segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A propósito do ensaio sobre a cegueira


Oswald Barroso
oswaldba@ig.com.br
Escritor e Teatrólogo

Saramago propõe ao leitor um exercício de imaginação e raciocínio, criando uma situação dramática que altera a vida de todos e explicita comportamentos. Cria um contexto extremo: “Vamos imaginar se isto acontecesse! Como as pessoas se comportariam? Vamos, através desse filtro de profundidade, mergulhar na natureza humana, saber de que barro somos feitos. Coloquemos homens e mulheres numa espécie de purgatório, numa circunstância de epidemia (a peste) mortal, para ver como eles se comportam.” Cria, então, uma narrativa mítica, alegórica, metafórica, embora ambientada nos tempos atuais, embora pudesse ocorrer em qualquer tempo e espaço. Trabalha com ditados e parábolas: Talvez os olhos sejam a única janela da alma.

A cegueira coletiva funda um não lugar, um mundo sem referências, regido por outras relações. Um lugar onde mais valem o cheiro e a voz, quem, sabe. Onde mais valem os cegos mais antigos, mais profundamente cegos, porque lidam melhor com a cegueira

Numa cegueira branca não se aprende a viver, pois quando se aprende, dela se sai. E porque não se aprende, dela não se sai. Feito um gato, que melhor enxerga no escuro, feito alguém que funda seu muro, ou um vampiro, que a luz esmaga. Melhor, então, é viver (morrer) no escuro.

Em terra de cego, quem tem um olho é rei, ou rainha, como a mulher do médico, que por sua generosidade, por seu amor, que ultrapassa o marido e vai à humanidade, vira um Cristo ou uma Maria. Não se trata de uma cegueira de nascença ou de uma cegueira adquirida, que preserva lembranças visuais. Trata-se de uma cegueira metafísica, inexplicável pela ciência.

As situações limite despertam no ser humano o instinto de sobrevivência (como indivíduo ou/e como espécie), ressaltam suas melhores e piores qualidades. Invariavelmente, nelas, se exige o sacrifício das minorias. Por algum tempo, os relógios param. Mas logo voltam. Melhor seria se parados ficassem. Alguém não teria que se arriscar. Saramago conhece as nuanças da psicologia humana, quis fundar um mito, pela complexidade da trama e das relações sociais, um mito atual, datado talvez. Um mito histórico, se isso é possível, onde só a angústia é permanente.

O livro, ao contrário do filme, diferencia as alas entre os cegos e os contagiados. Nele a progressão dos acontecimentos no mundo exterior é acompanhada. Mas o filme concentra-se na ação física, enquanto o livro na ação interior. No livro, não há a resposta bruta da mulher de óculos escuros ao atendente da farmácia, por exemplo.

A cegueira branca é resultante do excesso de luz, certamente. Em que pese o esquema armado pelos poderosos com o fim de controlar as comunicações, nunca se teve tanto acesso aos seus meios. O avanço tecnológico e a disputa pelo poder econômico trabalham contra o monopólio da informação. O que não se sabia ontem, hoje se sabe. Compare-se com a década de 70, no Brasil, e a resposta será francamente afirmativa.

O pior cego é o que não quer ver, o que se nega a ver, por medo, conveniência, covardia, quem sabe, frente a um desfecho tido como sem remédio.

Anexo: Fala de Saramago para o documentário Janela da Alma de João Jardim e Walter Carvalho



Um comentário:

Adriana Cósmica. disse...

Texto muito bacana mesmo. Hoje foi exibido o programa com o conteúdo à respeito e foi maravilhoso. Parabéns!