rua de mão única: “Esta rua chama-se rua Asja Lacis em homenagem àquela que, como engenheiro, abriu-a no autor, publicado em 1928”.

O Trabalho das Passagens, é um conjunto de ensaios e anotações que não chegou a ser concluído, nem foi até hoje totalmente publicado. Benjamin trabalhou pelo menos quatorze anos (1927-40), e sua preocupação com o processo de mudanças ocorridas na arte, especialmente na lírica encontra sua inspiração nas “passagens” existentes, já no século XIX em Paris. Seja pela sua montagem dos vários fragmentos, seja pela ênfase dada ao choque e à relação da arte com a vida social. Nesse livro, a atualidade artística e política são determinadas pelo ensaio sobre A Obra de Arte na época de sua reprodutibilidade técnica, onde Benjamin analisa a “perda da aura”, ao afirmar que a reprodução técnica, o aqui e o agora, característico da obra de arte desapareceram ou no mínimo, se desvalorizam, destruindo-se assim o que ele denominou de aura. Em detrimento de sua dimensão esotérica, vanguardista e materialista, a partir dos anos 30, obras como O Narrador, os ensaios sobre Baudelaire, Kafka e Proust, são consagrados a esta transformação da função da arte e suas conseqüências estéticas e ontológicas: - a perda da aura, o fim da narratividade, o abalo da tradição, todos esses fenômenos abundantemente comentados por ele. A modernidade tem as suas paixões particulares, e Baudelaire na sua teoria do moderno, indicava como o suicídio, a paixão particular da vida moderna. Segundo Walter Benjamin no ensaio Paris do Segundo Império, diz que a modernidade deve estar sob o signo do suicídio, que sela um querer heróico que não faz concessões à atitude que lhe é hostil. Tal suicídio não é desistência, mas heróica paixão. É a conquista da modernidade no âmbito das paixões.

Em 1930 se oficializou seu divórcio com Dora Sophie (1890-1964), dois anos depois passou o primeiro período do ano na ilha de Ibiza, onde pensou em se suicidar, escrevendo inclusive cartas de despedida aos amigos e redigindo o testamento que nomeava Schlem como responsável por seu espólio, dando direitos de herança ao filho Stephan (1919-72), na época com quatorze anos de idade. Com os nazistas no poder, Hitler é feito chanceler do Raich e após incêndio do Reichstag por eles, uma onda de repressão se seguem sobre a oposição de esquerda, são presos mais de dez mil comunistas e social democratas. Com a ascensão do nazismo, Adorno perdeu o direito de lecionar na Alemanha e no ano seguinte transferiu-se para a Inglaterra, iniciando um exílio que se prolongaria por quinze anos. Benjamin que trabalhava regularmente para diversas revistas e para a rádio, com o poder crescente do partido nazista, fez com que meios de comunicação de massa renunciassem a seus colaboradores de esquerda ou de origem judaica, contando na época somente com uma promessa de trabalhar no Instituto.

Em 1934 através de Asja e de seu amigo, Benjamin estava providenciando sua transferência para a União Soviética, mas neste mesmo ano, o Instituto, passou a lhe dar as condições mínimas de sobrevivência, desistindo dos planos, porque necessitava da Biblioteca Nacional de Paris, para realizar suas pesquisas. Como bolsista exilado na França, recebia normalmente ajuda financeira, mesmo quando solicitava suplementação por ocasião da grave crise financeira de 1936, que desvalorizou o franco. Às vezes para economizar alguns francos, passava algumas semanas na pequena Ilha espanhola, Ibiza ou em San Remo, onde sua ex-mulher Sophia Pollak tinha uma pensão, ou ainda com Brecht na Dinamarca. A instabilidade material e domiciliar juntamente com os problemas de saúde, que só vieram a se agravar, vivia Benjamin como jornalista e ensaísta.

V. Um dos contratos intelectuais mais importantes para a formação do pensamento de Walter Benjamin, foi à longa amizade (1915-40) de Gerhard Scholem, historiador da mística judaica: “Antes de conhecer Benjamin pessoalmente, vi-o pela primeira vez no outono de 1913, num salão em cima do café Tiergarten, em Berlim. Era um encontro entre um grupo da juventude sionista, ao qual eu pertencia e que, sob o nome de Jovem Judá (Jung-Juda), fazia Propaganda de suas idéias entre os alunos das classes mais adiantadas dos ginásios e de outras instituições afins em Berlim, e o Movimento da Juventude (Jugendbewegung), que atuava nos mesmos círculos e, sob a influência de Gustav Wynekerr, se reunia no Fórum de Debates da Juventude (Sprechsaal der Jugend)”. Benjamin era um homem muito paciente, Asja sua namorada, conta que quando tinha com ele (Scholem) discussões profundas e falava coisas que o magoavam, Benjamin se limitava a balançar a cabeça ligeiramente, de um lado para o outro, em sinal de discreta discordância.

A dialética para Benjamin só pode se fazer como uma fotografia, que fixe a imagem e o lugar das coisas arrastadas pelo turbilhão, só é possível no estado de dispersão e sonho próprio ao homem da metrópole, e esta dialética da distração inscreve o marxismo diretamente na sensibilidade e no pensamento moderno. Para Benjamin todo o paradoxo da modernidade, reside em que a humanidade perdeu parte de sua experiência acumulada, embora precisamente na geração que teve com a guerra uma das experiências mais atrozes da história, é para ele uma espécie de nova barbárie, que arrebenta todas as formas tradicionais de existência e interação. A crise da cultura é própria aos tempos modernos, uma temática particularmente presente em toda a reflexão dos anos 20/30, sendo o capitalismo o responsável pelo grau zero da cultura, com sua destruição sistemática das tradições. Segundo Benjamin, a arte e o pensamento modernos levariam ao extremo este impulso desagregador, estas manifestações bárbaras como pulsões de morte. A teoria da arte moderna de Benjamin é uma teoria da crise da cultura, a tempestade que arrasta inapelavelmente os indivíduos, é a modernidade.

Em Rua de mão única, a história é portanto para ele uma catástrofe que se abate sobre o homem moderno. É o seu caminhar, estonteado para a morte, a sua decadência, e a fascinação da decadência, do horror, é comum a toda a cultura moderna, e muitos dos pensadores contemporâneos levariam às últimas conseqüências, fariam dela um caminho sem retorno. Publicado em 1928, este intrigante livro que a crítica teve grande dificuldade de classificar, e muitos preferiam se calar, é uma miscelânea que reúne considerações políticas e filosóficas, idéias estéticas e literárias, notas de viagem, reflexão sobre o amor, relatos de sonhos, etc. Este trabalho representa a virada de Benjamin para o marxismo, e esta impregnada de elementos surrealistas.

Mas na tentativa de fazer da eliminação do sujeito a salvação dialética do homem, Benjamin não hesitaria em segui-lo nas profundezas. Conforme Adorno, “Benjamin não luta contra o subjetivismo supostamente inchado, mas contra o próprio conceito de subjetivo. O sujeito se dissipa entre os pólos de sua filosofia. Mito e reconciliação... Por isso a filosofia de Benjamin suscita tanto terror quanto promete felicidade”. Tanto as obras de Ernst Bloch quanto à de Walter Benjamin, constituem portanto uma verdadeira teoria da inviabilidade da representação na modernidade, da necessária interrupção da dialética, da sua realização apenas na diversão, na irracionalidade e na destruição. Este itinerário o levaria então junto com seu tempo, ao âmago da desordem espiritual e pulsional e esta sedução pela barbárie traça portanto o destino do marxismo moderno, que não tinha lugar entre o stalinismo e o nazismo. Daí suas obras terem-se centrado na temática da aparição dos objetos como obsolescência, detritos, herança de um mundo em declínio. De qualquer maneira, torna-se cada vez mais evidente que é impossível compreender os caminhos da sociedade e cultura modernas se as análises profundas que Benjamin, fez de suas estruturas e de seus processos, sobre os temas do homem do século XX.

