terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Tempo, plácido tempo!


Fernanda Coutinho
fmacout@terra.com.br
Professora de Teoria da Literatura da UFC

Da geografia lírica de Carlos Drummond de Andrade, dos tantos lugares que criou e recriou, é dos acanhados limites de uma cidadezinha qualquer, perdida num tempo antigo, que o escritor mineiro faz irradiar a luminosidade que nasce de seu dom de envolver em poesia as coisas singelas, inclusive o mais aparentemente banal cotidiano. “Presépio”, história situada em Contos de aprendiz, narra à primeira vista o dia-a-dia de Dasdores (“assim se chamavam as moças daquele tempo”). Dasdores, a que devia ter mãos e pensamento diligentes para alcançar todas as necessidades da casa. Ah! que vasto inventário de coisas a realizar, de desejos a satisfazer! “Cuidar dos irmãos, velar pelos doces de calda, pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos”. Se o conto cuidasse apenas de exibir o perfil de uma mulher de outrora, entidade quase anulada como sujeito de seus desejos, já valeria como excelente contraponto às práticas sociais do mundo feminino em nossa contemporaneidade.

Aliás, nem seria bem esse o caso, pois Dasdores, em meio a toda a azáfama de sua existência, reivindica o seu tempo-paixão, sugestivamente denominado Abelardo. “Quem pode vigiar sonhos de moça?”, alerta a voz do narrador, ecoando o temor prudente dos mais velhos.

Na realidade, por meio do drama de Dasdores: ficar em casa, colocando devagar e amorosamente em ponto de encenação a história de todos conhecida, a do humilde nascimento do rei-menino, vindo ao mundo numa manjedoura, perto de Maria e José, e dos animaizinhos de Deus: vacas e bois, carneiros de espessa lã e um jumentinho de olhos tristes e grandes orelhas, ou ir armando o presépio, meio às tontas, ouvidos e coração atentos ao bulício de lá fora, ao tique-taque miudinho e rápido do relógio chamando para a missa do galo, chamando para a companhia de Abelardo – o poeta nos coloca diante de uma questão dilemática: como viver o tempo?

Poderá existir algo mais atual do que dizer à nossa contemporaneidade que estamos – alguns de nós – quase que constantemente, em estado de aflitiva pressa, cindindo-nos em tantos eus que já não somam um? De alguma maneira, a própria festa do Natal é a representação de um consumo frenético da vida, sem que a serenidade de permanecer junto às pessoas e às coisas exista de fato. Dasdores, “pura placidez” encarna bem o espírito do presépio – a etimologia latina da palavra relaciona-se a cingir-se, estar cercado por – e assim concentra-se com desvelo, em sua tarefa de amor, criando vagarosamente o cenário de paz daquela noite, num ritual de fidelidade ao deus das horas. Uma outra Dasdores atropelaria tudo, não esta, a quem não cabe a conclamação: “Correi, sôfregos, correi ladeira acima, e chegai sempre ou muito tarde ou muito cedo, mas continuai a correr, a matar-vos sem perspectiva de paz ou conciliação.” Esta consegue ser fiel a si mesma, trazendo, como num sortilégio, para perto do presépio, um Abelardo fabricado pelo sonho, vivendo, assim, juntos, o tempo da noite milagrosa.

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