terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Tempo, plácido tempo!


Fernanda Coutinho
fmacout@terra.com.br
Professora de Teoria da Literatura da UFC

Da geografia lírica de Carlos Drummond de Andrade, dos tantos lugares que criou e recriou, é dos acanhados limites de uma cidadezinha qualquer, perdida num tempo antigo, que o escritor mineiro faz irradiar a luminosidade que nasce de seu dom de envolver em poesia as coisas singelas, inclusive o mais aparentemente banal cotidiano. “Presépio”, história situada em Contos de aprendiz, narra à primeira vista o dia-a-dia de Dasdores (“assim se chamavam as moças daquele tempo”). Dasdores, a que devia ter mãos e pensamento diligentes para alcançar todas as necessidades da casa. Ah! que vasto inventário de coisas a realizar, de desejos a satisfazer! “Cuidar dos irmãos, velar pelos doces de calda, pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos”. Se o conto cuidasse apenas de exibir o perfil de uma mulher de outrora, entidade quase anulada como sujeito de seus desejos, já valeria como excelente contraponto às práticas sociais do mundo feminino em nossa contemporaneidade.

Aliás, nem seria bem esse o caso, pois Dasdores, em meio a toda a azáfama de sua existência, reivindica o seu tempo-paixão, sugestivamente denominado Abelardo. “Quem pode vigiar sonhos de moça?”, alerta a voz do narrador, ecoando o temor prudente dos mais velhos.

Na realidade, por meio do drama de Dasdores: ficar em casa, colocando devagar e amorosamente em ponto de encenação a história de todos conhecida, a do humilde nascimento do rei-menino, vindo ao mundo numa manjedoura, perto de Maria e José, e dos animaizinhos de Deus: vacas e bois, carneiros de espessa lã e um jumentinho de olhos tristes e grandes orelhas, ou ir armando o presépio, meio às tontas, ouvidos e coração atentos ao bulício de lá fora, ao tique-taque miudinho e rápido do relógio chamando para a missa do galo, chamando para a companhia de Abelardo – o poeta nos coloca diante de uma questão dilemática: como viver o tempo?

Poderá existir algo mais atual do que dizer à nossa contemporaneidade que estamos – alguns de nós – quase que constantemente, em estado de aflitiva pressa, cindindo-nos em tantos eus que já não somam um? De alguma maneira, a própria festa do Natal é a representação de um consumo frenético da vida, sem que a serenidade de permanecer junto às pessoas e às coisas exista de fato. Dasdores, “pura placidez” encarna bem o espírito do presépio – a etimologia latina da palavra relaciona-se a cingir-se, estar cercado por – e assim concentra-se com desvelo, em sua tarefa de amor, criando vagarosamente o cenário de paz daquela noite, num ritual de fidelidade ao deus das horas. Uma outra Dasdores atropelaria tudo, não esta, a quem não cabe a conclamação: “Correi, sôfregos, correi ladeira acima, e chegai sempre ou muito tarde ou muito cedo, mas continuai a correr, a matar-vos sem perspectiva de paz ou conciliação.” Esta consegue ser fiel a si mesma, trazendo, como num sortilégio, para perto do presépio, um Abelardo fabricado pelo sonho, vivendo, assim, juntos, o tempo da noite milagrosa.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

O encontro está marcado...

Valéria Geremia
valzen@uol.com.br
Graduada em Comunicação Social-Jornalismo pela UFRGS
Mestrado em Literatura pela UFC

O diálogo entre ficção e realidade tem um potencial muito rico. Podemos citar, em termos de cinema brasileiro, Central do Brasil, inspirado em um documentário, que fez de Fernanda Montenegro, durante as filmagens, uma real “escrevinhadora” de cartas para a população do interior. Ou ainda o seqüestro do ônibus no Rio de Janeiro por um sobrevivente do massacre da Candelária, que primeiro virou notícia, depois rendeu o documentário Ônibus 174 e recentemente passou a filme de ficção com Última Parada 174. Mas Nós que aqui estamos por vós esperamos, de Marcelo Masagão, tem uma estética considerada experimental e faz esse diálogo de forma mais complexa (tanto que recebeu maior número de convites para participar de festivais de cinema ficcional do que documental). Assim, é melhor compará-lo a Ilha das Flores, em que a história fictícia da trajetória de um tomate serve como pretexto para denunciar a realidade desumana à que parte da população é submetida devido à desigualdade da distribuição de renda no Brasil. Nesse caso (e em outros), a ficção bem desenvolvida retrata o objeto escolhido mais fielmente do que muitos registros documentais poderiam fazê-lo. A obra de Masagão, originalmente pensada como um CD-Rom, tinha como principal objetivo fazer uma seleção das principais mudanças ocorridas no século XX. Havia o risco de tornar-se um documentário óbvio, chato e superficial (algo um pouco pior do que as retrospectivas de final de ano exibidas pelas TVs – que veremos em breve, na despedida de 2008, aliás).

Nós que aqui estamos por vós esperamos, entretanto, é surpreendente, interessante e provoca reflexões filosóficas. Surpreendente por que foge da fórmula documental de utilizar um narrador para direcionar e explicar as imagens exibidas. Na maior parte do tempo, elas falam por si só (e essa é uma aposta na inteligência do espectador para “ler” a linguagem audiovisual). Em alguns momentos, há citações por escrito, que não repetem o que é mostrado visualmente (e novamente podemos nos sentir valorizados, por ser exigida uma interpretação dessa soma de informações entre texto e imagem). Também surpreende, e torna-se interessante, quando foge de um viés historicista tradicional. Sabemos, por certo, que a história que chega à posteridade é a história dos “vencedores” e não dos “vencidos” (dicotomia simplista que divide as pessoas apenas em dois tipos, resultante da miopia da mentalidade capitalista). Masagão não apenas coloca os “vencidos” e anônimos como protagonistas. Faz mais do que isso: cria personagens ficcionais para destacar homens e mulheres desconhecidos que sofreram, foram felizes e morreram (ou não) no século (e milênio) passado. Humanizando e aprofundando, ele transforma o ser humano comum em riqueza única. Cada um desses indivíduos se torna um tijolo importante para a construção do momento em que vivemos hoje.

Se falamos da linguagem das imagens, estamos obviamente falando da edição: a escolha de como montar as cenas. Foram 2 mil horas de edição ágil expressando leveza e poesia. Uma cena às vezes surge dentro da outra; ou se destaca em um fundo preto, como uma fresta através da qual nós, voyeurs da pós-modernidade, espiamos os personagens do passado. Destacam-se alguns paralelos muito inteligentes, como a tragédia do lançamento fracassado da Challenger e o costureiro que tenta voar da Torre Eiffel com asas feitas por ele mesmo, desastres de dimensões diferentes, mas observados com o mesmo assombro pela população. E ainda: Fred Astaire atua nos musicais e Garrincha dribla adversários, a edição criativa faz com que dancem juntos celebrando a vocação e o talento individual. As imagens editadas com ritmo e inteligência são costuradas pela deliciosa música de Wim Mertens , que dá um lirismo profundo ao conjunto (embora em alguns momentos mude o tom). É mais grave, por exemplo, ao sugerir o drama e a bufonaria trágica que emolduram a história sob o domínio dos grandes ditadores). A música é a alma, ou aura (me permita Walter Benjamin) que nos conduz, consoladora e compassiva, através da vida e da morte...

Em uma entrevista, o diretor declarou que, através dos personagens ficcionais (cuja morte normalmente é datada), pretendia falar da banalização da morte no século passado. Entretanto, seu documentário vai além: é um manifesto contra a banalização da vida e gera muitas perguntas que podem nos fazer refletir sobre nossa própria realidade. Afinal, o que torna um ser humano inesquecível: trabalhar na construção de bombas para uma Guerra Mundial ou fazer excelentes bolinhos de arroz? Permanece a idéia de que a história que escrevemos com nossas vidas, talvez, só se torne clara depois do fim...

Uma grande resposta é oferecida claramente: A Morte. Macabro? Mas realista. A inscrição do pórtico de cemitério escolhida como título, nós que aqui estamos por vós esperamos,vem nos recordar que somos todos, sim, mortais. E por isso devemos prezar mais a qualidade da vida que construímos no presente. É natural, agora, lembrar de Cidadão Kane e do simbolismo de sua última recordação, destacada no momento da morte do multimilionário e mega-empresário das comunicações. Seria um pecado imperdoável contar o final... assim, recomendo a quem não assistiu ainda que o faça logo, pois o filme de Orson Welles é considerado, em muitas seleções respeitadas, como um dos melhores filmes já feitos – quiçá o melhor. E, buscando instigar mais as reflexões e questionamentos que Nós que aqui estamos por vós esperamos provoca, sugiro, já que acabamos de recordar a nossa mortalidade, a leitura do blog http://linhasmortais.blogspot.com, produzido por alunos do Curso de Jornalismo da FIC para a disciplina Produção e Edição de Textos para Revista-2008.2, sob minha orientação, que visa abordar justamente Ela, ampliando nossa consciência e compreensão quanto aos medos, inseguranças e curiosidades mórbidas que surgem quando o tema é Morte.

Anexo: Trecho de Nós que aqui estamos por vós esperamos



segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A propósito do ensaio sobre a cegueira


Oswald Barroso
oswaldba@ig.com.br
Escritor e Teatrólogo

Saramago propõe ao leitor um exercício de imaginação e raciocínio, criando uma situação dramática que altera a vida de todos e explicita comportamentos. Cria um contexto extremo: “Vamos imaginar se isto acontecesse! Como as pessoas se comportariam? Vamos, através desse filtro de profundidade, mergulhar na natureza humana, saber de que barro somos feitos. Coloquemos homens e mulheres numa espécie de purgatório, numa circunstância de epidemia (a peste) mortal, para ver como eles se comportam.” Cria, então, uma narrativa mítica, alegórica, metafórica, embora ambientada nos tempos atuais, embora pudesse ocorrer em qualquer tempo e espaço. Trabalha com ditados e parábolas: Talvez os olhos sejam a única janela da alma.

A cegueira coletiva funda um não lugar, um mundo sem referências, regido por outras relações. Um lugar onde mais valem o cheiro e a voz, quem, sabe. Onde mais valem os cegos mais antigos, mais profundamente cegos, porque lidam melhor com a cegueira

Numa cegueira branca não se aprende a viver, pois quando se aprende, dela se sai. E porque não se aprende, dela não se sai. Feito um gato, que melhor enxerga no escuro, feito alguém que funda seu muro, ou um vampiro, que a luz esmaga. Melhor, então, é viver (morrer) no escuro.

Em terra de cego, quem tem um olho é rei, ou rainha, como a mulher do médico, que por sua generosidade, por seu amor, que ultrapassa o marido e vai à humanidade, vira um Cristo ou uma Maria. Não se trata de uma cegueira de nascença ou de uma cegueira adquirida, que preserva lembranças visuais. Trata-se de uma cegueira metafísica, inexplicável pela ciência.