VI. A vida problemática e atormentada desse gênio, que chegou a ser um dos maiores intelectuais do século, era na realidade, possuidor de vários pensamentos. Existe o Benjamin marxista melancólico, que sob a influência de Brecht recusa toda cumplicidade com a cultura burguesa, como existe o Benjamin místico, que sob a influência de Scholem que sustenta somente a teologia pode transformar a vida. Outras das faces do pensador judeu alemão, é que aplaude o declínio da aura e o que se sustenta com as conseqüências de um mundo sem aura, o que prega o advento de uma barbárie purificadora e o que entra em pânico com a barbárie absoluta do fascismo, o que atribui um valor revolucionário à perda da experiência. Todas essas atitudes coexistiram harmoniosamente na obra benjaminiana.

Berlim foi metrópole européia moderna dos anos 20/30, coloca-se aí o centro da vida artística e política, com suas ruas de comércio, cafés e cabarés. Berlim transmite aos seus habitantes uma febre por prazeres, dos divertimentos mais escabrosos, uma sede de aventura e distrações que se intensificariam ainda mais, nesses últimos anos, tentando por todos os meios fugir da crise. Estava a Alemanha mergulhada na crise econômica e na inflação, e a modernidade seria a própria aventura da cultura ocidental, que no esteio do romantismo alemão, consistiria numa tentativa do espírito de reconciliar-se com a vida, gozar as paixões. O fascismo alemão, seria a resposta confusa da pequena burguesia a esta crise de valores, daria abrigo e respaldo a estes impulsos descontrolados. Os trabalhos sobre As Passagens de Paris, sua obra-prima póstuma, consagrada à pré-história da modernidade, que seu racionalismo assume sua forma mais alta e ao mesmo tempo mais audaciosa, onde vamos encontrar a defesa mais intransigente dos direitos da razão. Portanto, o mais original nas contribuições do pensamento benjaminiano à crítica moderna segundo José Guilherme Merquior (1941-1991), consiste no aprofundamento da vinculação entre o nível descrito (a análise estilística) e o conteúdo das obras de arte reflete a luta contra a desumanização e seus aspectos essencialmente históricos, influencia certos limites da condição humana, que acompanha o homem em todas fases do seu caminho histórico, desde que o mesmo se reconheça como tal.

VII. A 23 de agosto de 1939 é firmado o pacto de não agressão entre Stalin e Hitler, dando início a Segunda Guerra Mundial, agravando-se a situação dos exilados alemães na França, que mudou radicalmente, pois de refugiados passaram a suspeitos. No dia seguinte ao trabalho, todos aqueles com idade de 16 a 50 anos de idade e do sexo masculino tiveram que se apresentar no Stade de Colombes, onde permaneceram vários dias sob a guarda da polícia, para em seguida serem enviados a diversos campos de refugiados espalhados pelo interior do país. Bastante doente, Benjamin tentou organizar uma revista literária feita pelos prisioneiros, para mostrar aos franceses a qualidade de seu nível intelectual, chegou até a dar um curso de filosofia, mas felizmente em fins de novembro fora liberado, graças aos esforços dos amigos franceses, particularmente Adrienne Monnier e Jules Romain. De retorno à Paris escreveu as teses Sobre o Conceito de História, sob o impacto do tratado de não-agressão. Nesses últimos escritos, Benjamin critica duas maneiras aparentemente opostas de escrever a história. Podemos observar quanto ao método do historiador “materialista”, deve-se a estética proustiana, que influenciou sobre seu tradutor (Benjamin), é de tal ordem que se viu obrigado durante algum tempo, a renunciar à sua leitura para não cair em “uma dependência de drogado que impedia ... sua própria produção”. De acordo com Benjamin o historiador deve constituir uma experiência com o passado, capaz de identificar novos germes de uma outra história, capaz de levar em consideração os sofrimentos acumulados e de dar uma nova face às esperanças frustradas, de defender um outro conceito de tempo. Ou seja, o estudo do passado era um estudo presente e o estudo do presente significava o passado.

Após o aniquilamento da Polônia, a rendição da Holanda e posteriormente da Bélgica, a França foi invadida pelo exército alemão em menos de um mês, e a 14 de junho de 1940, as tropas nazistas entraram sem resistência em Paris, e levaram uma parte dos textos de Walter Benjamin para Berlim, especialmente os que se encontravam no apartamento de sua irmã, talvez a parte menos importante. Mas com a invasão de Berlim pelos soviéticos, esses textos foram recuperados e levados para Moscou e depois em 1957, doados à Alemanha Oriental. Antes de fugir de Paris, Benjamin entregou outros textos a Georges Bataille, que os escondeu na Biblioteca Nacional, e enviados depois para o Instituto então sediado em Nova York. Outros manuscritos foram preservados por sua mulher, além disso Benjamin tinha organizado um arquivo pessoal (manuscritos, cartas e documentos), mas sempre providenciava enviar cópias para o amigo Scholem, que residia em Jerusalém. Depois de sua morte, seus companheiros de viagem que o acompanhava na fuga, recolheu os documentos que ele guardava consigo, e fez com que chegasse a Adorno em 1942, outros manuscritos como as Teses sobre as Passagem, que pertenciam a Pierre Missac, foram também entregues a Adorno em 1947.

No dia 26 de setembro, depois de empreender uma viagem que durou um dia inteiro, caminhando pelas montanhas e que deve ter-se constituído numa tortura para alguém doente do coração como ele, no lado espanhol da fronteira entre a França e a Espanha, um funcionário da alfândega impediu a entrada de um grupo de intelectuais alemães que fugiam da Gestapo. Um desses intelectuais era Walter Benjamin, que possuía visto de urgência para os EUA, conseguido por Max Horkheimer e um de trânsito para a Espanha. Aos quarenta e oito anos de idade, estampava no rosto sinais de profunda melancolia, não resistiu a tensão psicológica, suicidou-se nas primeiras horas da manhã do dia seguinte, por temor de ser encarcerado, quando fica sabendo que lhe é impossível atravessar a fronteira franco-espanhola. Este gesto, fora pensado muitas vezes, pois em Marselha na véspera de sua partida para Port Bou (Catalunha), ele havia casualmente encontrado o escritor Arthur Koestles, que também fugia dos alemães, e partilhara com ele cinqüenta tabletes de morfina.

