quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Qual a cor da tua parede?


Ana Valeska Maia
Graduada em Direito pela UFC
Graduada em Artes Visuais pela FGF
Mestra em Políticas Públicas e Sociedade pela UECE


"Para viver é sempre preciso trair fantasmas"
Gaston Bachelard.

Verifique bem as cores das tuas paredes. O que você vê? Existe alguma parede cinza ao seu redor? Repare agora dentro de você. Quantas? Uma, duas, muitas?
O que significa para nós as paredes cinzentas?

Quero falar sobre visão, miopia, cegueira, cores, seres humanos, medo, coragem e liberdade. Começo essa reflexão pegando impulso no "Ensaio sobre a cegueira", de José Saramago. Uma das passagens do livro expõe nossa relação com o medo. Evidencia a cegueira imposta pelo medo. A personagem é taxativa: "são palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos".

O cinza que estamos vendo por aí pode ser um tipo de cegueira, e nele mora o medo. É estranho falar de cinza e de medo em um mundo midiático que espalha tantas cores, tantos padrões de beleza, inúmeras promessas de felicidade. São os modelos de sucesso. Como em Matrix a paisagem é colorida, é hedonista, é portadora de uma estética do belo que promove um território propício para a fertilização das ilusões pré-fabricadas. Para ter as cores da alegria capitalista você precisa comprar, você terá que se adequar ao padrão imposto. Esse padrão fugiu do controle, como um vírus. Repleto de ardis, agindo sub-repticiamente, mistura todas as cores e você não consegue mais identificar o amarelo, o vermelho, o azul, o verde. A visão da promessa capitalista é colorida. O resultado concreto são as paredes cinzentas. A miopia. A paulatina e agonizante cegueira coletiva.

O perigo da sedução do consumo vem de sua ação hipnótica que nos satura com cores a ponto de nos cegar. Nosso desafio então é gigantesco e para encará-lo necessitaremos da coragem de um herói. Nosso desafio implica lidar com o desconhecido e nos convida para todos os dias reaprender a ver, a pensar, a ser, a sentir. O primeiro passo é o reconhecimento de que, nos jogos de poder, as regras não são explícitas. Nesse jogo, que todos jogamos, conscientes ou não, os participantes são envolvidos com amarras sutis e quase invisíveis.

Convivemos com regras implícitas. Esse reconhecimento é extremamente incômodo, pois nos arranca da ilusão. Nosso chão perde a firmeza, passamos a enxergar que o céu azul do consumo está cinzento, pesado, carregado com densas nuvens prontas para o turbilhão, para a tempestade. Michel Foucault procura delinear as regras implícitas, os micro poderes, as relações de força, a microfísica presente no poder. Alerta para a expansão desenfreada do controle, que exerce influência nas atitudes, nos comportamentos, em expressões e discursos, sem se identificar apenas com um nível geral de poder, como no caso dos poderes emanados pelo aparelho estatal. Trata-se do reconhecimento de que o poder está em toda parte, atravessa os indivíduos, está nas relações, age em rede, contamina:


O poder analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está na mão de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. (FOUCAULT, 2006, p. 183)


Nossos campos, nossos espaços sociais, como argumenta Pierre Bourdieu (2003) são caracterizados por relações objetivas e específicas que envolvem investimento, capital, lucro e ganhos próprios, com suas crenças, seus jogos de linguagem, seus produtos materiais, simbólicos e sua hierarquia. Esses campos, por sua vez, possuem seus agentes, que, no exercício do poder simbólico, buscam a efetivação de uma realidade que tenta estabelecer um consenso, uma integração acerca da reprodução de uma dada ordem social. Um dos perigos de nossa cegueira coletiva pode ser traduzido no conceito de poder simbólico estampado por Bourdieu: poder simbólico que é "esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem". Subverter a cegueira exige o reconhecimento de um olhar ampliado, que é um olhar criativo e esperançoso. Perceber a realidade da cor que chama a iluminação em meio ao plúmbeo dia.
As paredes da democracia também estão pintadas de cinza. Sabemos que no Brasil existem máculas que já vêm de longa data, estruturantes de nosso viver coletivo, como a sociedade patriarcal, escravocrata e latifundiária, que desde cedo semeou a naturalização das desigualdades sociais. A herança do regime autoritário representa um fardo pesado para desconstruir, até porque atualmente tanto já foi introjetado que nos acostumamos a viver em uma democracia autoritária, com uma lógica de poder doentia que nos tributa a pobreza política, bem evidenciada pela lucidez do sociólogo Pedro Demo.

Desconfie, portanto, da inércia que sente. Identifique o cinza da tua parede. Nossa imobilização ou descrença no coletivo, nossos sonhos construídos com o intuito de satisfazer interesses particulares são uma armadilha preparada. Assim como são os modelos de felicidade e sucesso, as regras pífias de consagração e de exclusão. Não permita que sua potência crítica seja aniquilada. Tenha olhos para ver. Aprenda a reconhecer o que é arbitrário. Instigue resistências. Tenha coragem, pois a coragem é tão contagiosa quanto o medo. Deixe cair a tempestade, permita que a água flua e leve todo o cinza do teu céu. Tenha coragem para ver o que vem depois. Para ver a beleza é preciso coragem. São muitas cores, um arco-íris inteiro para você pintar as suas paredes.

Deseje. Seja inquieto, questionador, queira transformar. Escolha o que quer para si, tenha suas próprias cores. Traga essa energia para a política, desconstrua discursos hegemônicos. Contagie o mundo com coragem. Inspire-se em Exupéry, "só se vê o essencial com os olhos do coração", ou Goethe, "cinza, meu amigo, é toda teoria, mas a árvore da vida é sempre verde", ou, novamente, Saramago: "se podes olhar, vê. Se podes ver, repara." Portanto, repare. Veja! Não existe limite para as cores das tuas paredes. Vamos derrubar o cinza! Nossas paredes são coloridas!

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