As situações limite despertam no ser humano o instinto de sobrevivência (como indivíduo ou/e como espécie), ressaltam suas melhores e piores qualidades. Invariavelmente, nelas, se exige o sacrifício das minorias. Por algum tempo, os relógios param. Mas logo voltam. Melhor seria se parados ficassem. Alguém não teria que se arriscar. Saramago conhece as nuanças da psicologia humana, quis fundar um mito, pela complexidade da trama e das relações sociais, um mito atual, datado talvez. Um mito histórico, se isso é possível, onde só a angústia é permanente.

O livro, ao contrário do filme, diferencia as alas entre os cegos e os contagiados. Nele a progressão dos acontecimentos no mundo exterior é acompanhada. Mas o filme concentra-se na ação física, enquanto o livro na ação interior. No livro, não há a resposta bruta da mulher de óculos escuros ao atendente da farmácia, por exemplo.

A cegueira branca é resultante do excesso de luz, certamente. Em que pese o esquema armado pelos poderosos com o fim de controlar as comunicações, nunca se teve tanto acesso aos seus meios. O avanço tecnológico e a disputa pelo poder econômico trabalham contra o monopólio da informação. O que não se sabia ontem, hoje se sabe. Compare-se com a década de 70, no Brasil, e a resposta será francamente afirmativa.

O pior cego é o que não quer ver, o que se nega a ver, por medo, conveniência, covardia, quem sabe, frente a um desfecho tido como sem remédio.

Anexo: Fala de Saramago para o documentário Janela da Alma de João Jardim e Walter Carvalho



sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Charge

Clayton Rebouças
claytoncharges@gmail.com
Chargista

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Do ideário sobre o corpo camponês no Brasil

Paulo Rogers Ferreira
anthropus76@hotmail.com
Antropólogo

“Ah, a miséria do imaginário e do simbólico, o real sempre adiado para amanhã.” Gilles Deleuze & Claire Parnet, 1998.

Em Os Parceiros do Rio Bonito, Antônio Cândido (1964), um dos pioneiros dos estudos rurais no Brasil, em uma parte complementar desta obra, A vida familiar do caipira, enfatiza como o homem do campo, no interior paulista, por conta de uma economia libidinal face às definições, é àquilo que não pode e nem deve ser pensado acerca do corpo camponês. Ao enclausurar esse corpo camponês em paradigmas, o pesquisador exila o corpo numa espécie de não-corpo: um corpo-mutilado. Neste sentido, Cândido inicia seu argumento afirmando que o casamento é necessário não apenas nas condições de trabalho, como também na vida sexual que prevalece no meio rural.

Casar é na verdade necessário não apenas dentro das condições de trabalho, como das de vida sexual que prevalecem no meio rural. Sem companheira, o lavrador pobre não tem satisfação do sexo, nem auxílio na lavoura, nem alimentação regular (CÂNDIDO, 2003, p. 288-289 – grifo meu).

Para Cândido, o celibato masculino naquela ambiência camponesa, é coisa rara e muitas vezes associado a doença. A intimidade da união sexual é compreendida como um “ajustamento satisfatório”, levando em consideração fatores psíquicos e sociais. Portanto, tanto para homens como para mulheres há situações impostas por condições econômicas e pelos valores grupais que afetam diretamente sua sexualidade.

Um ancião do grupo estudado, empreiteiro de roçadas de que se desincumbiam três filhos moços, costumava gabar as vantagens de morar com os pais – que asseguram roupa lavada, comida pronta na hora, orientação no trabalho. No entanto, de um modo ou de outro os jovens casam (ou se amasiam), sendo o celibato masculino raridade notável, ligada geralmente a doença. (CÂNDIDO, 2003, p. 289 – grifo meu)

Outrossim, para Cândido, o casamento, sob a ótica masculina, só traz vantagens já assinaladas, pois os padrões permitem conservar, dentro dele, “liberdade de movimentos”, inclusive eventuais “transgressões” de caráter sexual. Mas o pesquisador ainda alerta que estas “transgressões” não parecem freqüentes na vida quotidiana do caipira de nível modesto, pois este está fadado a tarefas pesadas e constantes. O início da lida na roça, para os meninos basicamente, marca geralmente o fim dos castigos corporais, pois o trabalho, segundo o pesquisador, é o critério principal para determinar a passagem à idade adulta. Neste contexto, desde cedo, os meninos ajudam os pais na faina da lavoura, mas apenas quando apresentam certo vigor físico, geralmente aos treze ou quatorze anos. Neste ínterim, como acentua Cândido, os meninos são “homens formados”, podendo por exemplo embriagar-se, ir sós à vila, fazer compras etc, e daí a pouco o casamento torna-se solução inevitável do ponto de vista sexual.

Com efeito, na roça as possibilidades de satisfação do sexo, fora dele, são praticamente nulas pelas vias normais. Não há prostituição e a virgindade feminina é norma cuja ruptura, embora freqüente, leva quase sempre ao casamento com o transgressor. Quem deflora, casa: esta é a regra que repõe nos eixos a ordem um momento ameaçada. (CÂNDIDO, 2003, p. 315 – grifo meu)

Ao tratar da masturbação, o pesquisador infere que ela é menos praticada no campo do que nas cidades, porque, segundo ele, o jovem caipira tem menos estímulo erótico, pois despenderia constantemente uma soma de energia física em outros afazeres. No entanto, quando o caipira é premido pelo desejo, aponta Cândido, resta uma via, geralmente percorrida por todos: o coito com animais.

Na área estudada [interior paulista] elas [as práticas com animais] são correntes, e como nem todos possuem gado de porte, os meninos e os jovens utilizam também as cabras, porcos e galinhas, mais acessíveis pela criação doméstica. Pode-se dizer que isto equivale à “masturbação compensatória”, corrente nas cidades, sendo, como ela, etapa transitória de iniciação, superada sem dificuldades aos primeiros contatos com mulher, que se estabelecem cedo devido ao casamento precoce. Num e noutro caso, apenas a incorporação definitiva aos hábitos sexuais do adulto poderia ser considerada desvio; e tudo bem pesado, a prática rural talvez seja menos nociva que a urbana, pois repousa menos na imaginação. (CÂNDIDO, 2003, p. 218 – grifo meu)

Por fim, Cândido ressalta que o êxodo rural pode desorganizar violentamente as famílias de caipiras pobres (entre as quais, sinaliza o pesquisador, se destacam as prostitutas das cidades), assim, a urbanização do caipira, que permanece na terra, encontra, na família, um elemento de adaptação que permite aos indivíduos transitarem de um a outro sistema de padrões e manter a coesão necessária ao trabalho produtivo e à manutenção dum código moral. Outrossim, em O campesinato brasileiro, Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976) ao discorrer sobre a divisão do trabalho sexual, a conduta sexualizada das camponesas e dos camponeses no Brasil, apregoa que concernente ao padrão autoritário da decisão do homem, as mães-de-família educam os filhos desde pequenos, mas lhes inculcam os padrões de comportamento ditados pelo pátrio poder. Em caso de desobediência grave, fazem queixa ao pai-de-família, que toma as providências necessárias. A autoridade familiar, para Pereira de Queiroz, é então claramente exercida pelo pai. Assim, embora não exista mais o padrão do pai escolher marido para as filhas, o consentimento dele continua importante para que o enlace se realize ou não.

A organização das famílias alemães de Palmeirinhas não mostrou, portanto, grande diferença para com a das famílias caipiras [analisadas por Cândido]. Como nestas, a mulher tem status de subordinação ao homem, principalmente ao pai, e em seguida ao marido. Os maridos são, nas famílias alemães de Palmeirinhas, chefes de família que conservam a autoridade em suas mãos. (PEREIRA DE QUEIROZ, 1973, p. 206 – grifo meu)

A mulher camponesa, para a pesquisadora, tem status de subordinação ao homem, principalmente ao pai, e em seguida ao cônjuge, endossando o imaginário instituído no TB. Na sociedade camponesa, embora havendo divisão de tarefas segundo os sexos, a mulher acompanha o marido ao campo; não haveria separação entre um universo masculino e outro feminino de trabalho, mas apenas um universo em que as tarefas masculinas e femininas são ora coincidentes, ora complementares. Eis, nesses termos, a complementaridade da mulher camponesa. Uma mão-de-obra útil para o roçado, uma sexualidade para a reprodução em prol da perpetuação da espécie, em suma, um caricatural corpo camponês. Burlar com tal ideologia é, para o discurso instituído dos camponeses, e também para a maioria dos discursos acadêmicos instituídos sobre o rural até então, motivo para a “expulsão estrutural” do grupo social. Uma outra pesquisadora, Margarida Maria Moura (1978), em Os herdeiros da terra, ao analisar a relevância da herança no campesinato mineiro, percebe que o patrimônio territorial é mais do que colocá-lo em mãos dos descendentes direto de um indivíduo, mas assegura-dor da reprodução da área como camponesa, em que a herança enfeixa um papel estratégico neste sentido. Falar de trabalho em São João da Cristina, vilarejo investigado por ela, é falar da distribuição das tarefas por sexo e idade entre parentes que habitam um mesmo sítio. Para Moura, a família compõe um grupo indissociável, no seu conjunto, da condição de trabalhadores econômicos, assim, a economia de cada sítio está calcada na oposição complementar “unidade de produção e unidade de consumo perfeitamente interligada na economia camponesa, fornecendo, por esta mesma razão, o seu traço distintivo fundamental” (MOURA, 1978, p. 19). Mormente, ao pensar o trabalho feminino e masculino naquele povoado, a pesquisadora demonstra que se trata de uma separação radical, isto é, ambos são denominados trabalhos, mas há um “trabalho de casa” e um “trabalho da roça”, instituindo assim, um corpo-funcional. O “trabalho da casa” cabe à mulher; mãe e filhas a partir da faixa de idade de sete a nove anos. Este “trabalho no lar” é também para o lar, ou seja, aquelas tarefas que visam a assegurar bens alimentícios, objetos ou serviços que servem à sobrevivência dos membros da casa. Destarte, a mulher camponesa atua na casa (unidade de consumo) onde desempenha um papel complementar ao homem, este que atua no âmbito da unidade de produção. Neste contexto tudo o que se liga à preparação para o consumo do que esta terra produz é atribuição da mulher.

Viu-se assim como a divisão sexual do trabalho cria um tipo e uma área de atuação exclusiva para o homem e para a mulher. (...) Restrita à “casa”, a mulher tem toda a sua atuação econômica voltada para a unidade de consumo. Sendo ali seu locus social, ela não trabalha a terra e também não “negocia”. Depende de alguém que o faça para ela, seu marido, na maior parte das vezes. A interdependência da unidade de produção e da unidade de consumo só funciona de fato com o matrimônio. (MOURA, 1978, p. 28 – grifo meu)

Uma terceira pesquisadora, Beatriz Heredia (1979), ao analisar o trabalho familiar de pequenos produtores do nordeste brasileiro, mais especificamente na zona da mata pernambucana, afirma que o trabalho no roçado é o trabalho do pai, definindo assim este âmbito como masculino. Já as atividades da casa, por estarem ligadas ao consumo, não são consideradas como trabalho e portanto correspondem ao domínio feminino. Entretanto, em diversas circunstâncias excepcionais (maior número de mulheres na casa, moléstias que assolam os homens da casa etc) a pesquisadora observou que as mulheres realizavam todas as tarefas do roçado. Mas, por outro lado, apesar de serem as mulheres que efetivamente realizam todas as atividades, as instruções sobre o que e como é feito continuam sendo decisão do pai-de-família. Este, mesmo quando não desenvolve nenhuma atividade material, mantém o controle e gerenciamento de todo o processo produtivo.