Em 1942, Adorno publica as teses Sobre o Conceito de História, num caderno do Instituto de Pesquisa Social e oito anos depois, aproveitando o décimo aniversário da morte do amigo, dedica um artigo que saiu na revista Neue Rundschau. A Europa Oriental, controlada pelos partidos comunistas, era desfavorável para a recuperação de sua obra, devido ao endurecimento da ortodoxia marxista-leninista, que repelia os altos teores de revisionismo do pensamento benjaminiano. Já na Europa Ocidental, capitalista, o preconceito anticomunista predominante, via com sensível mal-estar o marxismo de Benjamin. Somente a partir de 1955, quando a atmosfera da guerra-fria parecia conviver em paz, é que Gretel e Adorno publicam uma coletânea em dois volumes dos seus escritos, os Schriften e juntamente com Scholem uma seleção de cartas, fazendo ressurgir o pensamento benjaminiano. De posse desse farto material e outros recolhidos posteriormente, os discípulos de Theodor Adorno organizaram uma edição crítica da obra de Benjamin, reunida em seis volumes (1972-1982). Apesar de usar o nome do Instituto para impedir que fossem publicados alguns dos ensaios de Benjamin, (O Flaneur, A Modernidade, A Boêmia), Adorno torna-se grandemente responsável por 30 anos de morte dos textos que vieram à luz, somente a partir de 1967. Apesar de não ser considerada completa, pois seus organizadores não tiveram acesso ao Arquivo Benjamin existente na extinta Alemanha Oriental, excluindo os conflitos entre as divergências teóricas, mas de qualquer forma constitui a base filosófica indispensável ao estudo do pensamento benjaminiano.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Arnaldo Antúnel

Luis Estrela de Matos
Jornalista, ensaísta e escritor


No princípio eram as coisas. No meio também. E ao final do percurso, haverão de sê-las. E por quê? Porque nos antecedem, nos atravessam e serão o infinito depósito, necessário e inevitável, da experiência inútil da matéria. Que bom que seja assim. Arnaldo Antunes parece saber disso muito bem. Mas aí vieram os nomes. E as coisas ganharam nomes, não sem rebeldia, sem revolução. E o não familiar foi ganhando revestimento de familiar, de proximidade, de pertencimento... como se as coisas atendessem pelos nomes. Bem que tentamos. Aliás, estamos tentando desde o começo. Domesticar as coisas. O que realmente gosto em Arnaldo Antunes? Ele parece ter tentado devolver o não familiar, o estranho, o inóspito, ao próprio espaço da linguagem. Ou ainda melhor, nome e coisa numa aventura linguística (agora sem trema) sem igual. Aventura da poesia, aventura de um homem pré-babélico, quase uma infância da linguagem, como assegura Arnaldo relendo os lingüistas (agora com trema). Eis Antunes em seus vôos:

Por que o mar fica tão mar nessa escrita? Por que o lixo luxo lixo dos concretistas é tão material, abstratamente falando? Que onda é essa que invade nossos olhos ao lermos o poema e sentirmos o sal em sua mais pura materialidade? Não vejo música, juro que não consigo. Não vejo o letrista, vejo coisas se tocando. Vejo coisas nos falando, vejo coisas após a significância. As coisas devolvidas a elas mesmas. Quase um acerto de contas fenomenológico. Afinal, psicologizamos demais. Psicanalisamos em excesso. Antunes clama por um reinventar. É quase uma utopia, dirão os mais céticos. Que seja. A linguagem é a última de nossas utopias. Gosto que as coisas se revoltem.

É bom que as coisas não tenham paz. Afinal, a vida anda modorrenta demais. Ninguém aguenta mais a mesmice da vida, alcunhada, contemporânea. Arre!

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Dessertão

Henrique Dídimo
henriquedidimo@gmail.com
Poeta e Videomaker

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Retratos por la calle

Gustavo Pellizzon
pellizzon@yahoo.com.br
Fotógrafo

Augusto dos Anjos: poesia e ciência


Jorge Luiz Antonio
jlantonio@uol.com.br
Professor, pesquisador e escritor

Uma das coisas mais intrigantes e instigantes na poesia de Augusto dos Anjos é a sua permanência na memória das pessoas, apesar do vocabulário científico e rebuscado, do verso rimado e metrificado, da poesia de um outro tempo, enfim.

Um vocabulário não só científico, mas altamente filosófico, complexo na maioria das vezes, usando muita ordem indireta. Apesar do tom pessimista da maioria dos seus poemas, Augusto dos Anjos (1884-1914) permanece vivo na memória das pessoas, e isso pode ser comprovado, por exemplo, pela 40ª edição de sua obra completa pela editora Civilização Brasileira, em 1995, ou, também, pela obra completa publicada pela editora Nova Aguilar, em 1994, sob a organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno.

Mesmo para uma pessoa que faleceu aos trinta anos de idade, sua obra é bastante volumosa e de boa qualidade: 58 poemas publicados no livro Eu (1912), 46 sob a rubrica de "Outras Poesias", 39 em "Poemas Esquecidos", 62 em "Outros Poemas Esquecidos", perfazendo um total de 205 poemas.

Não tenho a intenção de fazer uma palestra erudita sobre o tema. Muitos autores já trataram disso. Nem é minha intenção repetir o conteúdo do livro Ciência, Arte e Metáfora na Poesia de Augusto dos Anjos, do qual sou autor. Para isso, eu convido os presentes a lerem o meu livro, pois certamente o discurso dele está mais adequado para uma leitura do que para uma palestra.

Agora, faz-se necessário explicar o tema: Augusto dos Anjos, poesia e ciência.

Há uma estreita ligação entre poesia e ciência? É possível fazer poesia, que é sentimento, com a ciência, que é o uso predominante da razão? É possível usar o conhecimento científico para fazer poesia?

A minha resposta é afirmativa: sim, é possível! Eu poderia explicar isso citando mais poetas, além do Augusto dos Anjos, e mais teóricos sobre o assunto, mas esta fala se tornaria um curso de pós-graduação em literatura, não só brasileira, mas também internacional. Eu poderia simplesmente lembrar a poesia de Georg Trakl, de Gottfried Benn ou de George Heym, alemães, que nasceram e viveram na mesma época de Augusto dos Anjos, e poderia me referir ao ensaio "A costela de prata de A. dos Anjos", de Anatol Rosenfeld (1985, p. 263-70). Mas esse caminho não é o melhor de todos.

Dois pontos me parecem importantes para abordar o tema a que me propus: mostrar um certo elo histórico na poesia de Augusto dos Anjos com a de alguns dos seus contemporâneos e apresentar aquilo que denomino de poesia-ciência.

Augusto dos Anjos viveu no período compreendido entre 1884 a 1914, no qual floresceu a poesia realista em suas várias facetas. De uma forma geral, a poesia parnasiana – representada por Olavo Bilac (1865-1918), Alberto de Oliveira (1857-1937), Raimundo Correa (1859-1911) e Vicente de Carvalho (1866-1924) – ocultou bastante um tipo de poesia que floresceu logo na terceira fase do Romantismo, com Castro Alves e Fagundes Varela, que ficou conhecida como poesia científica e teve dois grandes defensores: Sílvio Romero (1851-1944) e Martins Júnior (1860-1904), que buscavam "uma poesia científica", que aliasse o lirismo do poeta ao realismo de representação objetiva" (ABDALA Jr, 1985, p. 5).

O que motivava esses poetas era a Idéia Nova, tema presente em muitas das composições poéticas da época: "uma renovação cultural através da aplicação da metodologia científica em substituição ao espiritualismo romântico" (idem, p. 6).

