sábado, 30 de agosto de 2008

Nem Rússia nem Geórgia, que viva o povo!


Carlo Romani
caromani@ig.com.br
Doutor em História Social pela UNICAMP.
Professor de História Contemporânea, UFC.

Semana retrasada, durante a celebração olímpica da sociedade mundial do consumo e da competição, talvez até se aproveitando da direção oriental dos holofotes midiáticos, eclodiu um novo conflito bélico no Cáucaso. Desta vez, o estado russo, através de seu exército, invadiu a recém criada (havia pouco mais de dez anos) República da Geórgia. Antes dela, desde o início do desmembramento em 1993 da CEI, a Comunidade de Estados Independentes, esse fantasma que antecedeu a criação da federação Russa, o Azerbaijão, a Ossétia, a Armênia, a Chechênia, algumas dessas atualmente já repúblicas independentes, passaram por episódios de tensão semelhante de modo mais (caso da Chechênia) ou menos violento (caso do Azerbaijão).

Espólios da antiga URSS, ricos em petróleo e gás, via de passagem dos oleodutos que ligam as refinarias do porto de Baku no mar Cáspio ao de Novorossiysk no mar Negro, esses territórios montanhosos, num passado distante refúgio de comunidades autônomas de pastores, tornaram-se minas de ouro negro disputadas pelo capital internacional, pelos emergentes potentados políticos locais e pelos novos condutores do renovado império russo, muitos deles astutos burocratas enriquecidos com o assalto ao velho edifício do estado soviético.

A bem da verdade, pelo menos da minha, de soviético nada teve o último S daquela sigla até porque soviete significa em russo conselho autônomo, mecanismo participativo de gestão política que se choca frontalmente com a direção sob controle de um comitê central de partido. De socialista, o penúltimo S, se pensarmos nas diferentes proposições seminais de socialismo formuladas ainda na primeira metade do século XIX, distanciamo-nos ainda mais: com boa vontade podemos falar em capitalismo de estado. O R de república demonstra outro paradoxo intransponível de uma revolução que buscou alcançar a utopia comunista e que se conformou em reduzir-se a um pseudo-sistema federativo de conselhos locais sob a tutela do Politburo. E a união a que se refere o U que encabeça a sigla somente foi mantida com a força do glorioso exército vermelho e o terror da KGB.

Desmoronado a ditadura do Kremlin, entre 1991 e 1994 seguiu-se disputa de foice entre bandos armados que geraram diversas organizações mafiosas empenhadas em demarcar seus territórios e retalhar o controle sobre as atividades econômicas. As principais delas, máfia russa que junto com a cazaque controlam a distribuição da heroína dentro e fora da Europa, e a ucraniana responsável pelo esquema de prostituição proveniente de todo o leste europeu. No Cáucaso, transformado em rodovia da energia consumida na Europa, populações históricas de diversas etnias, seguindo orientações religiosas diferentes, ortodoxa e muçulmana, arraigadas em sua maioria ainda a valores culturais camponeses e familiares tribais, reproduzidos no espaço coletivo das comunas, tem de conviver com a disputa armada entre bandos de locais e de russos pelo controle político territorial. A Geórgia hoje, apesar de no estatuto de direito da ONU configurar como estado independente, na prática goza quase que da mesma dependência a Moscou que a sua vizinha Chechênia. Estaríamos então aqui defendendo a Geórgia contra o russo opressor? Também não nos parece ser esse o caso, pois seja sob o comando do estado russo ou do da Geórgia, a população georgiana, e esta é a grande vítima da guerra, vive oprimida, e em condições sociais de modo até mais miserável do que a nossa conhecida situação latino-americana.

O território da atual Geórgia, ao longo de sua história, nunca se organizou em forma de um estado independente, à exceção do breve período da guerra civil na Rússia, entre 1917 e 1921, quando forças militares britânicas criaram um governo local logo conquistado pelos bolcheviques e incorporado à URSS. Antes disso, a região que se convenciona chamar de Geórgia esteve quase sempre sob tutela do império russo. Por vezes invadida pelos turcos em incursões guerreiras desde meados do século XV, o povo residente nessa bela paisagem montanhosa, apesar de pertencer aos dominios do czar, sempre pôde organizar sua vida de forma autônoma com base no conselho dos anciãos de cada aldeia, uma vez que a servidão na região caucasiana era praticamente inexistente. Espremida entre a Chechênia ao norte (confins com a Rússia) e a Armênia ao sul (confins com a Turquia) até por estar distante e protegida dos dois impérios litigantes, a Geórgia foi, entre as províncias do Cáucaso, aquela que teve maior autonomia e manteve melhores relações com São Petersburgo e, mais tarde, com Moscou. O dirigente que permaneceu mais tempo no poder soviético, Stalin, era georgiano de nascimento, se criou e depois rompeu com o partido socialista (menchevique) da Geórgia antes da revolução, e levou consigo uma camarilha de confiança famosa por sua atuação violenta, que se perpetuou nos altos escalões do PCUS.

Então, apesar de ser objeto de repúdio qualquer agressão armada como é o caso da invasão do exército russo dentro do território georgiano, não nos interessa aqui discutir as causas conjunturais e a ilegalidade ou a ilegitimidade da ação. Neste ensaio, a preocupação é a de alertar que muito além de uma guerra entre duas nações, trata-se de uma disputa entre bandos obcecados pelo poder, pelo controle político de uma região estratégica do ponto de vista econômico para o capitalismo internacional, em que suas vítimas inocentes pouco ou nada têm a ver com a guerra. Em O Prisioneiro do Cáucaso, de Sergei Bodrov, adaptação feita em 1996 para o cinema do conto homônimo de Tolstoi ambientado na primeira guerra entre Rússia e Chechênia, uma mãe russa encontra-se com um pai checheno para tramarem por conta própria a libertação e troca de seus filhos: um soldado russo refém de guerrilheiros chechenos e um ativista desse povo confinado numa prisão militar do exército russo ocupante em Grozny. Quando as pessoas por si só decidirem enfrentar os governantes e estados que os oprimem sem temerem a própria morte, então as palavras de Tolstoi, da desobediência civil como forma de luta de todos os povos contras as opressões, as guerras e as tiranias, poderão ajudar filhos e mães a não sofrerem mais pela passividade e inércia na condução de suas vidas.

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