Neste caso, não se considerava que as mulheres estivessem assumindo tarefas propriamente masculinas mas sim que, de forma diferente, essas mesmas tarefas, quem em outras circunstâncias seriam vistas como trabalho, passavam a ser consideradas como ajuda. Desta forma, indicava-se que as mulheres, mesmo realizando as tarefas, estavam subordinadas às decisões e, em suma, à autoridade paterna. (HEREDIA, 1979, p. 82)

Em tese, o destino de homens e de mulheres adultos é estatutário, sufocado por este imaginário que se cristalizou no TB. Neste sentido, a mulher, tal qual Eva, personagem bíblico, é complementar ao marido, seu desejo é condicionando ao dele, como veremos na próxima subseção. Assim, no TB, como em alhures, os camponeses foram montados, formatados, programados em um conjunto coeso. Em contrapartida, ao tratar desta coesão conjuntiva e valorativa, Cornerius Castoriadis (2000) nos adverte:

Mas toda conjuntização, toda categorização, toda organização que instauramos/descobrimos mostra-se, cedo ou tarde, parcial, lacunar, fragmentária, insuficiente – e mesmo, o que é mais importante, intrinsecamente deficiente, problemática e finalmente incoerente. (CASTORIADIS, 2000, p. 215)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

28 anos sem ele

Rodrigo C. Vargas

No Brasil se chamaria João, tantos quanto na Inglaterra. Filho de Julia Stanley e Alfred Lennon - mensageiro de um hotel descendente de galeses e filho de um irlandês - John Winston (homenagem à família real inglesa) Lennon era um verdadeiro celta. Nasceu em 09 de outubro de 1940 no Hospital Maternidade de Liverpool. Seu primeiro endereço foi Penny Lane, subúrbio da cidade, na rua Newcastle número 9. Seus pais se casaram no cartório de registro de Mount Pleasent no dia 03 de dezembro de 1938 sem a presença de um único membro da família. Alfred sumiu logo após o nascimento do filho durante uma viagem a trabalho nos Estados Unidos (emprego em um navio comercial arranjado pelo avô de John, Pop - ex-marujo que ao se aposentar enfrentou a dificuldade de se adaptar a vida familiar, e caseira - para mantê-lo longe da filha) e quando voltou, anos depois, tentou raptá-lo mas foi descoberto a tempo. Essa foi a última vez que se viram. Meses antes, Julia sem esperança de receber qualquer notícia acabou se apaixonando e dividindo um quarto alugado com outro homem (pai de duas, das três meia-irmãs de John). Esse foi o motivo pelo qual, aos quatro anos e meio, o pequeno Lennon foi obrigado a morar com a irmã mais velha de sua mãe, Tia Mimi e seu marido George em Vale Road na Avenida Menlove número 251 . Ela (Mimi) e Pop não aceitavam o que segundo eles era uma vida promiscua.

Em setembro de 1952, com quase 12 anos, John começou a estudar em Quarry Bank, escola preparatória para meninos. Foi nessa época que descobriu a musica graças às visitas as escondidas que fazia a mãe, fã de Elvis Presley, e com quem aprendeu a tocar. Foi uma espécie de afirmação no meio de tantos nãos que rodeavam aquele garoto. No início de 1956, aos 15 anos, montou a primeira banda: Os Black Jacks. Esse nome sobreviveu poucos dias. Logo passaram a se chamar Quarry Men. A primeira apresentação aconteceu no Lee Park Golf Club em Childwall nos arredores de Liverpool. Era como se estivesse sonhando, só que acabou sendo saculejado de forma brutal pela notícia da morte de sua mãe atropelada por um automóvel em alta velocidade no cruzamento da Vale Road com Menlove Avenue, cerca de quinhentos metros de sua casa. Judy, como era chamada por todos, estava indo visitar o filho. Meses antes Paul McCartney tinha passado pela mesma dor. Aquela terrível coincidência uniu os dois e os transformou na maior dupla de compositores e executores que o rock já viu.

Os Beatles mudaram o mundo mas aquele menino franzino de olhos firmes continuava lá. Suas dores e dúvidas acabaram sendo acalentadas por uma relação matriarcal com Yoko Ono. A segurança além da musica fez os Beatles perderem o sentido. Sua carreira solo foi marcada pela força do grito primal e pela sensibilidade de give peace a chance que em português quer dizer dê a paz uma chance, cantada por meio milhão de manifestantes em novembro de 1969, na marcha pela paz no Washington Monument; liderada por Pete Seeger. Alguns anos depois, todas aquelas vozes foram silenciadas pelas mãos de um fã assassino. No dia 08 de dezembro de 1980, em frente ao apartamento de John em Nova York, Mark David Chapman descarregou a arma enquanto o pacifista estava de costas. O homem que atirou tinha recebido um autógrafo horas antes. Caleidoscópio.

Boa parte do que John Lennon escreveu está lá atrás, na sua infância. Penny Lane era a rua onde morava o avô. Strawberry Fields seu esconderijo favorito. Mother o vazio deixado pela ausência materna e a tentativa de expulsá-lo do corpo. God, a negação de suas sombras. A música de John é atual e será daqui milhares de anos, por que John sempre foi João e mesmo quando falava de si, olhando para dentro, falava do mundo.

sábado, 29 de novembro de 2008

E o que vem depois?

Rodrigo C. Vargas

O que se discute politicamente e principalmente na grande mídia é o que quase sempre não afeta os interesses dos que estão no poder. A criação do Estado de Israel por exemplo, nunca foi questionada abertamente no Brasil, pelo menos não que eu me lembre. É evidente que é inadmissível o que aconteceu aos judeus durante a Segunda Grande Guerra, mas a criação de um Estado em pleno território palestino é como se os Tupis (índios que povoavam o Ceará no século XVI) retomassem a Aldeota (bairro nobre da capital cearense) sem que nenhum morador da região tivesse o direito de discutir sua retirada. O que isso quer dizer? Para entender melhor é preciso voltar para 14 de maio de 1948. Naquele dia, o Museu Nacional de Tel-Aviv recebia uma cerimônia aguardada pelo povo hebreu há 1.878 anos – desde que a destruição do Segundo Templo pelos romanos, em 70 d.C., acabou com a soberania dos judeus em Jerusalém e deu início à segunda diáspora dos seguidores de Isaac – e que iria mudar a vida de milhares de pessoas. A terra prometida estava voltando às mãos dos judeus. Lida por Ben-Gurion e assinada pelos 24 dos 37 membros da assembléia presentes, a declaração de independência buscou no passado histórico e no presente político as justificativas morais e legais para sua fundação. O documento proclamava a Terra de Israel o local de nascimento do povo judeu e dizia que a declaração de Balfour e a partilha das Nações Unidas, além do sacrifício dos pioneiros sionistas e da tormenta sofrida com o Holocausto, davam aos judeus o direito inalienável de estabelecer seu estado no Oriente Médio. O resultado foi a retirada forçada de 760 mil Palestinos que do dia para a noite se transformaram em refugiados, naquilo que ficou marcado na história como Naqba ou Dia da Catástrofe em árabe. Hoje, se contarmos os descendentes o número chega aos 4,5 milhões de refugiados.

Esse é um dos assuntos mais polêmicos do conflito israelo-palestino. Israel se opõe a qualquer sugestão de que voltem às suas terras. No dia 08 de maio desse ano, várias centenas de palestinos das áreas ocupadas da Cisjordânia, na cidade de Bethlehem, saíram as ruas cantando "o direito de retornar é sagrado". Em seguida fizeram uma marcha ao redor de um caminhão carregando uma chave de metal de dez toneladas simbolizando as casas que as pessoas perderam em 1948. É um genocídio anunciado. Pra se ter uma idéia, o físico Albert Einstein, o historiador Arnold Toynbee, o psicólogo e sociólogo Erich Fromm, o líder político Mahatma Gandhi e o filósofo e matemático Bertrand Russell, alertaram para uma possível zona de conflito permanente:

Einstein: “Os meus conhecimentos profundos da natureza fundamental do judaísmo repelem a idéia de um Estado judeu, com fronteiras, um exército e uma unidade de potência temporária, não importa por mais modesta que seja. Receio os danos que o judaísmo sofrerá, especialmente do incremento de um nacionalismo mesquinho dentro de um Estado judeu”.

Toynbee: “Desde o estabelecimento do Estado de Israel, o colonialismo israelense é um dos casos mais negros da história geral do colonialismo na idade moderna e posto em relevo pela nossa própria época. Os colonialistas da Europa Oriental praticaram o colonialismo na forma extrema de desalojar e expulsar os árabes nativos, no mesmo momento em que os povos da Europa Ocidental renunciavam a sua dominação temporária sobre os povos não europeus. (...)A tragédia da história judaica recente é que, em vez de aprenderem com o sofrimento, os judeus iriam fazer a outrem, os árabes, o mesmo que lhes tinham feito outros, os nazistas”.

Fromm: “Acredito que, politicamente falando, só há uma solução para Israel, isto é, o reconhecimento unilateral do compromisso do Estado para com os árabes – não para ser utilizado como um ponto de negociação, mas para reconhecer o total compromisso moral do Estado israelense para com os antigos habitantes da Palestina. (...) E o direito da cidadania é de fato um direito a que os árabes em Israel têm mais legitimidade que os judeus”.

Gandhi: “Tenho pelos judeus muita simpatia. Mas a simpatia não me cega quando se trata de fazer justiça. O apelo por um lar nacional para os judeus não provoca em mim nenhum eco. A palestina pertence aos árabes, como a Inglaterra pertence aos ingleses e a França, aos franceses. É mau impor os judeus aos árabes. Se os judeus não têm outro lar senão a Palestina, apreciariam a idéia de serem obrigados a deixar as outras partes do mundo em que estão instalados? Ou desejariam então uma pátria dupla onde possam permanecer à vontade?”.

Russell: “Como se poderá discutir os direitos humanos no Oriente Médio sem ir diretamente ao ponto? A criação e a expansão de Israel ocasionaram uma trágica perda de direitos humanos a um número incrível de pessoas, que alcança os milhões. Qual é o significado dos direitos humanos, se não se inclui o direito de viver em paz em seu próprio país? Que direitos são gozados por essas centenas de milhares de refugiados que cercam Israel? Por quanto tempo mais deverão sofrer tal crueldade? Como pôde o mundo tolerar tal miséria, ocasionada por uma ruidosa agressão?”.