Esse movimento é característico da década de 1870 e se concentrou em torno de estudantes de escolas jurídicas, em São Paulo e Olinda, bem como na Faculdade de Medicina da Bahia. Críticos literários, como Sílvio Romero, apontam duas expressões dessas ebulições: a "Academia Francesa" do Ceará, de 1875 a 1879, e a "Escola do Recife", em torno da Faculdade de Direito do Recife, capitaneada por Sílvio Romero e Tobias Barreto em três fases: a literária e poética, da década de 1860, a crítico-filosófica de 1870-1877-78, e a jurídica de 1878 em diante.

Augusto dos Anjos é uma espécie de um continuador dessa poesia científica e pode ser considerado o seu expoente máximo. É claro que outras qualidades podem ser atribuídas à sua poesia inovadora, precursora, em muitos aspectos, da poesia modernista que começou a surgir dez anos após a publicação do único livro do poeta, o "Eu" (1912).

Outro aspecto a que me propus desenvolver nesta fala foi o da poesia-ciência. Refiro-me à linguagem poética com base nos conceitos científicos de sua época.

Alexei Bueno, organizador da obra completa de Augusto dos Anjos para a Editora Nova Aguilar, do Rio de Janeiro, afirmou:

“Uma das bases primordiais de sua visão do mundo e, por conseguinte, de sua obra, o seu propalado cientificismo, caracteriza bem o indivíduo educado nos últimos anos do século XIX, o século por excelência do ufanismo científico, da euforia do conhecimento e da ilusão do progresso ilimitado, criador de uma relativa onipotência do homem sobre a matéria, crenças cruelmente frustradas pelo advento bárbaro da Primeira Guerra Mundial, no ano mesmo da morte do nosso poeta." (1995, p. 21)


Além do aspecto geral apontado por Bueno, é importante enfatizar o uso de temas que oscilam entre científicos, filosóficos e poéticos, mostrando um gosto por um vocabulário erudito, uma certa preferência por um vocabulário incomum e científico, o que significava, na época, uma boa cultura.

Quase toda a poesia de Augusto dos Anjos aborda a relação vida-morte pelo seu aspecto mais dramático e aparentemente mais trágico, para expressar um espiritualismo profundo.

Ao lado desse aspecto, vale transcrever um depoimento de Órris Soares, que o conheceu desde 1900, que nos ajuda a entender a composição da poesia de Augusto dos Anjos e lança luzes sobre as razões da sua grande aceitação:

“De certa feita bati-lhe às portas, na Rua Nova, onde costumava hospedar-se. Peguei-o a passear, gesticulando e monologando, de canto a canto da sala. Laborava, e tão enterrado nas cogitações, que só minutos após deu acordo de minha presença. Foi-lhe sempre este o processo da criação. Toda arquitetura e pintura dos versos as fazia mentalmente, só as transmitindo ao papel quando estavam integrais, e não raro começava os sonetos pelo último terceto. Sem nada pedir-lhe, recitou-me. Recorda-me, foram uns versos sobre o carnaval, que o batuque nas ruas anunciava próximo. Declamando, sua voz ganhava timbre especial, tornava-se metálica, tinindo e retinindo as sílabas. Havia menos transfiguração na sua pessoa. Ninguém diria melhor quase sem gesto. A voz era tudo: possuía paixão, ternura, complacência, enternecimento, poder descritivo, movimento, cor, forma.” (SOARES, 1995, p. 32)


Começar o soneto pelo último terceto é preparar o desfecho e a chave de ouro. Além disso, construir o poema oral e mentalmente, antes de escrevê-lo é um trabalho poético com a linguagem, para que a sonoridade dos versos seja realmente sentida pelo leitor e/ou pelo ouvinte.

Agora, faz-se importante apresentar um poema para iniciar um comentário sobre a poesia-ciência:

A LÁGRIMA


- Faça-me o obséquio de trazer reunidos
Clorureto de sódio, água e albumina ...
Ah! Basta isto, porque isto é que origina
A lágrima de todos os vencidos!


- A farmacologia e a medicina
Com a relatividade dos sentidos
Desconhecem os mil desconhecidos
Segredos dessa secreção divina.


- O farmacêutico me obtemperou. -
Vem-me então à lembrança o pai Ioiô
Na ânsia psíquica da última eficácia!
E logo a lágrima em meus olhos cai.
Ah! Vale mais lembrar-me eu de meu Pai
Do que todas as drogas da farmácia!
(ANJOS, 1995, p. 270)

O soneto acima nos ajuda a entender o que denomino de poesia-ciência. Augusto dos Anjos parte de uma fala do farmacêutico e faz dela um verso. Do ponto de vista do farmacêutico, a lágrima é composta de clorureto de sódio (sal), água e albumina.

"Lágrima" tem no três primeiros versos o seu significado referencial, científico. Somente o último verso – A lágrima de todos os vencidos!" – é que o sentido se transforma, a partir de "de todos os vencidos".

A segunda estrofe é um diálogo entre ciência e sentimento, razão e emoção. O conhecido e o desconhecido: "a relatividade dos sentidos" da farmacologia e da medicina e os "segredos dessa secreção divina". Aqui também ocorre uma mudança de sentido em "secreção", quando o poeta inclui o adjetivo "divina".

Terminada a fala do farmacêutico, o eu-poético estabelece um outro contraste: "Vem-me então a lembrança o pai Ioiô / Na ânsia psíquica da última eficácia ...". A antítese morte-vida passa do plano científico, material, para o psicológico, o das lembranças.

O resultado é significativo como efeito de linguagem poética: "E logo a lágrima em meus olhos cai". Volta à poesia, o sentimento, em contraste com o discurso científico do personagem farmacêutico.

O conflito poesia e ciência, para o eu-poético, se resolve quase num desabafo: "Ah! Vale mais lembrar-me eu de meu Pai / Do que todas as drogas da farmácia!". Persiste e permanece a poesia, mesmo que ela seja enfocada sob o ponto de vista científico, como é o caso deste soneto.

Semelhante análise pode ser feita em

A IDÉIA

De onde ela vem? De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica ...

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!
(ANJOS, 1995, p. 82)

Um poeta de outra época ou formação abordaria o tema da idéia de uma forma mais emocionante, usaria um palavreado mais sonoro e mais "poético", ou seja, dentro dos padrões poéticos de sua época, por exemplo. Para o poeta paraibano, é da matéria que sai uma energia, o espírito, e é nela, numa abordagem científica para o conhecimento de sua época, que isso se expressa: "matéria bruta", "feixe de moléculas nervosas", "encéfalo absconso", "cordas da laringe", "força centrípeta", "molambo da língua paralítica".

É claro que não é somente uma substituição de palavras e conceitos de um universo poético para um universo científico. Há uma elaboração estética de linguagem e de sonoridade.

Um terceiro exemplo a ser comentado nesta fala é

PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância ...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – esse operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra.
(idem, p. 82)

Mais uma vez, é a ciência o ponto de partida para a reflexão sobre a existência e é a matéria a primeira metáfora do ser humano. O ser humano (=eu) é formado (=filho) de carbono e amônia, mas, apesar de sua composição química, sofre com a sua ignorância (=monstro de escuridão), julga-se inferior ou mau (=monstro) e parece se regido pela Astrologia.

Na sua existência curta, sabe do seu início, ou seja, o nascimento, e tem consciência da sua morte e o encontro do seu corpo com o verme (=operário das ruínas).

