quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Do ideário sobre o corpo camponês no Brasil

Paulo Rogers Ferreira
anthropus76@hotmail.com
Antropólogo

“Ah, a miséria do imaginário e do simbólico, o real sempre adiado para amanhã.” Gilles Deleuze & Claire Parnet, 1998.

Em Os Parceiros do Rio Bonito, Antônio Cândido (1964), um dos pioneiros dos estudos rurais no Brasil, em uma parte complementar desta obra, A vida familiar do caipira, enfatiza como o homem do campo, no interior paulista, por conta de uma economia libidinal face às definições, é àquilo que não pode e nem deve ser pensado acerca do corpo camponês. Ao enclausurar esse corpo camponês em paradigmas, o pesquisador exila o corpo numa espécie de não-corpo: um corpo-mutilado. Neste sentido, Cândido inicia seu argumento afirmando que o casamento é necessário não apenas nas condições de trabalho, como também na vida sexual que prevalece no meio rural.

Casar é na verdade necessário não apenas dentro das condições de trabalho, como das de vida sexual que prevalecem no meio rural. Sem companheira, o lavrador pobre não tem satisfação do sexo, nem auxílio na lavoura, nem alimentação regular (CÂNDIDO, 2003, p. 288-289 – grifo meu).

Para Cândido, o celibato masculino naquela ambiência camponesa, é coisa rara e muitas vezes associado a doença. A intimidade da união sexual é compreendida como um “ajustamento satisfatório”, levando em consideração fatores psíquicos e sociais. Portanto, tanto para homens como para mulheres há situações impostas por condições econômicas e pelos valores grupais que afetam diretamente sua sexualidade.

Um ancião do grupo estudado, empreiteiro de roçadas de que se desincumbiam três filhos moços, costumava gabar as vantagens de morar com os pais – que asseguram roupa lavada, comida pronta na hora, orientação no trabalho. No entanto, de um modo ou de outro os jovens casam (ou se amasiam), sendo o celibato masculino raridade notável, ligada geralmente a doença. (CÂNDIDO, 2003, p. 289 – grifo meu)

Outrossim, para Cândido, o casamento, sob a ótica masculina, só traz vantagens já assinaladas, pois os padrões permitem conservar, dentro dele, “liberdade de movimentos”, inclusive eventuais “transgressões” de caráter sexual. Mas o pesquisador ainda alerta que estas “transgressões” não parecem freqüentes na vida quotidiana do caipira de nível modesto, pois este está fadado a tarefas pesadas e constantes. O início da lida na roça, para os meninos basicamente, marca geralmente o fim dos castigos corporais, pois o trabalho, segundo o pesquisador, é o critério principal para determinar a passagem à idade adulta. Neste contexto, desde cedo, os meninos ajudam os pais na faina da lavoura, mas apenas quando apresentam certo vigor físico, geralmente aos treze ou quatorze anos. Neste ínterim, como acentua Cândido, os meninos são “homens formados”, podendo por exemplo embriagar-se, ir sós à vila, fazer compras etc, e daí a pouco o casamento torna-se solução inevitável do ponto de vista sexual.

Com efeito, na roça as possibilidades de satisfação do sexo, fora dele, são praticamente nulas pelas vias normais. Não há prostituição e a virgindade feminina é norma cuja ruptura, embora freqüente, leva quase sempre ao casamento com o transgressor. Quem deflora, casa: esta é a regra que repõe nos eixos a ordem um momento ameaçada. (CÂNDIDO, 2003, p. 315 – grifo meu)

Ao tratar da masturbação, o pesquisador infere que ela é menos praticada no campo do que nas cidades, porque, segundo ele, o jovem caipira tem menos estímulo erótico, pois despenderia constantemente uma soma de energia física em outros afazeres. No entanto, quando o caipira é premido pelo desejo, aponta Cândido, resta uma via, geralmente percorrida por todos: o coito com animais.

Na área estudada [interior paulista] elas [as práticas com animais] são correntes, e como nem todos possuem gado de porte, os meninos e os jovens utilizam também as cabras, porcos e galinhas, mais acessíveis pela criação doméstica. Pode-se dizer que isto equivale à “masturbação compensatória”, corrente nas cidades, sendo, como ela, etapa transitória de iniciação, superada sem dificuldades aos primeiros contatos com mulher, que se estabelecem cedo devido ao casamento precoce. Num e noutro caso, apenas a incorporação definitiva aos hábitos sexuais do adulto poderia ser considerada desvio; e tudo bem pesado, a prática rural talvez seja menos nociva que a urbana, pois repousa menos na imaginação. (CÂNDIDO, 2003, p. 218 – grifo meu)

Por fim, Cândido ressalta que o êxodo rural pode desorganizar violentamente as famílias de caipiras pobres (entre as quais, sinaliza o pesquisador, se destacam as prostitutas das cidades), assim, a urbanização do caipira, que permanece na terra, encontra, na família, um elemento de adaptação que permite aos indivíduos transitarem de um a outro sistema de padrões e manter a coesão necessária ao trabalho produtivo e à manutenção dum código moral. Outrossim, em O campesinato brasileiro, Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976) ao discorrer sobre a divisão do trabalho sexual, a conduta sexualizada das camponesas e dos camponeses no Brasil, apregoa que concernente ao padrão autoritário da decisão do homem, as mães-de-família educam os filhos desde pequenos, mas lhes inculcam os padrões de comportamento ditados pelo pátrio poder. Em caso de desobediência grave, fazem queixa ao pai-de-família, que toma as providências necessárias. A autoridade familiar, para Pereira de Queiroz, é então claramente exercida pelo pai. Assim, embora não exista mais o padrão do pai escolher marido para as filhas, o consentimento dele continua importante para que o enlace se realize ou não.