O povo judeu não sofreu apenas com as ações desumanas de Hitler, localizadas em uma época. Os hebreus foram perseguidos e caçados por séculos na Europa e em outras regiões. O Holocausto causou uma espécie de culpa assombrosa que fez com que parte daqueles povos originalmente perseguidores, aceitasse a criação do Estado de Israel como forma de amenizar o sofrimento carregado por esse povo por quase dois mil anos; transferindo apenas a carga de mãos. Isso me faz questionar a potência empregada na analise de atos desesperados por parte de palestinos, terroristas? Não é a participação de Obama nem a de nenhum outro homem que vai mudar o rumo dessa contradição. A única resposta que consigo ter no momento é que os palestinos são os novos judeus. E o resto? Todos já sabemos.

O DNA de Fortaleza

Adauto Leitão de Araújo Junior
adauto_br@yahoo.com.br
Historiador

O DNA de Fortaleza está na Barra do Ceará. E por muitas evidencias se pode afirmar de maneira segura que à margem do Rio Ceará é a nossa gênese Étnica e Histórica. Na Barra temos vestígios arqueológicos das primeiras edificações; além de símbolos: o santuário da padroeira Senhora da Assunção e a própria origem do termo Fortitudine. É uma condição exigente no século XXI tratar desse tema com uma postura equilibrada e madura à razão do bem maior da cidade - o Resgate da sua Memória. Não obstante, a falsa "disputa" do mérito territorial original entre os bairros da Barra versos Centro, que só cria desinformação nociva à sociedade; pois atende só a "preconceitos grupais".

Hoje, tanto o Marco Zero de Fortaleza da Barra do Ceará, ao Centro Histórico, à Aldeota Clássica, estendendo-se a pós-moderna Água Fria fazem parte do contexto de uma grande metrópole - já desenhada no séc. XVII por Pero Coelho e Martim Soares Moreno - e que na sua realidade atual precisa ser vista com amplitude.

A empresa pioneira do açoriano Pero Coelho de Souza plantou a semente do desenho territorial acima descrito. Maldosamente atribui-se que Coelho só fez uma "paliçada" e não "prosperou". De fato à margem direita do Rio Ceará no primeiro momento fez a paliça de abrigo da tropa, mas ordenou erigir o Forte de Santiago e a Vila de Nova Lisboa, inaugurados em 25 de julho de 1604, visto que não veio para morar debaixo de uma palha com a mulher Maria Tomázia e cinco filhos. Quanto a terrível seca nunca vista no Nordeste de que foi vitima em 1607, deixou lições que ainda aprendemos para conviver com esta chaga... Da época temos a riqueza da primeira cartografia do Ceará, do primeiro rio navegável e o Marco Zero de Fortaleza.

A Soares Moreno deve-se creditar o mérito - primer inter pares - dos atores históricos de criar o termo Fortaleza: da sua "Seara" (1619) - copiado pelos holandeses "Fortaleza do Siará Grande" (1637) ambas edificações da Barra do Ceará são expostas orgulhosamente em museus nacionais de Lisboa e Amsterdã. Na Barra chegou à imagem de Nossa Senhora da Assunção em 1621 a pedido de Moreno - a Padroeira - o Santuário é ad eternum da Barra. Álvaro de Azevedo incorporou a tradição lusa da Barra com título: "Fortaleza da Assunção" no Centro (1654). Dom Pedro I tentou impor o gentílico "de Nova Bragança" para Fortaleza (1823).

Hoje temos o símbolo "Fortitudine" que é único e democrático - do Povo. Honestamente políticos, intelectuais e a cidadania fortalezense devem uma mea culpa à Barra do Ceará e ali reconhecer 404 Anos de Fortaleza. A massa originaria e sempre presente à margem do rio Ceará mantém a História viva. O DNA de Fortaleza está na Barra do Ceará e para nosso orgulho na construção do Brasil, dentre outras principais capitais com mais de quatro séculos.

Um homem-morcego

J J Marreiro
jjmarreiro@yahoo.com.br
Cartunista

O Morcego que já cedeu sua presença soturna e sombria à mística das bruxas, às asas dos dragões e ao mito do vampiro encontrou nos quadrinhos a faceta pop que lhe faltava. Injustiçado pelas associações tenebrosas de até então, vestiu o manto da justiça e da vingança motivando Bruce Wayne em sua cruzada contra o crime em Gothan.

Ao longo dos anos o personagem de histórias em quadrinhos Batman ganhou várias versões e várias leituras, tantas ao ponto de se diluir o referencial a respeito de sua fidelidade à obra original. Hoje excelentes quadrinhos, games, animações e filmes foram feitos com o cruzado de capa. E sua história é recontada como são recontadas as histórias dos grandes mitos da humanidade como hércules ou aquiles.

Batman usa seu fato negro e a efígie do morgego para nublar, confundir e trazer medo aos criminosos: apenas os culpados têm o que temer. Homens misteriosos com suas roupas negras estão incrustados nas lendas de várias civilizações. Assumindo o papel de herói solitário ou de terrível vilão o homem de preto mitológico caminha sobre a civilização trazendo a força da mudança e assim ocorre com o personagem criado por Bob Kane e publicado em 1930, aqueles que tiveram seu caminho cruzado com o Batman seja nos quadrinhos, seja no cinema sempre terá o que contar.

Curiosidades:

A primeira versão cinematográfica de Batman foi em 1943 num seriado de 15 episódios da Columbia Pictures e outro seriado foi produzido em 1949. Esses seriados eram exibidos em seções de matinês e o público era diverso, apesar da grande presença de crianças. Nessas versões Batman usava todos e quaisquer recursos para sair das enrascadas do final do episódio, eventualmente matando os inimigos.

A Batcaverna foi criada para o seriado de 1943.

A primeira vez que o Batsinal iluminou os céus de Gotan City foi em 1949 no segundo seriado de Batman da Columbia Pictures.

Em 1966 Batman ganha um serie de TV e um longa metragem com o ator Adam West no papel principal. O tom da série era leve e bem humorado reproduzindo o tom estapafúrdio dos quadrinhos do herói do final dos anos 50 onde entra outras coisas apareceram o Bat Cachorro e o Bat Mirim (um duende que vestia uniforme parecido com o do herói).

Para abrir a passagem secreta para a Batcaverna, Bruce Wayne tinha que acertar os ponteiros do relógio da biblioteca para o horário em que seus pais foram mortos: 20h30min.

A armadura que Batman usa nos filmes foi desenvolvida porque Michael Keaton ator que interpretava o herói em 1989 era muito baixo e franzino.

A trama em que o Pingüim se candidata a Prefeito de Gothan City no segundo filme dirigido por Tim Burton foi retirada de um episódio do seriado dos anos 60.

Anexo: Batman: Dead End é um curta de 8 minutos que custou um pouco mais de 30 mil dólares, mas causou um eco incrível na indústria cinematográfica. Dirigido e produzido por Sandy Collora, foi lançado em julho de 2003 na Comic-Con, em San Diego, Estados Unidos. Mesmo tendo sua exibição proibida, alguns websites começaram a divulgar o filme que rapidamente se transformou na sensação do mundo virtual. Collora é bastante conhecido em Hollywood por produzir criaturas para filmes como Parque dos Dinossauros, Exterminador do Futuro, Predador e Edward Mãos-de-Tesoura. Dead End foi a sua primeira investida como diretor. O que vocês acham?




quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Feliz aniversário

Airton de Farias
airtondefarias@yahoo.com.br
Mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará

Há décadas existe na historiografia certa polêmica sobre o local, a data e a quem caberia a "fundação" de Fortaleza e do Ceará. De início, uma historiografia mais antiga considerou a atual Barra do Ceará como o local onde "nascera" a capital cearense, atribuindo o "feito" não a Pero Coelho e a seu forte de São Tiago, mas a Martim Soares Moreno e ao forte de São Sebastião – daí, inclusive, o livro Iracema, de José de Alencar, no qual os "amores" do "Guerreiro Branco" Martim e a Índia teriam dando "origem" aos cearense, numa visão romanceada.

Nos anos 1960, entretanto, essa concepção foi questionada pelo livro Matias Beck – Fundador de Fortaleza, de Raimundo Girão. O importante historiador cearense, baseado em argumentos lógicos e sólidas fontes, apontou que o núcleo colonizador de Martim Soares Moreno na Barra do Ceará não teve maiores conseqüências – o forte de São Sebastião fora conquistados pelos holandeses em 1637 e destruído pelos indígenas em 1644; para Girão, o núcleo original da cidade estaria, sim, no forte Schoonenborch, construído em 1649 por ordem do capitão flamengo Matias Beck – os holandeses então dominavam Pernambuco e estendiam seus domínios mais para o norte. Foi em torno do forte – reconquistado em1654 pelos portugueses e renomeado para Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, no local onde hoje se encontra a 10 Região Militar – que surgiria ESPONTANEAMENTE a atual capital cearense.

A tese de Girão provocou enorme polêmica, sendo ardorosamente combatida pelos conservadores e católicos, os quais não viram com bons olhos a tese da primazia holandesa, não pela nacionalidade em si, mas por um principio de civilização, pois, caso aceita esta nova visão histórica, se atribuiria a um evangélico, um calvinista, a “fundação do povo cearense”. O tema ainda sucinta tantos debates, que se comemora como data de aniversário da capital, não a da construção do forte, mas a da elevação do povoado à condição de vila, em 13 de abril de 1726, um episódio, portanto, “católico e português”.

Passamos ao largo dessas polêmicas sobre “descobridores”, “fundadores” e coisas afins! Na realidade, as tentativas de conquistas feitas por portugueses e holandeses entre 1603-54 não deixaram marcas importantes, não sendo possível falar de um marco zero para a cidade em datas anteriores. Além disso, lusos e flamengos não vieram ao Siará Grande para fundar uma cidade, mas para explorar a terra, o que foi feito, aliás, com a morte de milhares de nativos. Fortaleza surgiu espontaneamente, não sendo fruto da ação intencional de uma única pessoa. Preocupar-se com um dia exato para ser o “ponto zero” de um país, estado ou município não passa de uma ação burocrática e um mito de origem; como criação histórica de longa duração, os países, estados e cidades não são construídos propriamente num ato fundador e heróico, mas na sucessão do tempo e com esforço anônimo de várias gerações.