Esse mesmo ser humano precisa encarar essa realidade (=frialdade orgânica da terra) e descobrir um conforto para a sua vida. É o conhecimento científico que lhe dá um discernimento espiritual, ao contrário do discurso de outros poetas, em que a referência ao mundo material se faz de forma indireta.

Mesmo não considerando um trabalho de linguagem na poesia de Augusto dos Anjos, que o aproxima dos modernistas pela agressividade dos termos e dos temas, pelas imagens inusitadas que as suas metáforas provocam, pela subversão inovadora dos temas aparentemente tão contraditórios, o homem da poesia-ciência cerca o seu discurso poético nos conhecimentos científicos de que dispunha para mostrar o espiritual por meio do material, mostrando uma imagem em ruínas de um palácio encantador que fazia parte do seu ideal de criador.

Dessa forma, eu concluiria esta fala com

ÚLTIMO CREDO

Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro – esse ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!

É o transcedentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!
Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade
decrescente

Com que a substância cósmica evolui ...
Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular eu que ontem fui!
(idem, p. 103)

A crença na ciência, na idéia generalizada que o conhecimento científico fornece, que são as leis científicas, se torna a crença do poeta paraibano. Mas essa crença, é claro, se realiza, para ele, na poesia, que é a sua maneira particular de dialogar com o mundo. E a sua esperança, além de se tornar um homem universal, é também a seguinte:

Dissolva, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!
(idem, p. 100)

Aí me parece que se confirma a sua poesia-ciência, o diálogo do poeta com o conhecimento científico de sua época, mais todos os problemas a que foi obrigado a enfrentar em sua vida curta. Restou-lhe a palavra, "agregado abstrato das saudades", e é ela que nos reúne hoje, nesta tentativa de entender e apreciar a poesia de Augusto dos Anjos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABDALA Júnior, Benjamin (Org.). Antologia de Poesia Brasileira: Realismo e Parnasianismo. São Paulo: Ática, 1985.

ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 40.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

______. Obra completa: volume único. Organização: Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995a.

ANTONIO, Jorge Luiz. O caos e a ordem na poesia de Augusto dos Anjos (1884-1914). Face, São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC SP, ed. especial, nº 4, 1999, p.69-83.

______. Ciência, arte e metáfora na poesia de Augusto dos Anjos. São Paulo: Navegar, 2004.

BUENO, Alexei. Augusto dos Anjos: origens de uma poética. In: ANJOS, Augusto dos. Augusto dos anjos: obra completa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 21-34.

CÂNDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1999.

COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

MIRANDA, Ana. A última quimera: romance. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

PAES, José Paulo; MOISÉS, Massaud. Pequeno dicionário de literatura brasileira. 2.ed. São Paulo: Cultrix, 1980.

ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1985.

SOARES, Órris. Elogio de Augusto dos Anjos. In: ANJOS, Augusto dos. Eu & Outras Poesias. 40.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p.29-46.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Monsieur Verdoux, o anticarlitos

Cláudio Feldman
Professor aposentado de Língua & Literatura e autor de 42 livros

Em 1946, numa entrevista para o “Times” londrino, Charles Chaplin afirmou que já não tinha mais nada a dizer sobre seu personagem Carlitos; pouco depois, com a estréia de “Monsieur Verdoux”, tal declaração foi comprovada.
Não devemos buscar nesta decisão de Chaplin o mero interesse estético de renovar-se, mas algo mais profundo, um sentido sociológico e até metafísico que dará a chave deste estranho filme.

Não é possível compreender M. Verdoux se o separarmos de Carlitos, pois Verdoux assinala que Carlitos não podia seguir adiante, que estava num beco sem saída e que era necessário acabar com ele. Recordemos que todas as películas de Carlitos se reduziam a uma série de fugas. Carlitos gastava seu tempo escapando de vigilantes, de mulheraças perversas, de patrões, enfim da sociedade inteira. Fugia pelos telhados, pelo labirinto urbano, pelos cais, pelos campos. Seu próprio andar ziguezagueante era um subterfúgio para não se encontrar com a realidade. Carlitos se chocava sempre com o mundo exterior, mas, ao invés de lutar para a modificação da realidade, se refugiava no domínio da fantasia onde podia encontrar a bondade, a alegria, a beleza. É possível reconhecer nele o personagem romântico e à margem da sociedade, com reminiscências de Rousseau, típico do século XIX. Pertencia a um mundo no qual já se preludiava o caos, mas de onde ainda era possível fugir. Este tempo nos parece tão distante que sentimos sempre uma vaga nostalgia ao rever um filme mudo de Carlitos.

Monsieur Verdoux, ao contrário, é um personagem realista, típico do século XX, um século no qual já não há escapatória possível. O maior recurso de fuga de Carlitos era esse caminho interminável e deserto pelo qual se safava ao final de todas as suas películas. Esse caminho era como uma esperança que ficava em suspenso porque nunca se sabia aonde ia parar. Verdoux também termina de costas, e sua figura diminui gradualmente até perder-se, quando na tela aparece a palavra “fim”; porém em Monsieur Verdoux não fica nenhuma esperança, pois já sabemos onde leva o caminho: à morte.

Carlitos mudou muito desde as comédias sentimentais de sua primeira época até este filme de humor negro, sádico e amargo; contudo não foi só o ponto de vista deste criador que modificou: também cambiou o próprio mundo, no qual sua inspiração se insere.

Monsieur Verdoux já não pode fugir: deve afrontar a realidade e lutar com ela se quiser sobreviver. Deve sintonizar-se com um mundo que perdeu toda noção de justiça. Trata de tirar vantagens desta desmoralização e, com o auxílio da astuciosa inteligência,fazer do mal uma indústria lucrativa.É um adaptado social de categoria,enquanto Carlitos era um inadaptado. Verdoux foi, durante anos, um humilde empregado de banco que trabalhou honradamente (com o dinheiro alheio) para manter sua esposa aleijada, até que o puseram na rua. Deste Carlitos bondoso e doce se fala no filme, mas não aparece: está morto e transfigurado no cínico Verdoux, sua antítese. Carlitos se cansou de ser o “clown”, o “ecce homo” que provocava o riso do mundo. Arroja seu traje puído, seu chapéu, seus sapatões, sua bengala, todos característicos, e se disfarça com a mesma indumentária de seus inimigos, os empresários do circo: uma sobrecasaca impecável, uma ampla gravata de seda cinza, um chapéu de feltro e um bastão com empunhadura de ouro; e assim, irreconhecível sob roupa tão inusitada, se dispõe a vingar-se de todos os que fizeram impossível a vida do poético vagabundo; lutará com seus inimigos em seu próprio terreno -o mal- e com as mesmas armas; empregará a mesma lógica do honrado burguês do século XX, todavia, levando-a até seus extremos, a reduzirá a um puro absurdo: os negócios são os negócios e a conseqüência natural dos negócios é o crime, como a conseqüência natural da diplomacia é a guerra. Tal é a sabedoria de um mundo em que todos se destroçam mutuamente com amabilidade e sem sair do “legal”.