A organização das famílias alemães de Palmeirinhas não mostrou, portanto, grande diferença para com a das famílias caipiras [analisadas por Cândido]. Como nestas, a mulher tem status de subordinação ao homem, principalmente ao pai, e em seguida ao marido. Os maridos são, nas famílias alemães de Palmeirinhas, chefes de família que conservam a autoridade em suas mãos. (PEREIRA DE QUEIROZ, 1973, p. 206 – grifo meu)

A mulher camponesa, para a pesquisadora, tem status de subordinação ao homem, principalmente ao pai, e em seguida ao cônjuge, endossando o imaginário instituído no TB. Na sociedade camponesa, embora havendo divisão de tarefas segundo os sexos, a mulher acompanha o marido ao campo; não haveria separação entre um universo masculino e outro feminino de trabalho, mas apenas um universo em que as tarefas masculinas e femininas são ora coincidentes, ora complementares. Eis, nesses termos, a complementaridade da mulher camponesa. Uma mão-de-obra útil para o roçado, uma sexualidade para a reprodução em prol da perpetuação da espécie, em suma, um caricatural corpo camponês. Burlar com tal ideologia é, para o discurso instituído dos camponeses, e também para a maioria dos discursos acadêmicos instituídos sobre o rural até então, motivo para a “expulsão estrutural” do grupo social. Uma outra pesquisadora, Margarida Maria Moura (1978), em Os herdeiros da terra, ao analisar a relevância da herança no campesinato mineiro, percebe que o patrimônio territorial é mais do que colocá-lo em mãos dos descendentes direto de um indivíduo, mas assegura-dor da reprodução da área como camponesa, em que a herança enfeixa um papel estratégico neste sentido. Falar de trabalho em São João da Cristina, vilarejo investigado por ela, é falar da distribuição das tarefas por sexo e idade entre parentes que habitam um mesmo sítio. Para Moura, a família compõe um grupo indissociável, no seu conjunto, da condição de trabalhadores econômicos, assim, a economia de cada sítio está calcada na oposição complementar “unidade de produção e unidade de consumo perfeitamente interligada na economia camponesa, fornecendo, por esta mesma razão, o seu traço distintivo fundamental” (MOURA, 1978, p. 19). Mormente, ao pensar o trabalho feminino e masculino naquele povoado, a pesquisadora demonstra que se trata de uma separação radical, isto é, ambos são denominados trabalhos, mas há um “trabalho de casa” e um “trabalho da roça”, instituindo assim, um corpo-funcional. O “trabalho da casa” cabe à mulher; mãe e filhas a partir da faixa de idade de sete a nove anos. Este “trabalho no lar” é também para o lar, ou seja, aquelas tarefas que visam a assegurar bens alimentícios, objetos ou serviços que servem à sobrevivência dos membros da casa. Destarte, a mulher camponesa atua na casa (unidade de consumo) onde desempenha um papel complementar ao homem, este que atua no âmbito da unidade de produção. Neste contexto tudo o que se liga à preparação para o consumo do que esta terra produz é atribuição da mulher.

Viu-se assim como a divisão sexual do trabalho cria um tipo e uma área de atuação exclusiva para o homem e para a mulher. (...) Restrita à “casa”, a mulher tem toda a sua atuação econômica voltada para a unidade de consumo. Sendo ali seu locus social, ela não trabalha a terra e também não “negocia”. Depende de alguém que o faça para ela, seu marido, na maior parte das vezes. A interdependência da unidade de produção e da unidade de consumo só funciona de fato com o matrimônio. (MOURA, 1978, p. 28 – grifo meu)

Uma terceira pesquisadora, Beatriz Heredia (1979), ao analisar o trabalho familiar de pequenos produtores do nordeste brasileiro, mais especificamente na zona da mata pernambucana, afirma que o trabalho no roçado é o trabalho do pai, definindo assim este âmbito como masculino. Já as atividades da casa, por estarem ligadas ao consumo, não são consideradas como trabalho e portanto correspondem ao domínio feminino. Entretanto, em diversas circunstâncias excepcionais (maior número de mulheres na casa, moléstias que assolam os homens da casa etc) a pesquisadora observou que as mulheres realizavam todas as tarefas do roçado. Mas, por outro lado, apesar de serem as mulheres que efetivamente realizam todas as atividades, as instruções sobre o que e como é feito continuam sendo decisão do pai-de-família. Este, mesmo quando não desenvolve nenhuma atividade material, mantém o controle e gerenciamento de todo o processo produtivo.

Neste caso, não se considerava que as mulheres estivessem assumindo tarefas propriamente masculinas mas sim que, de forma diferente, essas mesmas tarefas, quem em outras circunstâncias seriam vistas como trabalho, passavam a ser consideradas como ajuda. Desta forma, indicava-se que as mulheres, mesmo realizando as tarefas, estavam subordinadas às decisões e, em suma, à autoridade paterna. (HEREDIA, 1979, p. 82)

Em tese, o destino de homens e de mulheres adultos é estatutário, sufocado por este imaginário que se cristalizou no TB. Neste sentido, a mulher, tal qual Eva, personagem bíblico, é complementar ao marido, seu desejo é condicionando ao dele, como veremos na próxima subseção. Assim, no TB, como em alhures, os camponeses foram montados, formatados, programados em um conjunto coeso. Em contrapartida, ao tratar desta coesão conjuntiva e valorativa, Cornerius Castoriadis (2000) nos adverte:

Mas toda conjuntização, toda categorização, toda organização que instauramos/descobrimos mostra-se, cedo ou tarde, parcial, lacunar, fragmentária, insuficiente – e mesmo, o que é mais importante, intrinsecamente deficiente, problemática e finalmente incoerente. (CASTORIADIS, 2000, p. 215)

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