O Ceará como o conhecemos hoje é o produto da fusão de vários povos, sociedades e cultura, e do trabalho, do esforço, da dor e da alegria de milhares de pessoas ao longo dos séculos – assim, não podemos dizer que no século XVII o estado já lá estivesse, a esperar as naus dos europeus para ser “descoberto”. O Ceará para ser e existir precisava ainda de muito para acontecer: duras lutas, guerras, confrontos, aqui e ali uma traição, uma derrota, uma frustração, uma façanha, uma epopéia; necessitou-se de audácia, força, criatividade e bastante, bastante trabalho.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Tira

Denilson Gomes Albano

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Padre Mororó: Mártir rebelde da confederação do equador

Evaldo Lima
chicoevaldo@yahoo.com.br
graduado em História pela UECE e Direito pela UFC

Se deixe ficar por instantes na sombra desse baobá que virão fantasmas errantes, dos sonhos eternos falar... ( Ednardo – Passeio público)

A Igreja do Rosário estava lotada naquela manhã ensolarada de domingo para a macabra missa fúnebre de corpo presente. Dois rebeldes confederados assistiam à cerimônia de encomenda dos seus corpos que logo mais seriam crivados de balas. O ritual macabro possuía roteiro de um teatro de horrores: encomenda prévia da alma com os “eleitos” presentes, degradação das honras, formação do aparato militar e fuzilamento público para uma platéia sedenta de sangue. Mas, afinal, quais os sonhos dos rebeldes tropicais da confederação do equador?

Padre Mororó foi condenado à morte por crime de Lesa Majestade. Contra ele pesavam três crimes:

1) Ter proclamado a República em Quixeramobim;
2)Ter servido de secretário do Presidente da República no Ceará, Tenente Coronel Tristão Gonçalves de Alencar Araripe;
3) finalmente, de ter sido o redator do Diário do Governo do Ceará, órgão dos Republicanos.

A Confederação do Equador foi um movimento rebelde, liberal e republicano contra o absolutismo do Imperador Dom Pedro I. O mesmo príncipe que com o apóio das elites proclamou a Independência do Brasil do colonialismo português agora demonstrava sua face mais tirânica e cruel. Impôs uma Constituição despótica em 1824 e condenou à morte Mororó, Caneca, Carapinima, Miguelinho, João Ribeiro e tantos mais que ousaram sonhar pela liberdade. Mororó foi mais. Usou como canal de propagação das idéias confederadas um jornal, o primeiro do Ceará, o “Diário do Governo do Ceará”, certamente inspirado no Correio Brasiliense, primeiro jornal do Brasil, editado de Londres e enviado clandestinamente para o Brasil.

O nosso primeiro jornal não era editado em Londres e sim em Quixeramobim, mas também propagava luzes contra o jugo dos poderosos, as trevas do autoritarismo. Mororó pagou com a vida o preço dessa ousadia. Ao findar a missa, o Padre Gonçalo Ignácio de Loiola Albuquerque, ou melhor Padre Mororó, e o coronel João de Andrade Pessoa Anta caminharam sem pressa pela Rua dos Mercadores( Hoje Conde D’eu) , seguiram pelo trecho da hoje Rua Guilherme Rocha, dobrando na Rua Major Facundo e prosseguiram até o Campo da Pólvora. Não estavam sós. Populares e soldados acompanharam o cortejo. Alguns dependurados nos galhos das árvores. Quando um dos galhos quebrou, parte do populacho foi ao chão como frutas podres que despencam em meio a zombaria geral. Mororó até esboçou um sorriso, mas o enredo era trágico e não cômico. O povo que os rebeldes confederados queriam libertar pouco ou nada sabia sobre as causas daquele movimento. Diante do pelotão de fuzilamento, Padre Mororó recusa a venda e pede que não lhe ponham no peito a fita que indicava o local da mira, coloca a mão direita sobre o coração e corajosamente diz para o pelotão: “camaradas, o alvo é este. Tiro certeiro para que não me deixem sofrer muito”.

O sangue do padre banhou o Baobá, árvore gigante importada da África. Ali, ao pé da baobá, muitos outros tombaram porque ousaram sonhar com um Nordeste Independente do resto do Brasil, um país tropical livre e republicano contra o Absolutismo de Dom Pedro I. Hoje o local se chama Praça dos Mártires, ou Passeio Público, e os fantasmas rebeldes confederados nos cobram a memória do passado e os compromissos de luta do presente.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Reciclar é apenas a ponta do iceberg


Carlos Limaverde
limaverd@unifor.br
Arquiteto e Urbanista

Partamos do princípio de que tudo que acontece em nosso país, cidade e bairro acontece também conosco! Logo temos o direito de participar de todas as decisões.
Foi pensando assim que nasceu o Estatuto da Cidade, na Constituição de 1988 e posteriormente foi aprovada a lei de Nº 11.445 / 2007 onde todos os entes federativos deverão no âmbito de sua competência elaborar os planos Nacional, Estadual e /ou Regional e Municipal de Saneamento Básico. Hoje, por dia, 200.000 pessoas saem de seu lugar de origem atrás de oportunidades em áreas urbanas.
Sabemos que no começo dos anos 1900 nosso país detinha apenas 10% de sua população vivendo em cidades e após a 2ª Grande Guerra atingíamos 50%.

Sabemos que durante o Milagre Econômico vivido pelo nosso país, na época da Ditadura Militar já passávamos de 70%, e hoje já ultrapassamos os 80%. O que isso quer dizer: Estamos cada vez mais produzindo lixo, exigindo dos nossos recursos naturais mais produtos, e estamos cada vez mais produzindo e adicionando produtos tóxicos – mais de 100.00 tipos de produtos tóxico em uso – e levando tudo isto para o mercado consumidor, sem que as pessoas tomem conhecimento da origem, do processo de fabricação, de como estes produtos são distribuídos e de como eles seguem uma LÓGICA DO CONSUMO.

O Brasil gera por dia cerca de 240.000 toneladas de lixo e na outra ponta não reaproveita cerca de 60% através de reciclagem. Quando descartamos, quando jogamos fora, quando desperdiçamos, estamos dizendo: SOU CONSUMIDOR E NÃO SOU ESCLARECIDO!
Se formos para produtos industrializados caímos na esparrela da OBSOLECÊNCIA PLANEJADA! Se não cairmos nesta outra, caímos na OBSOLECÊNCIA APARENTE. Daí dizermos que o problema não reside apenas na RECICLAGEM, ele reside também na forma de extração da matéria prima que destrói árvores, mudam paisagens ao serem retirados minérios poluindo mananciais. Daí dizermos que quando da produção, escravizamos operários, enchemo-los de produtos tóxicos e de doenças , exploramos menores nos quatro cantos do mundo e não oferecemos aceso a saúde de qualidade ,etc.
Quando da distribuição destes produtos, a ordem é girá-los nas prateleiras, e lucrar... Hoje leio nos jornais:

· CRIAÇÃO DE PROGRAMAS MAIS EFICIENTES DE FIDELIDADE;
· COMPRA POR IMPULSÃO;
· OFERECIMENTO DE VANTAGENS DIFERENCIADORAS;
· SUFAR NAS VENDAS DO QUE AINDA ESTAR POR VIR...

O leitor já parou para pensar, que 99% dos produtos em 6 meses não devem estar mais nas prateleiras? Já pensou que o shopping foi invenção americana para seduzir e criar clima propício ao consumo? Que o “Self –Service” está lá para rápidamente você consumir além daquilo que seu organismo necessita, só pelo apelo do colorido das comidas? Que muitas vezes você paga pelo o produto, o que na verdade não retrata os custos? Enfim, que criaram os 3 ERRES – reduzir, reutilizar e reciclar como apelo de “marketing”? Enfim, que se reciclarmos 100% de tudo que consumimos ainda assim não estamos contribuindo 100% para a vida de nossa única terra? Pense nisto e sinta o que eu sinto - RECICLAR É APENAS A PONTA DO ICEBERG!!!

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Infância e desejo nas vidas secas


Fernanda Coutinho
fmacout@terra.com.br
Professora de Teoria da Literatura da UFC

Vidas secas, o quarto romance de Graciliano Ramos, narra, como se sabe, a trajetória de uma família pelos duros caminhos de um sertão árido. Aí o inverno é hóspede arisco, sem tempo certo para pousar, como que submetido à vontade de um deus caprichoso. Assim, Vidas secas se coloca sob o signo da expectação, e o olhar de ansiedade de seus personagens perscrutando obsessivamente o céu de um azul sem nuvens dá uma primeira dimensão de um viver pontuado em muito pela aspereza. Não é sempre que essas pessoas experimentam o reconforto de buscar o firmamento e encontrá-lo pontilhado de nimbos, nuvens escuras que, liquefeitas na água benfazeja, podem lavar-lhes as preocupações e fazer com que durmam num sonho de desejos satisfeitos.
Fabiano, sinha Vitória, o menino mais novo, o menino mais velho e Baleia conjugam, porém, o anseio pela chuva com a satisfação de desejos que passam pelo crivo da pessoalidade. Esse aspecto reforça no texto o “sentido do humano” (Octavio de Faria), mais do que os reflexos negativos da interminável estiagem.

Na realidade, Fabiano sonha em ser um outro Fabiano: um vaqueiro de verdade, com um pedaço de terra seu e não “um vagabundo empurrado pela seca”. A Fabiano incomoda tanto a errância quanto a existência postiça: o considerar-se plantado em terra alheia. Daí a história de sua vida ser de preferência uma projeção para um tempo quimérico em que ele e sua família estejam a salvo desses percalços.

Sinha Vitória, é sabido, concentra seu ímpeto desejante em um objeto material: uma cama de lastro de couro, em vez da ossuda cama de varas de todas as noites. Baleia, imaginação à solta, sacia seu apetite com um osso cheio de tutano, colorindo seu delírio de morte com a visão de um mundo coberto de preás. Como se situariam, então, os filhos de Fabiano e sinha Vitória, na esfera do querer levando-se em conta que, habitualmente, o desejo da criança é mediado pela vontade dos pais? Os dois meninos são flagrados pelo leitor em brincadeiras simples com toscos bois de barro, objetos que sua imaginação tem o dom de redimensionar até ao limite do infinito. Contudo, a dimensão lúdica para essas crianças, por onde se infiltra o verdadeiro vetor do desejo, ultrapassa a convivência com os seres de faz-de-conta. Nelas a força da vontade patenteia-se na ânsia de penetrar o desconhecido.

Em “O Menino mais novo”, por exemplo, tem-se um registro da fenomenologia do olhar infantil, o qual, munido de lentes de aumento, tende a heroicizar determinadas pessoas de seu espaço de convivência: nesse caso, a criança lança mão da metamorfose e quer virar Fabiano, tentando emular com ele em suas façanhas de vaqueiro, e chegando mesmo a copiar certos cacoetes de seu modo de andar.

Em “O Menino mais velho”, transparece a criança imbuída do ofício de descobrir o mundo, exacerbando-se nela o espírito indagador. Essa particularidade é explicitada, através de seu desejo de reconhecimento como alguém sequioso de apreender a vida. “Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de sinha Terta, pediu informações. Sinha Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros.”

Para a criança, o inferno revestia-se de uma aura de sortilégio, e assim demandaria um exercício de narratividade da parte de sinha Vitória, o que não chega a acontecer. Mais doloroso que isso, todavia, parece-lhe o fechamento ao diálogo, a mediação frustrada da mãe, que não o conduz nem mesmo ao saber, redundando ainda mais no desencantamento da palavra inferno. Se a princípio essa idéia provoca-lhe pensamentos idílicos suscitados pela sonoridade prazerosa do nome, (“Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim.”), ao final, o nome tem um rendimento imagético negativo, liberando em seu pensamento um cortejo de elementos desencontrados que têm, porém, sua lógica definida pelo sentimento da insegurança: “O inferno deve estar cheio de jararacas e suçuaranas, e as pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca.”