M. Verdoux é a consciência que ilumina o pesadelo noturno e ambicioso desse mundo inconsciente; esse mundo se horroriza e envergonha do barba azul porque é tão culpado quanto ele; porém o ignora e não quer responsabilizar-se por seus próprios crimes -os infinitos crimes que se cometem nas fábricas, nos cárceres, nos campos de prisioneiros, nas câmaras letais- dos quais os assassinatos de Verdoux são apenas uma cópia reduzida e caseira. Verdoux faz o mesmo: rouba e mata, contudo como age em pequena escala termina por destruir-se. Sua condenação não é em nenhum momento o castigo do mal e o triunfo do bem. Em um mundo organizado de tal modo que não se delimita o justo do injusto não há inocentes nem culpados definitivos, senão vítimas e algozes que, alternadamente, podem mudar de lugar, e o que se senta no júri pode passar ao banco dos acusados e vice-versa; por isso M. Verdoux tem o atrevimento de despedir-se do tribunal que o condena, dizendo: “Logo nos encontraremos.”

Não podia ter-se encontrado um tipo humano mais significativo do século XX do que este bondoso assassino que cultiva rosas, descansa de suas macabras aventuras na paz de um lar burguês e repreende seu filho quando o vê maltratar o gato. Com a maior tranqüilidade e sem nenhum remordimento de consciência passa de um ambiente a outro, do amável jardim à selva onde os animais se entredevoram.

M. Verdoux representa o contrário de Carlitos. É o triunfador, o invejado, o temido, mas à custa de renunciar ao amor, à ternura e de viver sempre alerta. Seu poderio é fictício. No fundo, não é mais do que um homem esgotado que só aspira a descansar e que termina se entregando por vontade própria, já que não o perseguem como a Carlitos. Confessa sinceramente seus crimes, os aceita e os reivindica, coerente consigo mesmo até o final. Não tem esse vago complexo de culpa que tinha Carlitos. Porque Carlitos não queria modificar o mundo, só jogar. Possíveis significações políticas e sociais aconteciam quando o vagabundo dava uma bengalada num representante da lei ou jogava tortas de creme no rosto de algum burguês e matrona, porém estes gestos não passavam de pequenas travessuras, carentes de convicção; uma forma de satisfação mágica e simbólica, não real. Em “O Grande Ditador” e, melhor ainda, em “Monsieur Verdoux” (menos anedótico e mais simbólico que aquele), Carlitos, metamorfoseado, enfrenta por fim o mundo e fustiga a sociedade com a crueza ascética de um moralista da linhagem dos Julian Sorel, Raskolnikov, Zaratustra.

Tanto pelo que se disse (recorde-se a defesa em juízo e as entrevistas com o sacerdote e os jornalistas) como pelo que se sugere (os filmes de Chaplin exigem grande colaboração do público), as alegorias e mensagens deste cineasta alcançam sua maior significação e claridade em “Monsieur Verdoux”; obra-prima, bela e terrível, é a consumação definitiva do Mito Chapliniano.

Anexo:
Trailer de Monsieur Verdoux

quinta-feira, 16 de abril de 2009

A arte que cura - os últimos meses de vida de Glauber Rocha


Antonio Júnior
antonio_junior2@yahoo.com
Jornalista e Escritor


I PARTE

Aos que nunca viram nada de Glauber Rocha há que adverti-los duas coisas: por uma parte, que ninguém pode aspirar a compreender o cinema brasileiro se não viu duas ou três obras deste cineasta extraordinário, injustamente etiquetado de “difícil”, “incompreensível”. E, por outro lado, que talvez seja um dos últimos expoentes de uma maneira de filmar personalíssima, irreverente, quiçá “difícil” – note a contradição -, chama esta ainda encontrada em um Jean-Luc Godard ou um Raoul Ruiz. “O problema do espectador na obra de arte é um problema que eu não considero, digo-lhe isto com a maior sinceridade. Porque eu acredito que a obra de arte é um produto da loucura, no sentido em que fala o Fernando Pessoa, que fala o Erasmo, quer dizer, a loucura como a lucidez, a libertação do inconsciente. É por isso que eu não me considero um cineasta profissional, porque se fosse teria que atuar segundo o ritual da indústria cinematográfica. Considero-me um amador, como o Buñuel, alguém que ama o cinema”, declarou pouco antes de morrer, num dos seus arroubos verbais de poderosa vitalidade.

O MUNDO AOS SEUS PÉS

De todos os cineastas brasileiros surgidos no Cinema Novo – Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirzman, Carlos Diegues, Roberto Santos -, possivelmente o mais influente foi o baiano Glauber de Andrade Rocha (1939-1981), especialmente depois da aparição do seu segundo longa-metragem, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), filmado no mesmo ano do Golpe Militar e considerado um dos dez melhores filmes de todos os tempos pela revista francesa Cahiers du Cinema. Ele eclipsou a todos com sua rutilante celebridade, poesia agreste e personalidade contraditória, ganhando visibilidade internacional com sua aura desordenada e trágica, e abrindo mais recentemente caminho a novos realizadores do cinema brasileiro, como Walter Salles (“Abril Despedaçado”), Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”) ou Karim Ainouz (“Madame Satã”). Em poucos anos filma vários curtas - “Amazonas, Amazonas” (1965), “Maranhão 66”(1966) -, publica livros, viaja por inúmeros países, e realiza duas obras fundamentais, “Terra em Transe” (1967) – classificado de “ópera metralhadora” por Jean-Louis Bory, do Le Nouvel Observateur - e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (de 1969, conhecida na Europa como “António das Mortes”), apresentadas no Festival de Cannes, recebendo com a segunda o prêmio de melhor diretor. Foi o seu auge, e parecia ter o mundo aos seus pés. Na década seguinte, entretanto, sua estrela decaiu como consequência da emergência e triunfo do cinema comercial.

A ESTÉTICA DO CAOS

A personalidade particularmente dotada de Glauber para perceber o cinema - ou seja, o próprio mundo -, em toda sua complexidade, se diluiu numa estética alarmante e desconcertante. Radicalizou a idéia de narrar o caos, sustentando que só o caótico sustenta a obra de arte, em um efeito artístico ambíguo que reflete esse mesmo caos iluminado ao fim por uma poética misteriosa, quase redentora. Exilado voluntariamente do Brasil, filma na África (“O Leão de 7 Cabeças”, 1969), Espanha (“Cabezas Cortadas”, 1970), Cuba (“História do Brasil”, 1972) e Itália (“Claro”, 1975). Ele que havia bebido em fontes diversas (Eisenstein, Bergman, Fellini, Visconti) para compor sua lógica, tentando decifrar o Brasil ao filmar o seu avesso, mergulhava de cabeça numa utopia cinematográfica estranha e marcada por contradições, ideológica, política, espiritual e mitológica. “Criticar – teorizar – praticar um cinema revolucionário, histórico – dialéctico e poético (o homem livre de seus fantasmas burgueses) é a única saída”, escreveu em 1975.

