quinta-feira, 19 de março de 2009

A mística do ceticismo


Anatole France dizia o elogio do Ceticismo como sendo a escola heróica da tolerância, da coragem, da virilidade moral de resistir, etc, etc. Esses mesmos valores estão na boca de todos os devotos religiosos. Qualquer religião, qualquer doutrina política e filosófica apregoa possuir os mesmos títulos que Anatole reivindicava como privativos de Moliére, Montaigne, Rabelais, Renan…

Lembro-me de um jogador de Bilboquet, fazendo o elogio do seu brinquedo. O Bilboquet, como sabem, consta de uma bola com um furo e um bastãozinho preso à esfera por um cordel. O jogo consiste em fazer a bola descrever no ar uma curva calculada de tal forma que o orifício coincida com a ponta do bastãozinho que fica na mão do jogador.

O amador de Bilboquet afirmava que para ser-se um bom jogador era indispensável possuir-se calma, domínio aos nervos, rapidez de olhar, previsão, decisão mental de raciocínio, ação imediata, aproveitamento fulminante das oportunidades, bom humor. Essas virtudes indispensáveis para um jogador de Bilboquet, são igualmente indispensáveis para um Chefe de Estado. Anatole France não perderia o bon mot. É condição essencial para a suprema direção de um país o saber-se jogar Bilboquet.

A reação anticética parte apenas de um princípio. O ceticismo mas também a imobilidade espiritual. Não há exemplo de heroísmo de um cético. Montaigne era governador de Bordeaux e abandonou seus jurisdicionados quando a peste apareceu. Renan não queria que a França se preparasse por vingar-se da humilhação alemã de Sedan. Voltaire ficou com Frederico da Prússia contra a França e desejava ir morar até na Rússia. Seu patriotismo, como o de muita gente, estava na relação das graças recebidas. Moliére, fixador de costumes, foi um respeitoso incensador de Luis XIV, seu protegido e comensal Rabelais…

Não é pelo malabarismo verbal, o brilho prestigioso da frase, a cultura in partibus que o cético nos aparece simpático. É porque nele existe o acomodamento de todas as idéias no algodão macio e plástico de uma dialética lustrosa e fofa. Não vamos admirar Anatole pelo ceticismo. Admiro-o apesar do ceticismo peguento e mole que o acompanhou na vida e explica a crise de popularidade.

Et c’est en nous quo’on trouxe, acceptant nobre coeur. De I’Amour sans scandale, et du plaisir sens per…

Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 06 de agosto de 1948

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