Graciliano tem para com a infância uma relação de proximidade, ao longo de quase toda a sua obra, porém, no conjunto de sua produção romanesca, Vidas secas é o livro em que o escritor faz uma abordagem pontual dessa idade, especialmente nos capítulos dedicados aos meninos. Esses trechos específicos empreendem, com maior agudeza, uma avaliação dessa idade como um tempo fluido, em que diferentes estágios se sucedem, cada um deles obediente a uma determinada conformação do imaginário. Por outro lado, fica patente no livro a correlação da força desejante, nutriente da vida, com a energia que brota da infância.

Setenta anos após sua publicação, Vidas secas redefine sua atualidade ao fazer os leitores pensarem o mundo como um lugar de desejo, um espaço inquietante, permeado por um inventário de porquês, desafiador e instigante como costuma ser o pensamento dos meninos.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Orbitação

Carlos Emilio C. Lima
carlosemiliobarretocorrealima@yahoo.com.br
Escritor, Poeta, Editor, Ensaísta e Antidesigner.

Dizem que há uma estátua. Ela é redonda. Mata por sua força. Nos deixa exilados do sol, entramos noite adentro para sempre. Não vemos nunca mais o dia. Dizem que a ponta da asa de um anjo roçou a estátua no lugar onde Alfredo pousara a mão. Ela é duramente feita de ar sintético. Todos os olhos do mundo estão concentrados ali, ou o melhor, a visão de todos os olhos do mundo. Mas a visão para dentro, a visão sangrenta. Impossível entrar na bola. Nem com a diminuição do tamanho. E ela faz um zumbido que obstrui a leveza do sono, a finura imperceptível dos sons. Dos sons de um vôo em delícia até ti. E essa bola gira como um quadrado. Um quadrado de aspereza. Alfredo conhece, é o único, ele pousou a mão no pólo da bola. Ela vinha suspensa, perfeita, atrativa, no silêncio do ar de todas as palavras ela navegava até ele. Ele não se conteve, tocou-a. Só foi notar a transformação nele quando não mais contava com as forças vitais em atração.

E começou a sonhar com formigas voadoras de fogo. Falando pelas asas os esses ferventes de uma agonia. De uma dor gigantesca, de um cansaço antes de todo o seu abismo. Alfredo tinha seu abismo. Ele nascia inexoravelmente e sempre da sensação de prazer que sentia ao ver o gelo, o gelo em cubos. Abria a geladeira todas as noites para gozar, com a ponta da língua, com os pedaços simétricos de gelo. Mas aí ele ouvia o zumbido azul, faiscante de cristas muito agudas nascendo do formigamento gelado na superfície da língua. Era a entrada do abismo. Júlio sempre o encontrava desacordado exatamente depois da bola deixar a casa e sumir para Júlio. Júlio não poderia ouvir a bola que só Alfredo conseguia ver. A cozinha tornava-se branca. Tudo ficava em silêncio branco, gelado, o corpo vermelho de Alfredo soçobrado sobre o solo. Aí vinha o tropel. No momento em que Júlio tocava no corpo de Alfredo vinham os motores. Era terrível. O corpo do amigo se preparava, num quase secreto estremecer, para ser filtrado pelo tropel dos motores. Eram milhares, num enxame, sedentos de sua nudez.

Motores sísmicos sobre a carne, assaltando-a, privando-a do movimento de sangue nas veias, nos ductos, da irrigação da memória. O corpo estrebuchava num imenso gemido, gemido de raízes velhas, desfibradas, lento como um segundo - o corpo chorava porque vinha pelo encarnado das vozes internas, pelo ar encanado do medo, vinha parado navegando por dentro do mar dos ruídos dos motores sucessivos, inevitáveis, feitos de louça e éter, motores-espíritos vertiginosos. E a soma de todos eles era a bola intocável, invisível para Júlio. Dizem todos os sábios a que tivemos acesso que a bola, a tal estátua redonda, é feita de números, que o número oito pulsa no centro como um caracol. Recoberta de palavras numéricas ela esconde a cifra mais verde do amor em seu centro de sucos, de assovios, de gritos. Parece-se com a cabeça de um homem de gelo, gelo que não se desfaz ao sol.

Há evidentes histórias, mordiscações incipientes sobre o tema, trevas de todos os xis zunidores, tudo circula em torno da bola que naufraga ritmicamente Alfredo todas as noites, todos os dias. Júlio, quando ele recobra os sentidos, repete ao amigo sempre as mesmas palavras. Mas Alfredo reconhece que aquelas palavras de Júlio estão saindo de dentro da bola, que tudo que ele lhe diz são frases que escapam do cerne esférico do astro perseguidor. Mas o que Júlio diz, na foice de sua respiração agudíssima, num grito é. Alfredo, pare de contar os números da bola. Esqueça-os, eles não existem. Mas o amigo, ainda com o corpo esquecido, remoto, como se fosse apenas uma voz cintilante de medo adormecendo os membros de susto e tensão, repele o significado da frase, não escuta o que ele diz, sempre sempre se sente dentro da bola que Júlio também de lá iscou as palavras da busca, que o alfabeto é que desenha a própria geometria do cerne da bola. Do cerne de frio agudíssimo da bola, cerne de sangue e de dor abismal.

Embora os móveis do quarto para onde Júlio já levou Alfredo e o deitou sobre a cama não se pareçam de cobre, embora o piso não tenha a consistência da superfície de um sino, tudo soa muito alto, as formas inteiras retorcem-se como se de guizos de estrelas atordoantes, metálicos mecanismos da geometria da bola. A cadeira azul é um relâmpago, a estante de livros desordenados tem todo o peso espesso e asfixiante da escadaria velocíssimamente dolorosa que leva Alfredo ao centro da bola onde somente ele está navegando, no rastro espantoso dos motores-trovões, na base da nuca desse homem de gelo, imenso como o universo, inabordável como o rio mais antigo da Terra, que ainda existe, ainda existe, ele repete para Alfredo e se põe a cantar. Mas os versos também vêm de algum ponto entranhoso da bola, da caverna dos ecos, da caverna dos ecos da cobra. Os motores, saia de perto, os motores estão vindo novamente, sai de perto de mim, não me toque, deixe que eles passem. Eles têm o calor de uma constelação matemática de animais desconhecidos, desconexos cuja forma e aspecto e ser jamais atacará a direção da consciência.

Eles agora vão me possuir numa nuvem de zumbidos, música infinita, fonte que corta todos os sentidos na base, na nu(n)ca desse homem gigantesco. Porque há mais, e Júlio o sabe como o azul sabe as trevas onde mergulha esférico, num grito divino. É que Alfredo sente-se esse homem de gelo atravessando a tona afiada dos céus. Alfredo não possui mais o corpo que tem. Possui um outro, infinito, e dentro de si mesmo é uma outra pessoa composta pela trituração incessante, navegante, de todo o universo, com cidades espantosas no lugar do estômago, com cavalos mergulhando diretamente no mar, assim nesse giro que suas mãos fazem no ar, nessa vontade de toque, nessa sede de espumas no centro do mundo, no centro de si de todos os seres.

E Júlio vê as mãos desenrolando a fita, a fita-língua-cobra do fundo das águas do sexo em espiral que se esconde trêmula no ar e aciona os motores ao ácido movimento de aproximação. A esfera triangular vai ficando redonda de roldanas, em vagas, em trinados, em zunir, os dedos no tê da tábua da cama onde mais uma vez Alfredo se retorce. Dessa vez é a fixação dos dedos na tábua, que se sentem pregos revolvendo com seu aroma de tato aflitivo o côncavo carnoso da bola. Minhas mãos estão no centro, no ponto da dor lancinante de laços e fitas metálicas, revólveres no fim do mar, minhas mãos como revólveres, milhões de revólveres giratórios aos espelhos, frangalhos de aço, explodidos, liqüefeitos, fundidos em fogo onde minhas mãos aparecem e são esse fogo se espalhando no quarto, mariposa de chamas alimentando-se da cortina em volta de ti. Júlio então fica prisioneiro da orbitação de suas mãos em chamas e essas mãos desprendidas do corpo de Alfredo giram em torno da grande cabeça da tontura de Júlio. Ele grita para que o amigo interrompa a loucura das chamas mas suas têmporas estalam e delas saltam duas bolas de aço que tilintam no chão, rescendendo a navios, ao navio dos verbos de ferro, dos verbos rítmicos de tudo que é duro e intransponível.

Um aroma de mel de ferro dispersa-se no ar já mais gélido pois em fogo nos extremos, frio se casa com chamas que não permanecem imóveis. As duas dores cilíndricas de Júlio vão rolando pelo quarto, aos saltos, como se em busca de leito paralisante de plástico, ao passo que ele lê a tira de fogo que permanece em grande velocidade fixa diante de seus olhos pois ali estão, em estampidos de imagens gráficas, as letras da história de fogo e do frio de Alfredo.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Charge

Clayton Rebouças
claytoncharges@gmail.com
Chargista

Um Jesus diferente daquele dos evangelhos

(Caravaggio)

José Correia da Silva
professorjosecorreia@yahoo.com.br
Graduado em Matemática pela UECE
Graduado em Física com HRE pela UEVA
Graduado em Teologia pelo Centro de Teologia Avançado de São Paulo

Os evangelhos apócrifos, inautênticos - textos que foram tolhidos pela Igreja e que desapareceram por mais de um milênio - alegam um Jesus dessemelhante daquele que apreciamos. “Quem não conheceu a si mesmo não conhece nada, mas quem se conheceu veio a conhecer simultaneamente a profundidade de todas as coisas”. Esta frase acima é conferira a Jesus Cristo. Mas não adianta procurá-la na Bíblia. Ela não está em qualquer lugar dos Evangelhos de Lucas, Marcos, Mateus ou João, os únicos relatos da vida de Jesus que a Igreja considera autênticos. A alusão faz parte de um outro evangelho – o de Tomé. Também não perca seu tempo procurando por esse livro no Novo Testamento. Entretanto o texto existe. E é um documento anoso – segundo alguns pesquisadores, tão antigo quanto os que estão na Bíblia.

O Evangelho de Tomé, assim como outras dezenas – ou centenas – de textos semelhantes, foi escrito por alguns dos primeiros cristãos, entre os séculos 1 e 3 da nossa era. Ele foi cultuado por muito tempo. Até que, em 325, sob o comando do imperador romano Constantino, a Igreja se reuniu na cidade de Nicéia, na atual Turquia, e definiu que, entre os inúmeros relatos sobre a vinda de Cristo que existiam, só quatro eram "inspirados" pelo filho de Deus – os "evangelhos canônicos" ("evangelho" vem da palavra grega que significa "boa nova", usada para designar a notícia da chegada de Cristo, e "canônico" é aquele que entrou para o cânone, a lista dos textos escolhidos). Os outros eram "apócrifos" (de legitimidade duvidosa). Estes foram proibidos, seus seguidores passaram a ser considerados hereges e muitos foram excomungados, perseguidos, presos. A maioria dos apócrifos acabou destruída e os textos sumiram, alguns para sempre.