A QUEDA

Recusando uma carreira internacional convencional, passa por graves dificuldades financeiras, é ridicularizado no Brasil por seus próprios colegas, escreve para o irreverente semanário “O Pasquim” – num idioma particular com y e k no lugar de i e c – e para vários outros jornais, provocando polêmicas e reações furiosas. Em 1979, no programa “Abertura”, da TV Tupi, na época a mais popular do Brasil, faz entrevistas com grande repercussão. Torna-se uma espécie de profeta, de intelectual que perdeu a razão, e mesquinhamente contam-se casos reais dele caminhando na praia de Ipanema, enrolado num cobertor como mendigo, falando sozinho; conversando com as paredes do hotel, em Santiago do Chile, com um microfone na mão: “Aqui é Glauber Rocha, eu sei que a Cia está gravando, e a KGB também”; das brigas irreconciliáveis com diversos amigos. Em 1979, num último esforço para sair das trevas, vende seu único bem, uma casa, para filmar “A Idade da Terra” em Salvador, Brasília e Rio de Janeiro, com um elenco de estrelas (Norma Bengell, Tarcísio Meira, Antonio Pitanga, Danuza Leão). “Esse filme materializa os símbolos mais representativos do Terceiro Mundo, ou seja: o imperialismo, as forças negras, os índios massacrados, o catolicismo popular, o militarismo revolucionário, o terrorismo urbano, a prostituição da alta burguesia, a rebelião das mulheres, as prostitutas que se transformam em santas, das santas em revolucionárias. Tudo isso está no filme dentro do grande cenário da História do Brasil”, diz no seu lançamento. Quebrando com o cinema teatral e ficcional, numa desintregação da sequência narrativa sem a perda do discurso, o filme é um fracasso de público e é vaiado no Festival de Veneza. Glauber, alucinado, magoado, faz passeata, ofende o júri, ataca de reacionário ao vencedor, o francês Eric Rohmer, prometendo nunca mais voltar ao seu país e sempre defendendo a sua obra: “Busco um outro cinema. Um filme que o espectador deverá assistir como se estivesse numa cama, numa festa, numa greve ou numa revolução. É um novo cinema, antiliterário e metateatral, que será gozado, e não visto e ouvido”.

No final de 1980, o maior cineasta brasileiro do século XX, se encontra em Roma, hospedando-se com Luchino Visconti, e por fim, Paris, acompanhando uma retrospectiva de seus filmes. Sua câmara havia revelado a essência de um país, fugindo da beleza defunta tipo cartão-postal, e pousando na loucura e no desespero, na crueza e nas mazelas sociais. Mesmo assim, aos 41 anos, tinha todas as portas fechadas e vivia numa terrível penúria econômica. Havia visitado Portugal pela primeira vez em 1962. Tentando colocar a cabeça em ordem, resolve viver em Sintra, “o lugar mais bonito do mundo”, como dizia. Leva a esposa colombiana, Paula Gaitán, fotógrafa e atriz, e os dois filhos de menos de dois anos de idade, Ava Patria Yndia Yracema Gaitán Rocha e Erik Arouak. Se define como sebastianista e apocalíptico, e é recebido de braços abertos por dois cineastas, Manuel Carvalheiro e José Fonseca e Costa. É um homem amargurado, decepcionado, com problemas políticos e saúde frágil. Se sentia cansado, doente, visitara médicos em Paris, porém os mais íntimos conheciam a antiga mania de doença do diretor, e nunca levaram a sério sua hipocondria.

VIVENDO EM SINTRA

Em Sintra desde 1973, num grande casarão acostumado a hospedar intelectuais e artistas de todo o mundo, o engenheiro de som português Carlos Pinto (São Pedro do Estoril, 1950) recebe um telefonema do cineasta brasileiro, pedindo o seu apoio, “talvez pudesse ficar em sua casa por uns tempos”. “Venha quando quiser”, responde Pinto. Profissional dos mais requisitados, com currículo admirável, Carlos Pinto trabalhava basicamente no cinema francês, filmando muito fora de casa, e ainda não conhecia pessoalmente o autor de “Barravento” (1960). Na época da chegada de Glauber, em janeiro de 1981, filma em África, “Música em Moçambique”, de Fonseca e Costa. Terminada as filmagens, encontra Glauber hospedado no Hotel Central, ocupando todo o primeiro andar de um hotel praticamente vazio. Sua esposa, Paula, de família burguesa, não admitia viver numa casa com estranhos, e o casarão de Pinto, além do próprio, era bastante concorrido, habitado por um psicólogo e uma suiça professora de línguas. Só que a família Rocha não tinha condições financeiras para viver num hotel. A solução foi procurar uma casa para alugar. E encontraram a antiga residência de Ferreira de Castro, ao lado da casa de Pinto, e também um dos escritores favoritos de Glauber, que lera boa parte de sua obra e havia feito um documentário em 1974, desaparecido. “Aqui é bonito. Escrevo diante de uma panavisão sobre o Atlântico camoniano e sebastianista do alto de uma montanha antes habitada por Byron numa linda casa onde viveu Ferreira de Castro. As coisas vão bem, estou feliz no meu feudo à beira mar plantado vendo todos os dias naves partindo na construção do IV Império de Sebastião Ressuscitado...”, anotou no seu diário em 26 de abril de 1981. Eles viveram nesta casa durante três meses, depois mudaram para a Estalagem dos Lobos, perto de Montserrate, e terminaram na própria casa de Carlos Pinto, então já um dos melhores amigos e principal confidente de Glauber Rocha.

II PARTE

Quando este espírito independente, conhecido em todo o mundo por sua intransigência e temperamento apaixonado, chegou no Monte da Lua, era um inverno muito rigoroso. As névoas cobriam as ruelas, as montanhas e os jardins; chovia quase sempre. Sintra era conhecido como um reduto de artistas, de pensadores. Era muito mais forte a marca da passagem de Lord Byron, Hans Christian Anderson e William Beckford, entre outros. Importantes escritores, pintores, escultores, atores, músicos, pensadores ou jornalistas passavam por lá, permanecendo longas temporadas. Neste mesmo inverno Wim Wenders rodou parte de “O Estado das Coisas” na Praia Grande, e o chileno Raoul Rouiz e o moçambicano-brasileiro Ruy Guerra, um inimigo de Glauber, também filmavam nas redondezas. Glauber Rocha, sempre reservado, longe do mundo mundano da jet-set, finalizava “Revolução do Cinema Novo”, uma antologia de textos críticos produzidos entre 1958 e 1980, que seria publicado poucos dias antes de sua morte, e escrevia o roteiro para um próximo filme, “O Império de Napoleão”, planejado para um elenco encabeçado por Jack Nicholson e Jane Fonda, e que já tinha confirmado o nome do gênio Orson Welles, que não receberia cachê, apenas pedia hospedagem confortável e garrafas de uísque.

ROTINA INTELECTUAL & VISITAS IMPORTANTES

Diante da paisagem deslumbrante da vila de Sintra, que Eça de Queiroz já dizia que não há um só recanto que não seja um poema, Glauber redescobria o paraíso. “Me sinto reprojetado nas origens”, dizia. Abrindo os pacotes e malas que o acompanhavam em todas as viagens – cartas, roteiros, textos -, partia para a máquina de escrever, como se estivesse numa dessas terríveis batalhas. Muito disciplinado e rigoroso, acordava na mesma hora, tomava o café da manhã e escrevia até as 13 horas seus textos, roteiro e matérias para jornais. Ouvia Villa-Lobos, estava sempre lendo ou escrevendo, e não gostava muito de visitas, sendo praticamente arrastado por colegas para jantares ou eventos em Lisboa. Mesmo assim, recebia muita gente: cineastas brasileiros e portugueses, críticos de cinema, os escritores Jorge Amado e Zélia Gattai, o ator francês Patrick Bauchau, o produtor Luiz Carlos Barreto, o Presidente (do Brasil) Figueiredo e principalmente o autor de “A Casa dos Budas Ditosos”, João Ubaldo Ribeiro, seu grande amigo e companheiro desde a infância. Porém a maior parte do tempo estava sozinho, em casa. Vez ou outra, passeava pela praça do Castelo, caminhava de mãos dadas com os filhos, lia jornais no Café Paris. Parecia bem, tranquilo, ia almoçar nos restaurantes locais, tomava vinho tinto, fumava haxixe. Certa vez, encontrou casualmente uma turista da Bahia, poderosa Mãe-de-Santo, e emocionado convidou-a para almoçar. Tinha grande respeito pelo candomblé.