Mas nem todos. O Evangelho de Tomé, o de Filipe e o de Maria Madalena, por exemplo, escaparam por pouco do extermínio – graças a um egípcio inominado. Em algum momento do século 4, esse egípcio teve a apropriada idéia de esconder num jarro de barro cópias manuscritas na língua copta desses textos e de muitos outros ameaçados pela perseguição da Igreja. O jarro ficou 1 600 anos sob a areia do deserto. Acabou resgatado por um grupo de beduínos, em 1945, perto da cidade egípcia de Nag Hammadi. Só nos últimos anos os textos acabaram de ser traduzidos e chegaram ao conhecimento dos cristãos do mundo.

Um dos critérios para explicar por que só os evangelhos de Marcos, Lucas, Mateus e João entraram na Bíblia é a datação. Um consenso entre os especialistas situa os canônicos como tendo sido escritos entre 60 e 90. Já os apócrifos teriam sido produzidos a partir do século 2. Mas também sobre essa questão pairam dúvidas. Está lá no Evangelho de João. Cristo disse: "Porque me viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não viram e creram". Alguns pesquisadores, como a americana Elaine Pagels, da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, acham que o autor do texto, quando o escreveu, estava contrapondo ao Evangelho de Tomé. Se a questão dela está correta, o Evangelho de Tomé é mais remoto que o de João.

Segundo essa conjetura, o Evangelho de João seria um empenho para negar que a salvação pudesse ser atingida pela busca particular do autoconhecimento, tese central de Tomé. O Evangelho de João coloca então Tomé no papel do cético exagerado que é repreendido por Cristo. E conclui assinalando um caminho mais simples para a salvação: basta acreditar nela.

sábado, 8 de novembro de 2008

Da cegueira à clarividência ou breve ensaio sobre o ver


Paulo Amoreira
amoreira.paulo@gmail.com
Escritor e Artista Visual

“Meu olhar é nítido como um girassol.
(...)Pensar é estar doente dos olhos”
Alberto Caeiro

Em Le fabuleux destin d'Amélie Poulain, filme francês dirigido por Jean-Pierre Jeunet em 2001, após ajudar um homem a reencontrar seus tesouros de infância, a sonhadora Amélie Poulain descobre que pode interferir na vida das pessoas de modo a reaproximá-las da pulsão de vida que tinham adormecido em si. Como uma espécie de guerrilheira do sonho, passa a agir de modo a criar momentos mágicos na vida das pessoas que conhece, ora surreais, ora poéticos. O segundo a ser envolvido na sua missão salvadora é um mendigo, o cego do metrô, que faz ecoar a voz de Edith Piaf com sua vitrola. Amélie o ajuda a atravessar a rua e o transforma em um flâneur impossível ao conduzi-lo em uma vertiginosa caminhada pela rua, narrando intimidades cotidianas do entorno que captura com o lirismo do seu olhar:

Lá vai a viúva do tocador de tambor da fanfarra. Desde que ele morreu, ela usa o uniforme dele; O cavalo do açougue perdeu uma orelha; A risada é do marido da florista. Ele tem rugas nos olhos; Na vitrine da padaria tem pirulitos; Está sentindo esse cheiro? O fruteiro cortou um melão; Hoje tem sorvete de amêndoa; Passamos pela salsicharia. 79 o presunto, 45 a carne salgada; Casa de queijos. 12,90 o picadon e 23,50 o cabécou do Poitou; No açougue, um bebê olha um cachorro que olha os frangos.(...)

O que Amélie compartilha com o cego da vitrola é mais do que sua capacidade de ver, ela compartilha um certo modo de olhar. O filme todo é uma espécie de elogio à clarividência, a capacidade de ver mais e melhor, com mais profundidade e magia o mundo, as pessoas, as relações, os próprios sentimentos. Talvez de forma sintomática, esse mergulho na clarividência sugira um tipo de alheamento comum aos sonhadores, o distanciamento de quem vê e sente (não de quem vê e pensa). Como disse o mestre Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, na epígrafe desse texto, para o clarividente ‘pensar é estar doente dos olhos’. No livro Ensaio Sobre a Cegueira (transposto com considerável fidelidade para as telas de cinema por Fernando Meireles), o escritor José Saramago se utiliza de meios opostos para dizer o mesmo que Jean-Pierre Jeunet diz em seu filme.

Preocupa ao autor português a incapacidade de ver do homem contemporâneo, ou, antes a cegueira imposta pelos excessos imagéticos de uma sociedade cada vez mais visual e menos visível. Não à toa, os personagens de sua história são destituídos de seus nomes (a capacidade de nomear é a capacidade de dar sentido às coisas, como aponta a semiótica), sendo sempre apresentados pelo seu papel social, como ‘o médico’, ‘o motorista de táxi’, ‘o ladrão’, entre outros, ao por características superficiais como ‘a mulher do médico’, ‘a moça de óculos escuros’ ou ‘o atendente da farmácia’. A epidemia de cegueira destitui nomes, capacidade de ver uns aos outros e ver o ambiente. Os personagens mergulham no abismo da anomia, até se reinventarem dentro de si mesmos, através das novas relações com os outros e com o mundo, em uma espécie de clarividência proporcionada pela cegueira, que lhes revela a inutilidade dos adornos e facilidades da civilização na sua atual condição, e uma indesviável necessidade de manterem-se juntos, em relações colaborativas.

É revelador que a cegueira que atinge os personagens seja uma ‘cegueira branca’, o mar de leite que os atinge como se ofuscados por uma luz intensa e permanente, ao contrário da escuridão característica do universo dos cegos usuais. A soma de todas as cores do espectro solar resulta na luz branca. Talvez o que Saramago esteja nos contando na sua parábola sobre a cegueira seja que se, subitamente, pudéssemos ver todas as coisas que existem, como de fato são, em sua natureza mais íntima, ficaríamos cegos até nos rendermos a inevitabilidade da interdependência e, conseqüentemente, a compreensão da fatalidade presente na atitude predatória que persiste na nossa sociedade. Só a partir desse ponto o ser humano teria chances de escapar da inexorável extinção.

Longe de ser uma parábola moral, a história de Saramago é uma parábola ética. Evgen Bavcar (pronuncia-se Eugen Bauchar), o fotógrafo e filósofo esloveno, professor de estética na Universidade de Paris, em seu texto “O Corpo – Espelho Partido da História”, aponta que a mitologia não raro atribuía aos cegos uma outra qualidade de visão, tridimensional, proporcionada pelo aguçamento de todos os outros sentidos - sem distrações - que despertava uma espécie de percepção extra-sensorial que permitia-lhes perceber a realidade do entorno de forma mais completa que àqueles que vêem normalmente. Esse tipo de visão, chamada por ele de “a visão do terceiro olho”, muitas vezes faziam com estes cegos ultrapassassem as limitações impostas pelo tempo e pelo espaço, sendo contemplados com dons proféticos e o título de oráculos:

O olhar tridimensional, o de Édipo ou de Tirésias, portanto a visão que caracteriza o terceiro olho, só pertence aos cegos e a todos aqueles que aceitam a cegueira como a única possibilidade, no sentido da verdade tridimensional do mundo.

Neste texto, Bavcar também apresenta outro entendimento da cegueira como deficiência, baseado na idéia de que deficiente é todo personagem histórico desprovido de aceitação social ou parcialmente destituído pela circunstância histórica onde está inserido. Deficiente é o incompleto, imperfeito, dessemelhante. Seguindo esse raciocínio, na nossa sociedade imagética, o cego – enquanto deficiente - não é somente quem não tem o sentido da visão, mas também aquele que não domina nem compartilha dos códigos que regulam as relações entre as pessoas e o meio em que vivem. Também quem não tem acesso a esses códigos. Também quem os utiliza, mas não os compreende, repetindo padrões impostos.

Quem se rebela diante do que lhe fere e oprime; quem percebe de forma tridimensional a realidade imediata, estabelecendo conexões entre o que viveu e vive, projetando seus devires; quem desperta seu ‘terceiro olho’ que lhe permite participar da extraordinária experiência da existência, fará, no seu corpo, o trajeto entre a cegueira e a clarividência. De onde vemos o que vemos? Se abrirmos mão dos nossos nomes e significações, poderíamos ter acesso a uma tela branca existencial onde pintaríamos novas possibilidades? Como reaprender a ver o mundo se estamos cercados de palavras de comando, estruturas de controle baseadas no consumo, certezas rasas ofertadas em cada esquina? Como nos vermos sem os estereótipos judaico-cristãos que nos enchem de autocomiseração e culpa, reconhecendo nossas limitações e imperfeições como parte do caminho entre o que somos e o que queremos ser?

Como podemos fazer ver ao outro quem somos ou o que sonhamos ou que desejamos sem com isso se impor ao outro, sem vê-lo nas suas singularidades e afinidades? A aventura do olhar é uma aventura do corpo e do espírito. Ver está para além do que é percebido. Faz parte da entrega necessária que cumpre o que somos no tempo que escolhemos para viver. Ver é saber. Sentir. Ser.

Referências Bibliográficas: SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. BAVCAR, Evgen. O Corpo, Espelho Partido da História. In: NOVAIS, Adalto (Org.) O homem-máquina. A ciência manipula o corpo. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Os primeiros foram os últimos‏

Rodrigo C Vargas

O mundo festeja eufórico a vitória de Obama nos Estados Unidos. O que isso representa? É preciso deixar a poeira assentar, e buscar compreendê-la não como um fato isolado, mas como parte de um movimento. Não é fácil apontar o início, mas pode se dizer que o desmembramento da União Soviética, no fim dos anos 80, levou os Estados Unidos a perderem sua contra imagem - ou melhor - sua identidade. Foi a morte cerebral do capitalismo.

O ponto de partida politico do que vivemos hoje, pode ter sido em 1994, quando o líder da resistência contra o apartheid, Nelson Mandela, foi eleito presidente da África do Sul, na primeira eleição multirracial de sua história. Aqui no Brasil sentimos isso oito anos depois. Lula foi o primeiro líder de um partido de esquerda eleito presidente e, no cargo, o primeiro operário e o primeiro civil sem diploma universitário a exercê-lo como titular. A desconstrução do poder ganhou força. Em 2004 Angela Merkel era eleita chanceler alemã, se tornando a primeira mulher a ocupar o cargo na história do país. Dois anos depois aconteceu o mesmo no Chile, com Michelle Bachelet. Ainda no mesmo ano, a Bolívia elegeu Evo Morales, o primeiro presidente de origem indígena. Em 2008, uma sucessão de acontecimentos reforçou as mudanças de posicionamentos políticos no mundo. Em fevereiro, Raúl Castro, irmão de Fidel, foi eleito presidente de Cuba, prometendo mudanças, um Estado menor e mais tolerante. Em abril, o religioso Fernando Lugo foi eleito presidente do Paraguai, colocando fim à hegemonia de mais de seis décadas do Partido Colorado. Em setembro a chanceler Tzipi Livni foi eleita líder do Partido Kadima, se tornando a mais poderosa israelita desde Golda Meir. Livni foi a primeira voz no governo israelense a reconhecer que ataques da guerrilha palestina dirigidos a alvos militares não são “terrorismo” e reservar esse rótulo para ataques a civis. Por último, quarta-feira passada, Barack Obama foi eleito - fugindo de rótulos como afro-americano, terrorista, elitista e comunista - o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos.

Portanto, são muitos os fatos que demonstram claramente uma mudança de rotação ideológica das massas. Agora, é preciso ter os pés e a cabeça no lugar para entender que o sistema capitalista ectoplasmado sabe muito bem amortecer os ícones periféricos. Basta observar quais mudanças significativas tivemos até agora. O capitalismo é um organismo vivo (crer ou entender), um circulo vicioso e potente que puxa para o próprio núcleo - como um redemoinho - quem busca uma figura geométrica diferente. Será que com Obama tudo vai mudar?

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O movimento MADI


José Guedes
arteguedes@uol.com.br
Artista Plástico
Diretor do Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura

O Movimento Madi consiste na primeira contribuição coerente e influente da América Latina para a história da arte universal. Seu nome não tem uma origem definida, no que se assemelha ao Dadá, mas pode ser “Materialismo Dialético, Marxismo Dialético, Movimento, abstração, dimensão, invenção, ou simplesmente letras tiradas do nome de Carmelo Arden Quin.

Este período seminal, começou com a publicação da revista Arturo, criada pelo uruguaio Carmelo Arden Quin, na Buenos Aires de 1944, com declarado compromisso com uma arte “desprovida de intenções representativas, livre de qualquer determinismo ou justificação”. A revista não passou de primeiro número , mas já reunia, além de Arden Quin, outros artistas e poetas que logo criariam aquele movimento, tais como, Rhod Rothfuss, Gyula Kosice e Edgard Bayley. Também estava presente, nesta edição, Joaquim Torres-Garcia, que, morando em Montevidéu, era fonte de inspiração e grande incentivador de jovens artistas argentinos e uruguaios. Em seu ateliê, esses artistas tinham informações, sobre as vanguardas européias , ao mesmo tempo em que lhes era cobrado o desenvolvimento de uma linguagem própria. Em seu texto para a Arturo, Torres-Garcia disse: “Atualmente estamos muito menos interessados na coisa, do que na estrutura onde ela onde ela se situa.”. E mais adiante: “Já não são mais as coisas, mas o ritmo em que no momento elas se encontram, que constitui a essência da construção poética”.

Rhod Rothfuss escreveu para a Arturo um artigo intitulado: “A moldura, um problema da arte contemporânea”. Antes, em 1942, ele havia feito uma exposição com quadros de formas irregulares, batizados por Arden Quin de “cubisme decoupé”(cubismo recortado), e esse questionamento esteve nos termos da anunciação da terceira exposição do grupo Madi, em novembro de 1946, que dizia: “ Madi inventou a moldura irregular e ornada, quebrando para sempre o tabu da moldura pictórica: ele inventou a pintura e a escultura em movimento, articulou o universal e o linear, criou a arte plástica plural e lúdica”. Na primeira exposição, em agosto do mesmo ano, Carmelo Arden Quin lançou o manifesto cujas premissas essenciais no campo da pintura foram, primeiro, a quebra da janela renascentista, seja quadrada ou retangular. Segundo a sistematização de formas poligonais com cortes irregulares. Uma outra proposta adicional era a produção de estruturas articuladas e móveis, que podiam ser aplicadas à pintura, à escultura ou à arquitetura.

Os artistas do Movimento Madi se utilizaram, com total liberdade, dos movimentos de vanguarda europeus como o dadaísmo, o construtivismo russo, o neo-plasticismo, entre outros, como ponto de partida para suas invenções. Arden Quin criou uma série chamada “Cosmópolis”, em que elementos da escultura eram incorporados à pintura. Produziu também uma série de construções articuladas que, na parede, permitiam a interferência do espectador, que criava novas relações formais; e que deflagraram, a partir da introdução do movimento na obra de arte, uma série de variáveis inaugurais.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Ameaças internas ao programa brasileiro de biodiesel

Expedito Parente
expedito@tecbio.com.br
Engenheiro Químico, Inventor do Biodiesel

Podendo ser produzido de qualquer óleo vegetal, de gorduras de animais e até mesmo de óleos residuais, em grandes e em pequenas unidades industriais, o biodiesel tem sido considerado um combustível plural, não somente pela diversidade de matérias primas, como pela multiplicidade de usos. Muito mais que o álcool que só é utilizado no singular, em veículos pequenos, o biodiesel é coletivo, pois é apropriado para usos em ônibus, trens, navios, caminhões, tratores, máquinas agrícolas e até mesmo na geração de eletricidade através de grandes motores.

Considerando as suas externalidades e transversalidades, o biodiesel não pode ser considerado um simples sucedâneo do óleo diesel – é muito mais que isso... Se assim não fosse seria por demais inoportuno a sua produção, pois somos autosuficientes em petróleo, o mais barato mundo. Soma-se a isso, o fato de que o óleo diesel sempre teve preços privilegiados no Brasil.

O biodiesel carrega em si três missões: a missão ambiental, a missão social e a missão estratégica.

• A missão ambiental diz respeito não somente uma importante contribuição para o controle do aquecimento global do Planeta, o alarmante efeito estufa, mas também para a diminuição dos índices de poluições localizadas, em especial nos grandes centros urbanos. A propósito a fuligem tem sido apontada como a principal causa dos surtos de tuberculose nas grandes cidades que tem matado mais que a própria AIDS. É bem sabido que o biodiesel quando misturado ao óleo diesel faz diminuir as emissões de fuligem chegando a anular quando usado na proporção de 25%. Esta é a razão da União Européia tenha aprovada a meta para uso da mistura biodiesel-petrodiesel na concentração de 25%, isto é, usar o B-25.

• A missão social diz respeito à extraordinária capacidade que o biodiesel possui de gerar ocupação e renda no campo, especialmente quando a matéria prima pode ser produzida mediante a agricultura familiar ou através de palmáceas (babaçu, dendê, coco da baia, etc.) em que as coletas têm que ser realizadas manualmente, mesmo que auxiliada por instrumentos. A dimensão do mercado energético atribui ao biodiesel a capacidade de eliminar a miséria no campo, que no mundo assola a 500 milhões de indivíduos, dos quais 8% (40 milhões) vivem no campo, nas regiões norte e nordeste.

• A missão estratégica refere-se além da preparação e facilitação para a saída da Era do Petróleo, mas também o uso das transversalidades atribuídas ao biodiesel e sua cadeia produtiva, quais sejam, as relações com outros setores produtivos, inclusive como indutor da produção de alimentos. Pois bem... O biodiesel passa atualmente por graves ameaças: algumas delas internamente, e outras externas, provenientes de outros países. As ameaças externas advêm como reflexo da atual crise mundial no mercado de alimentos, que, injustamente, mesmo em parte, tem sido atribuída ao acelerado crescimento da produção mundial do bioetanol, com respingos no biodiesel. Esta é uma questão que pela sua complexidade deveremos discutir, em separado, em outra oportunidade. Interessa-nos agora apresentar e comentar as ameaças internas, isto é, aquelas no âmbito brasileiro.

• O primeiro grupo de ameaças advém das impropriedades dos atuais marcos regulatórios do Programa Brasileiro de Biodiesel que apesar das boas intenções do Governo Federal carecem de aperfeiçoamentos. A legislação que se apresenta em forma de leis, portarias e resoluções foram elaboradas sem uma visão objetiva das especificidades brasileiras, carecendo de uma reformulação. De fato, o Brasil é um país de dimensão continental e extraordinariamente heterogêneo não somente sob o ponto de vista edafo-climático, mas também sob os aspectos sócio-econômicos – produzir e consumir biodiesel Nordeste constitui algo inteiramente diferente de fazê-los no Sul e Centro-Sul, e mais ainda na Amazônia ou no Cerrado. As hierarquias das missões atribuídas ao biodiesel são distintas, conforme a região. Os modelos que devem levar em conta as motivações e vocações deverão ser necessariamente peculiares a cada Região.

• O segundo grupo de ameaças, que tem muito a ver com o primeiro grupo, referindo-se ao desequilíbrio dos diferentes elos das cadeias produtivas do biodiesel. Providências urgentes devem ser avaliadas não somente no aperfeiçoamento dos marcos regulatórios, mas também na implantação de uma série de atitudes no sentido de fortalecer a produção agrícola das matérias primas, as extrações adequadas dos óleos e as valorizações dos subprodutos (glicerina e resíduos da cadeia produtiva). Atividades de pesquisa e desenvolvimento se impõem ao fortalecimento da produção agrícola, das melhorias dos processos industriais e seus entornos.

• O terceiro grupo de ameaças resume-se na imprópria participação da Petrobrás no Programa. A empresa foi criada e cresceu, cresceu muito dentro de uma cultura monopolística, e agora tem sido conduzida para a prática do monopcionismo, inserindo-se como a única compradora oficial do biodiesel. Com os bilionários investimentos projetados e já iniciados em implantações de suas fábricas de biodiesel, a Petrobrás se coloca dos dois lados do balcão, inibindo de sobremaneira a iniciativa privada nacional, e até mesmo os investimentos estrangeiros que estavam começando a acontecer. Diga-se de passagem, os investimentos estrangeiros na cadeia produtiva do biodiesel são considerados por demais estratégicos, pois representam um passo importante para as exportações desse biocombustível. Uma espécie de ditadura empresarial é um verdadeiro veneno para que os negócios convencionais possam fluir democraticamente. A Petrobrás segundo as suas conveniências, ora age como uma estatal, ora como empresa privada. E, a impropriedade e impertinência não param aí, uma vez que o tamanho de uma Planta de Biodiesel, por maior que seja, representa menos de meio por cento de qualquer uma de suas Refinarias de Petróleo.

O biodiesel como negócio não combina com o estilo e a vocação dessa empresa. Com certeza, em algum momento, os seus acionistas vão protestar, quando a empresa deveria concentrar as suas atenções em aumentar a sua produção de petróleo, fazendo o Brasil ingressar, o mais rápido possível, no clube dos exportadores, participando como fornecedor de ouro negro a preços superiores a US$ 130 por barril. Ademais, existem muitas outras maneiras de apoiar e fortalecer o Programa Brasileiro de Biodiesel. De outra forma depreende-se que impropriedade e incompetência juntas, podem se vistas como indícios, até mesmo, de uma orquestração para retardar o sucesso do biodiesel, e até mesmo a sua viabilidade no Brasil. Enfim... Interesses contrariados!