CRISES

A depressão também era uma constante no seu cotidiano. “Vim para morrer em Portugal”, disse a Pinto. O amigou procurou animá-lo, confortá-lo, ele era jovem, talentoso, as coisas iriam melhorar. “É o meu coração. Não está bem”, confessou. Se preocupava com os problemas financeiros permanentes, com a política e o cinema brasileiros, não conseguia esquecer a morte trágica da irmã, a fabulosa atriz Anecy Rocha (“A Lira do Delírio”), que caíra no poço de um elevador em 1977; se sentia incompreendido e não aceitava a proibição, pela própria família do retratado, do curta-metragem “Di Cavalcanti” (1976), premiado em Cannes. Também tinha saudades da mãe, Lúcia Mendes de Andrade Rocha, escrevendo sempre para ela, numa ligação profunda. O casamento também ia mal das pernas. A simpática Paula, uma loura de grande cabeleira, sofisticada e inteligente, muito mais jovem que ele, desejava voltar para o Brasil, e mesmo admirando o marido, não entendia seus enigmas. Bela e mimada, não se situava completamente na pele de mãe de família, e ainda mais passando dificuldades. Recebia ajuda dos pais ricos, não acreditava numa suposta enfermidade do companheiro e vivia implicando para que ele superasse suas angústias. Uma crise conjugal educada e silenciosa, ficando visível que algo não funcionava muito bem.

O INCÊNDIO DA CINEMATECA PORTUGUESA

A imprensa deu intensa cobertura a temporada de Glauber Rocha em Sintra, com fartas manchetes e longas entrevistas comuns a uma celebridade respeitada. O cineasta, em eterna preocupação com a preservação das cópias de seus filmes, ficou entusiasmado com o ciclo dos seus filmes anunciado pela Cinemateca Portuguesa, em abril de 1981. O catálogo foi editado, a mídia deu bastante destaque à mostra, e na primeira semana de exibição, durante a projeção de um filme do belga René Aiollo, a sala de projeções pegou fogo destruindo totalmente toda a obra de Glauber. Alucinado, viu como um sinal do fim; foi um golpe mortal. A queda foi instantânea. “A doença, a precariedade financeira e as incertezas me levam a pensar que vivo em Portugal meu segundo e último exílio. Foi o preço que paguei no Brasil pela liberdade artística”, disse. Em julho, Carlos Pinto filmava sob a direção de António Reis, em Trás-os-Montes, e ao voltar encontrou o amigo internado no Hospital de Sintra. Esteve três dias sendo tratado, suspeitavam de uma doença broncopulmonar, talvez uma tuberculose. Pinto se assustou com a sua figura esverdeada e abatida, olhos amarelados, e ao apertar a sua mão, ouviu dele: “Estou com uma angústia”. Transferido para o Hospital da CUF, em Lisboa, melhorou a olhos vistos. Lúcido, brincalhão, recebendo visitas, lendo jornais e vendo televisão, criticando as autoridades e políticos que apareciam: “Esses engravatados não me deixam em paz”. Ainda acamado, recebeu os primeiros exemplares de “Revolução do Cinema Novo”, o que o deixou muito contente. Parecia estar bem, como se tudo não passasse de uma elaborada encenação para ajudá-lo a renascer dos mortos. Paula Gaitán havia mudado com os filhos para o Hotel Tivoli, tirava fotos polaroid do companheiro e seus amigos, circulava por Lisboa com o cantor Fagner, e não parecia ter consciência da gravidade da enfermidade de Glauber. Ele próprio não sabia qual era o seu mal. Os médicos não entravam num acordo, contraditórios. Havia rumores não confirmados de um câncer. Carlos Pinto o visitava todos os dias. “Era um personagem adorável, e a nossa ligação muito profunda”, recorda. Na dia 20 de agosto, após uma série de exames rigorosos, Glauber disse que não gostaria de ficar sozinho naquela noite, pediu que Paula o fizesse companhia. Ela negou, não podia deixar os filhos sozinhos no hotel. “Então você fica, Pinto. E a Paula vai”, decidiu. O amigo disse que poderia ficar sem problemas, mas as enfermeiras não permitiram, pois o horário de visitas era rigoroso, restrito. Glauber estava bem, radiante, conversador como nos seus melhores dias, porém havia algo estranho no ar, uma energia muito forte que tomava todo o quarto. Na mesma noite, sozinho, ele entrou em coma.

MORTE NEBULOSA

No dia seguinte foi levado para o Brasil. Carlos Pinto e José Fonseca e Costa acompanharam o parceiro até o aeroporto, dentro do ambulância. O estado era crítico, Paula estava muito nervosa, e Glauber, mesmo todo entubado, tinha bom aspecto. Ficaram algum tempo à espera do avião. Então Glauber falou, algo incompreensível, sussurrante. O que ele queria dizer? Qual seria a sua mensagem final? Será que não desejava morrer no Brasil? No dia 22 de agosto de 1981, o gênio incompreendido, que lia Nietzsche e Schopenhauer aos 13 anos, morre, e é velado no Parque Lage, no Rio de Janeiro, cenário de “Terra em Transe”, em meio a grande comoção e exaltação. Poucos dias após partir para a Eternidade, seus filmes estariam sendo exibidos em mostras retrospectivas em vários países: Inglaterra (National Film Institute), Estados Unidos (American Film Institute) e França (Instituit Nacional d’estudes Cinematographiques). As causas da morte ainda hoje são nebulosas, fala-se inclusive de Aids. O mais provável é que foi contaminada ao fazer biópsia com equipamento não esterilizado. Segundo D. Lúcia, “Meu filho era famosíssimo e paupérrimo. Não morreu da vontade de Deus, morreu de uma doença chamada Brasil”. Já Glauber, dizia: “Prefiro ser um cadáver a um desses mortos-vivos que andam por aí”. Tinha 42 anos, ele que desde adolescente dizia que morreria aos 42 anos, o inverso de 24, idade em que morreu o poeta Castro Alves, que fazia aniversário no mesmo dia e um dos seus favoritos. Foi-se, carregado por sua mensagem exuberante, valente e lúcida. Se continuasse filmando possivelmente ainda estaria vivo. A arte seria sua cura. Mas não deixaram. Incomodava demais aos medíocres.


TODO O CINEMA DE GLAUBER ROCHA:

1957 – O Pátio (CM)
1959 – Cruz na Praça (CM, inacabado)
1960 – Barravento
1964 – Deus e o Diabo na Terra do Sol
1965 – Amazonas Amazonas (CM)
1966 – Maranhão 66 (CM)
1967 – Terra em Transe
1968-72 - O Câncer
1969 – O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro / António das Mortes
1969 – O Leão de Sete Cabeças
1970 – Cabezas Cortadas
1972-74 – História do Brasil
1975 – Claro
1976 – Di Cavalcanti (CM)
1979 – A Idade da Terra

Anexo: Trecho de Terra em Transe